OS CAVALEIROS ORÇAMENTAIS NA LEI DO ORÇAMENTO DO ESTADO


Delimitar ou não o conteúdo da Lei do Orçamento do Estado?

pormenor do gradeamento exterior da Assembleia da República com forma circular e.

1. O “problema”

“Cavaleiros orçamentais”, também designados de cavaliers budgétaires ou riders, são disposições de natureza não financeira ou orçamental inseridas na lei do Orçamento do Estado (OE). Tratam-se, pois, de normas jurídicas que incidem sobre matérias que não integram o conteúdo típico da lei do OE, mas vão à sua “boleia” aproveitando o processo legislativo orçamental para alterar legislação que não tem conexão com matéria orçamental.

Coloca-se, pois, a questão de saber se tais normas “extravagantes” à lei do OE podem ser nela incluídas, tendo em conta o regime jurídico especial que lhe é aplicável. Com efeito, a proposta de lei do OE beneficia de um procedimento legislativo próprio, que diverge do procedimento legislativo comum em diversos aspetos. Por um lado, a proposta de lei do OE é da iniciativa exclusiva do Governo, pelo que os Deputados têm uma iniciativa (meramente) superveniente, exercida através da apresentação de propostas de alteração. Por outro lado, após a aprovação pela Assembleia da República (AR), a lei do OE entra em execução e apenas pode ser alterada por iniciativa do Governo. Além disso, a lei do OE tem caráter anual (princípio da anualidade), ou seja, as suas normas têm uma vigência limitada.

A respeito do conteúdo (típico) da lei orçamental, as normas existentes sobre esta matéria, designadamente o artigo 105.º da Constituição, dispõem que o OE «contém: a) A discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos; b) O orçamento da segurança social» e que as disposições da lei do OE «limitam-se ao estritamente necessário para a execução da política orçamental e financeira».

A questão de delimitar o conteúdo da lei do OE tem vindo a colocar-se com cada vez maior acuidade, tendo em conta a tendência de aumento do número de artigos que o integram.

2. (In)admissibilidade destas normas

A resposta ao problema divide-se entre a tese de inconstitucionalidade e a tese da admissibilidade.

Na jurisprudência, a questão da admissibilidade de cavaleiros orçamentais foi expressamente abordada pela primeira vez no Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 461/87, de 16 de dezembro, quando, perante um conjunto de normas sem conteúdo orçamental direto, o TC colocou a questão da seguinte forma: «A verdade é que, se o Orçamento é, antes de tudo, um mapa de previsão de receitas e despesas e a exposição de um programa financeiro, na respetiva lei não deixam de surgir com frequência disposições que vão para além da estrita expressão dessa previsão e desse programa. As disposições em causa são dessa natureza. O problema que elas podem suscitar é, pois, outro: é o de saber se, dada essa sua natureza e a matéria sobre que versam, elas ainda têm cabimento na lei orçamental, atento o carácter desta».

Entrando na análise da questão, o TC considerou que, ao contrário do que ocorre em sistemas jurídicos de outros países, cujas constituições expressamente delimitam as normas que podem ser inseridas na lei orçamental, «entre nós, porém, não se depara com qualquer preceito expresso da Constituição similar aos referidos».

Nesse acórdão, o TC declara que a lei do OE tem natureza materialmente legislativa e aceita como válida a inserção de cavaleiros orçamentais. Em paralelo, diz que as normas qualificadas como cavaleiros orçamentais não estão sujeitas ao regime jurídico especial aplicável às normas materialmente orçamentais, pelo que podem ser alteradas nos termos gerais.

Termina dizendo que «[p]oderá a prática em causa ser discutível, e até censurável, seja do ponto de vista doutrinário, seja do da técnica da legislação. De todo o modo, não o é de um estrito ponto de vista jurídico-constitucional»[1].

Merece ainda destaque o Acórdão do TC n.º 141/2002, de 9 de abril, que, apesar de reiterar a jurisprudência  do Acórdão acima referido, ou seja, a constitucionalidade dos cavaleiros orçamentais, parece exigir – embora de maneira não totalmente declarada – alguma conexão com a matéria orçamental. Quanto às normas em contenda, o TC não tem dúvidas em qualificá-las como cavaliers budgétaires pois «não apresentam um carácter puramente orçamental, antes visam a regulamentação jurídica do estatuto remuneratório de certos funcionários e agentes. Ou seja, nada dispõem relativamente a matéria de receitas e despesas, não se descortinando nas mesmas, direta projeção financeira».

Neste sentido, o Tribunal diz que pode questionar-se a justeza da sua inserção na lei do OE, face à natureza específica da mesma. O TC reafirma que a Constituição não proíbe expressamente a inclusão destas normas na lei do OE, embora a questão da eventual inconstitucionalidade destas normas não seja pacífica a nível doutrinário e jurisprudencial.

O acórdão afirma que «ainda que se entenda que tem de haver uma conexão mínima entre o cavalier e a Lei do Orçamento», essa conexão existe no caso concreto «na medida em que se não pode considerar como absolutamente estranha à Lei do Orçamento a matéria atinente ao regime salarial da função pública, até pela dependência destes funcionários ao Estado, pelo que, pelo menos indiretamente, se conexiona com a matéria orçamental»[2].

