Apontamentos sobre alguns momentos da história da Sala das Sessões. Parte 1 - A Monarquia.
Em janeiro de 1903, foi inaugurada a atual Sala das Sessões da Assembleia da República.
Em 1895, um incêndio destruíra a primeira Câmara dos Deputados instalada há cerca de seis décadas no antigo Mosteiro de São Bento da Saúde. O arquiteto Miguel Ventura Terra foi o vencedor do concurso lançado para a reconstrução da Sala das Sessões e para a remodelação do edifício do Parlamento.
Em 1903, a nova Sala apresentava uma planta semicircular, em disposição de anfiteatro, com os Deputados a ocupar os seus lugares virados para a Mesa da Presidência e para a tribuna do orador. Com galerias para o público, a claraboia de ferro e vidro permitia a entrada de iluminação natural no espaço.
Por detrás da Mesa da Presidência, destacava-se a estátua do rei D. Carlos I, substituída, após a Revolução de 5 de Outubro de 1910, pela estátua da República, que ainda hoje se encontra na Sala. Mais acima, a coroa régia, colocada no grupo escultórico com figuras femininas, seria também substituída por uma esfera armilar.
Nos anos 20, a decoração da Sala foi completada com a luneta de Veloso Salgado representando as Cortes Constituintes de 1821, seis estátuas, alusivas à Constituição, à Lei, à Jurisprudência, à Eloquência, à Justiça e à Diplomacia 1, e três pinturas com alegorias à Ciência, às Artes e à Indústria; à Pátria, à Paz e à Fortuna; e ao Comércio e à Agricultura.
Inaugurada há 120 anos, a Sala das Sessões atravessou os quatro períodos da história parlamentar, tendo sido palco, em 1908, da aclamação do último rei de Portugal, D. Manuel II, e, em 1911, da aprovação da Constituição republicana e da eleição do primeiro Presidente da República, Manuel de Arriaga.
O Golpe Militar de 28 de Maio de 1926 determinou o encerramento do Parlamento durante quase oito anos. A Sala das Sessões recebeu a primeira reunião da Assembleia Nacional em 1935, um Parlamento de partido único, subordinado à ideologia do regime e esvaziado de competências.
Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, os trabalhos da Assembleia Constituinte tiveram início a 2 de junho de 1975, rodeados de um clima de euforia e esperança no novo ciclo político. Dez meses depois, na Sala das Sessões foi aprovada a Constituição, que instituiu a Assembleia da República como órgão de soberania.
Neste artigo, dividido em quatro partes, apresentam-se apontamentos sobre alguns momentos e episódios políticos da história da Sala das Sessões.
A primeira parte é dedicada ao período da Monarquia. Nos próximos números do ComunicAR, serão publicadas as partes referentes à I República, ao Estado Novo e ao Estado democrático.
PARTE 1 – OS ANOS FINAIS DA MONARQUIA
No dia 3 de janeiro de 1903, os Deputados reúnem pela primeira vez na nova Sala das Sessões projetada pelo arquiteto Miguel Ventura Terra, responsável pela reconstrução do espaço e pela remodelação do edifício do Palácio das Cortes, a designação do Parlamento na época.
Nada no Diário da Câmara dos Senhores Deputados desse dia dá conta desse momento inaugural.
Na véspera, o rei D. Carlos I tinha assinalado a abertura solene do Parlamento, discursando na Câmara dos Pares do Reino. Os jornais descrevem pormenorizadamente o cortejo real e a cerimónia de abertura da sessão legislativa e concentram-se também na nova Sala das Sessões dos Deputados.
Com uma configuração em anfiteatro e iluminação natural por uma claraboia, a nova Sala dá a “aparência de uma grandeza que as suas dimensões realmente não têm” 2. Por detrás da Mesa da Presidência, destaca-se a estátua do rei D. Carlos I, símbolo do regime monárquico, que vive os seus derradeiros anos.
Amplamente elogiada pela grandiosidade, harmonia de proporções, detalhes soberbos e conforto, apesar de ainda incompleta em pormenores decorativos, a nova Sala é também criticada pela “temperatura gélida” e pela acústica desadequada para um espaço “onde há que ouvir e onde há que dizer” 3.
