Tendências, números e o "lado oculto do orçamento"
Tendências, números e o “lado oculto do orçamento”
Atualmente, o processo orçamental está longe de ser um processo fechado e monótono. Pelo contrário, este processo reflete a atual dinâmica parlamentar ao permitir aos representantes eleitos pelo Povo a apresentação de propostas de alteração (PA) à proposta de lei do Orçamento do Estado (OE) elaborada pelo Governo, e, consequentemente, adequá-la às suas medidas, prioridades e ideologias.
O OE é assim muito mais do que uma mera previsão das receitas e despesas: é o resultado do exercício do poder soberano da Assembleia da República (AR). Esta vertente tem uma relevância acrescida porque o resultado do processo orçamental – fruto do trabalho realizado na AR que incide sobre as mais vastas matérias – tem um impacto muito significativo para os ciclos políticos. Como diz Tiago Duarte, «O Parlamento apenas o é, verdadeiramente, uma vez por ano, durante a discussão orçamental[1]».
Esta realidade resulta de um “lado oculto” que nem sempre é evidente. Sucede que o número de PA e a sua substância têm levantado questões e preocupações que não são de somenos. A título de exemplo, foram apresentadas mais de 1900 PA à proposta de OE para 2024. Este número quimérico expõem as vulnerabilidades do processo orçamental, que podem traduzir-se em consequências negativas e que não devem ser subestimadas.
É neste “lado oculto do orçamento” que este artigo se foca, partindo do pressuposto de que o problema numérico português ultrapassa a questão da maior ou menor fragmentação da representação parlamentar. O desafio é apelar a um processo orçamental conforme à Constituição e aos compromissos internacionais, sem condicionar os poderes formais do Parlamento.
Segundo o atual Regimento da Assembleia da República (RAR), as PA são classificadas como propostas de substituição, aditamento ou eliminação[2]. Qualquer modalidade de PA pode ser apresentada à proposta de lei de OE sob a forma de articulado[3] legal ou como mapa contabilístico.
A partir do OE para 2012, as então propostas de emenda – designação posteriormente absorvida pela já existente de propostas de substituição –, foram perdendo a sua expressão e começaram a ganhar notoriedade as propostas de aditamento (v. figura 1).
Figura 1 - A natureza das PA por ano
Do autor, a partir da plataforma AR@PLOE
Por sinal, esta conjuntura coincidiu com a diminuição abrupta de PA sobre mapas, que principiou igualmente em 2012 (v. figura 2).
Figura 2 – Percentagem de PA incidindo sobre mapas, face ao total das PA
Reportório da Comissão de Orçamento e Finanças, atualizado com dados do autor, a partir da plataforma AR@PLOE
As PA aos mapas contabilísticos constituíam tipicamente propostas de emenda, que acabaram por ser preteridas, em termos numéricos, pelos aditamentos, que, por sua vez, passaram a constituir a modalidade preferencial de alteração em sede orçamental.
Sem perdermos de vista este contexto, é de salientar outra coincidência interessante que nos vai permitir entrar no citado “lado oculto do orçamento”: ao longo dos últimos anos, temos assistido a um aumento tendencial de PA à proposta de lei do OE (v. figura 3), sendo que a partir de 2017 a tendência de crescimento foi tão evidente, que com o OE de 2020 ultrapassou-se o recorde de 1300 PA, que já durava desde 2010.
Figura 3 – Evolução do n.º de PA por ano
Reportório da Comissão de Orçamento e Finanças, atualizado com dados do autor, a partir da plataforma AR@PLOE
O recorde foi novamente ultrapassado no ano seguinte, 2021, com a apresentação de 1547 PA. Em 2022, manteve-se um número semelhante (1505 PA), para o recorde voltar a ser quebrado no OE de 2023 (1862 PA) e no OE de 2024 (1938 PA). Num espaço de pouco mais de quatro anos, o recorde existente de apresentação de PA foi quebrado quatro vezes, mas associado a baixas taxas de aprovação dessas PA.
Tudo visto em conjunto, e conforme foi possível constatar nas figuras 1 e 2, nos últimos anos, a esmagadora maioria de PA foi constituída por aditamentos – especialmente de artigos novos à proposta de lei – o que se traduziu, em grande medida, na inserção de matéria nova relativamente ao conteúdo orçamental existente. O número colossal de PA e o seu tendencial aumento expõem diversas vulnerabilidades a ter em conta[4]:
As considerações tecidas merecem ser enquadradas num contexto de referência aos Parlamentos de outros países, no tocante ao processo orçamental[8].
Quanto às categorias de poderes orçamentais de cada parlamento (v. figura 4), verifica-se que na maior parte dos países os poderes dos Parlamentos, a nível orçamental, são mais amplos (categoria 1), ou seja, podem ser apresentadas PA à proposta do Governo que aumentem ou diminuam as receitas e despesas, para além de ser possível alterar o saldo orçamental (equivalendo a mais de metade dos países em análise, na qual se inclui Portugal).