Passando ao plano doutrinário, não existe uma opinião unânime sobre a admissibilidade de cavaleiros orçamentais.

Salienta-se a posição do professor Teixeira Ribeiro: «O facto é que o artigo 11.º diz o que o articulado deve conter, não diz o que ele apenas deve conter. Por outro lado, embora a inserção no Orçamento de normas não orçamentais seja radicalmente condenável sob o ponto de vista da técnica legislativa, a verdade é que não é princípio legal que a técnica legislativa deva ser correta. Entendemos, pois, que o artigo 11.º da Lei do Enquadramento não proíbe que o articulado contenha normas não orçamentais». Portanto, segundo este autor, embora do ponto de vista da técnica legislativa a inserção de matérias estranhas ao orçamento na lei orçamental não seja conveniente, ela não é inconstitucional ou sequer ilegal.

De notar, contudo, que, volvidas algumas décadas desde que tal posição foi assumida, a LEO em vigor é muito diferente da anterior, uma vez que vinca que «as disposições constantes do articulado da lei do Orçamento do Estado limitam-se ao estritamente necessário para a execução da política orçamental e financeira».

Com base na nova formulação, Ana Raquel Moniz[3] defende que «estamos, pois, perante dados do problema diversos daqueles que permitiram a Teixeira Ribeiro […] entender […] que o legislador “diz o que o articulado deve conter, não diz o que ele apenas deve conter”». Para a autora, a atual redação da LEO, ao prever que as disposições da lei do OE se limitam ao estritamente necessário para a execução da política orçamental e financeira, elege[4] o «princípio da proporcionalidade como parâmetro do conteúdo da lei anual do Orçamento», pelo que «estabelece uma insuperável relação meios/fins entre as disposições constantes daquela lei e a execução da política orçamental e financeira do Estado, excluindo todas as disposições que não sirvam (ainda que indiretamente) tal finalidade».

Nesta sequência, a autora entende que a atual redação da LEO vem interditar os cavaleiros orçamentais. Na sua ótica, a nova redação «veio, pois, responder à preocupação de evitar que (pelo menos) normas sem atinência orçamental passem despercebidas no debate parlamentar, procurando, da mesma forma, respeitar o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, mais precisamente, o princípio da determinabilidade das leis».

Também para o Professor Rocha Andrade, atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 41º da LEO, os cavaleiros orçamentais são inadmissíveis «não existindo uma proibição constitucional dos cavaleiros orçamentais, ela existe desde 2001 em lei de valor reforçado».  No entanto, este autor considerava que a prática não respeita aquela disposição legal: «Em Portugal, a experiência tem sido de ignorar totalmente o disposto na LEO, estando presentes no Orçamento (e nas propostas de alteração que são admitidas à discussão) normas que, por qualquer critério, ainda que permissivo, não podem ser consideradas como tendo relação com a execução da política orçamental».

3. Conclusão

A admissibilidade jurídico-constitucional das normas designadas por cavaleiros orçamentais não é líquida e tem originado opiniões divergentes na doutrina nacional. O TC pronunciou-se sobre a questão em mais de um acórdão e considera não existir impedimento constitucional[5] à inclusão na lei do OE de normas sem natureza financeira ou orçamental, contando que as mesmas tenham uma relação mínima com a lei do OE. Acresce que estas normas não são contaminadas pelo regime procedimental «reforçado» da lei do OE, podendo ser alteradas nos termos gerais.  

Joana Coutinho


[1] Em sentido dissonante, são de salientar as posições dos Juízes Conselheiros Martins da Fonseca e Vital Moreira, nos seus votos de vencido.

[2] De notar, contudo, que a maneira como o TC refere no acórdão n.º 141/2002, de 9 de abril que as normas em análise têm conexão com a matéria típica da Lei do OE, não permite concluir inequivocamente, se aceita que os cavaleiros orçamentais possam versar sobre toda e qualquer matéria, ainda que absolutamente alheia a matérias orçamentais. Com efeito, o TC diz «de todo o modo, ainda que se entenda que tem de haver uma conexão mínima entre o cavalier e a Lei do Orçamento» acabando por não tomar uma posição firme sobre a querela. A este respeito, Tiago Duarte “O Conteúdo da Lei do Orçamento”, aponta no sentido de uma aceitação genérica de cavaleiros orçamentais independentemente da matéria, embora refira que ainda não surgiu «um caso inequívoco de aceitação de um “cavaleiro” sem qualquer ligação com a lei reforçada em que se inclua».

[3] «Cavaleiros e Hierarquia: o Artigo 158º da Lei do Orçamento do Estado para 2009», in, Revista de Direito Público e Regulação, julho de 2009, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE).

[4] De notar que a autora se referia à LEO em vigor à data – Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto – e não à atual LEO (aprovada em anexo à Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro), sendo, contudo, os termos de uma e outra lei, em tudo equivalentes, pelo que os comentários efetuados se mantêm plenamente aplicáveis.

[5]   Não podem, contudo, deixar de ser referidos os votos de vencido de diversos Conselheiros, nos acórdãos referidos.