A 16 de janeiro, o Deputado José Dias Ferreira compara a tribuna do orador a uma “cave”, onde, contrariado, por estar de costas para o Presidente, apenas comparece para se fazer ouvir pelos taquígrafos.
Mais tarde, em 1907, outro Deputado denuncia ainda o problema da acústica:
“Entende que as coisas são bem feitas quando satisfazem o fim para que foram imaginadas, e não por serem bonitas. Fazer uma sala com estátuas, que podem dar pasto à vista, mas que não impedem a necessidade de se empregarem esforços que prejudicam a laringe e os ouvidos, é um cúmulo.”
Em 1903, a nova Sala é também ocasião para expor o desinteresse da população pela vida política e parlamentar, que comparece em escasso número à inauguração. Um artigo de A Paródia sintetiza este sentimento:
“Ninguém teve curiosidade de ir ver o edifício novo! (…)
O sistema parlamentar tornou-se tão pouco interessante que nem mesmo para o ver funcionar não já em molas novas, mas em cadeiras novas, se desloca gente.”
Dias antes, a revista publicava uma caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, com a legenda “O novo Parlamento: sistema velho em casa nova”, numa referência à ausência de mudança trazida pelo “rotativismo” entre dois partidos – Partido Regenerador e Partido Progressista –, o sistema político que marcava o parlamentarismo da época.
Mas seria nesta "casa nova" que se desenrolariam vários momentos marcantes na vida política e parlamentar do país.
Desde logo, a contestação ao regime monárquico, agravada pela crise do Ultimato britânico de 1890, é protagonizada pelos deputados republicanos, que, no Parlamento, tiram partido da crise económica, da agitação social e dos escândalos que envolvem os governantes.
Apenas dois meses após a abertura do Parlamento, em março de 1903, eclodiram em Coimbra vários tumultos originados pela cobrança de imposto de selo aos vendedores ambulantes do mercado da cidade, que conduziram a confrontos violentos entre as forças militares a população.
Este episódio, que ficaria conhecido como a Revolta do Grelo, chega ao Parlamento, pela primeira vez, na sessão de 13 de março, com um deputado a pedir explicações ao Governo sobre a “espécie de revolução em Coimbra reunindo-se de repente 10 000 homens, sem aparecer uma providência de satisfação às reclamações populares”, acusando a atuação das forças militares de selvajaria, ao disparar sobre o povo sem aviso prévio.
Em 1906, já com João Franco no Governo, o adiantamento de verbas à Casa Real, como forma de os sucessivos Governos cobrirem as despesas que ultrapassavam a dotação orçamental fixada para os gastos reais, é uma das matérias aproveitadas pelos republicanos para criticar o regime.
A 20 de novembro, Afonso Costa ataca o Governo sobre a ausência de explicações relativamente a esta matéria, referindo que as quantias abonadas à Casa Real constituíam desvios fraudulentos dos cofres do Estado, que estavam a ser encobertos.
Dirigindo-se a João Franco, exige que sejam trazidas à Câmara as contas dos adiantamentos feitos e que sejam repostas as "quantias desviadas com todos os juros" e que, uma vez liquidada a dívida, seja dito ao Rei que se retire do país para "não ter de entrar numa prisão".
Por entre sussurros e palavras pedindo ordem na agitação instalada no Hemiciclo, o Deputado republicano acaba por ser expulso do Hemiciclo acompanhado por forças de segurança, ao afirmar:
"Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI!"
No Parlamento, é ainda aclamado o último rei, D. Manuel II, a 6 de maio de 1908, após o Regicídio que vitimou o seu pai e o seu irmão mais velho. Mas, nem o novo rei, nem a nomeação de um Governo de “acalmação” surtem efeito e a instabilidade política dita o fim do regime monárquico.
Teresa Fonseca
[1] Ver vídeo “Seis estátuas do Hemiciclo” – parte 1 e parte 2.
[2] Diário Ilustrado, 3 de janeiro de 1903.
[3] Jornal do Comércio, 8 de janeiro de 1903.
Fontes e bibliografia:
100 anos de Parlamento, Lisboa, Assembleia da República, 2003.
Arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), Lisboa, Assembleia da República, 2009.
Arquivo Fotográfico da Assembleia da República
Biblioteca Nacional de Portugal
Imagens e apontamentos | Sala das Sessões
O início dos trabalhos no Parlamento: 1821 | 1911 | 1935 | 1975
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