Figura 4 – Os poderes orçamentais comparados
Do autor, a partir das respostas enviadas pelos Parlamentos de diversos países no âmbito do pedido 5181 (CERDP)
Relativamente, ao número de PA apresentadas e aprovadas pelos Parlamentos aos orçamentos estaduais, a respetiva contabilização é apresentada em termos comparativos e por ano na figura 5:
Figura 5 – Número de PA por país e por ano
Do autor, a partir das respostas enviadas pelos Parlamentos de diversos países no âmbito do pedido 5181 (CERDP)
Portugal surge em destaque, encontrando-se no grupo de países que apresenta mais PA ao OE, com resultados semelhantes à Alemanha. De resto, só fica atrás de França, Suécia, Espanha (que apresentou os seus resultados sob a forma de média) e Itália, que apresentou, em 2021, o impressionante número de 6842 PA à proposta de Orçamento.
Deste modo, num espectro de países com poderes orçamentais tendencialmente amplos (como vimos na figura 4), o que facilita a apresentação de PA, verificamos que a prática portuguesa sobressai, sobretudo se considerarmos que qualquer um dos Parlamentos que apresentaram um número maior do que Portugal tem substancialmente mais Deputados do que o Parlamento português e, não raro, um calendário mais generoso para o processo orçamental (como sucede com a Suécia ou França).
Como vimos, a apresentação de um número muito elevado de PA ao OE e o seu potencial crescimento acarreta várias consequências negativas, estando Portugal em realce nos cenários comparados.
Todavia, qualquer condicionante à liberdade de conformação parlamentar perante o OE deve ser ponderada com especial cautela: conforme declara o Professor Jorge Miranda, «(…) a iniciativa legislativa é livre, como se intui. Só excecionalmente pode não o ser[9]». Ainda assim, os riscos analisados anteriormente precisam de soluções: também o Professor Sousa Franco afirmava que «o improviso é, em geral, causa de desperdício[10]».
Assim, de maneira a contribuir para uma reflexão crítica e de melhoria, cremos que podem ser aventadas as seguintes soluções, tanto de um ponto de vista da criação de normas, quanto da legislação existente:
A prevenção mais eficiente de fragilidades ligadas a um número significativo de PA decorre, em especial, da iniciativa espontânea dos seus intervenientes, sem qualquer mediação de normas. Se, no ponto acima, fizemos referência à iniciativa a montante (Governo), é forçoso mencionar a iniciativa a jusante (AR), na qual os GP optem por uma prática orçamental mais dirigida para o conteúdo essencial e natural do orçamento.
Com uma dinâmica deste cariz, talvez seja possível lançar alguma luz sobre o “lado oculto do orçamento”, mantendo-se uma sólida consolidação orçamental, independentemente das opções políticas a contemplar no respetivo diploma.
Jorge Gasalho
[1] Duarte, Tiago, A Lei por Detrás do Orçamento, a questão Constitucional da Lei do Orçamento, Lisboa, Almedina, 2007.
[2] À luz da redação anterior do artigo 127.º do Regimento da Assembleia da República (RAR), as PA podiam classificar-se como propostas de emenda, substituição, aditamento ou eliminação. A primeira classificação foi absorvida pela segunda, após a revisão de 2023, após a revisão de 2023, classificando-se atualmente as PA como propostas de substituição, aditamento ou eliminação.
[3] Articulado é uma exposição jurídica ordenada por artigos (artigo a artigo), como por exemplo de um tratado, lei ou regulamento.
[4] Vide Unidade Técnica de Apoio Orçamental, Relatório UTAO n.º 4/2022: Reforma do processo legislativo orçamental e reestruturação da UTAO, Publicações não-periódicas – Enquadramento das Finanças.
[5] Op. cit., p. 11, 47 e 88.
[6] Op. cit., p. 96.
[7] Cavaleiros orçamentais são disposições de natureza não financeira ou orçamental inseridas na lei do Orçamento do Estado. Este assunto está explicado no 2.º artigo desta newsletter.
[8] As fontes utilizadas para a realização desta análise decorrem das respostas enviadas pelos Parlamentos de diversos Estados no âmbito do pedido 5181: Budget Framework Law And The Budgetary Procedure, solicitado através da rede de correspondentes do Centro Europeu de Pesquisa e Documentação Parlamentar (CERDP), e dos portais oficiais de legislação dos respetivos países. O inquérito decorreu entre 31/08/2022 e 30/12/2022. Para mais informações, consultar: https://ecprd.secure.europarl.europa.eu/ecprd/public/page/about.
[9] Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 256.
[10] Franco, António L. de Sousa, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. I e II, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008, p. 338.