" />
O projeto de revisão constitucional que desafiou o regime do Estado Novo.
O debate parlamentar da revisão constitucional, na generalidade, iniciou-se na Assembleia Nacional a 15 de junho de 1971. Para lá dos liberais, mais dois grupos marcaram a sua presença: o dos deputados «centristas», que desejavam reformas, mas suaves, e, portanto, apoiavam a proposta do Governo; e o dos deputados conservadores, tementes das mudanças que poderiam resultar da revisão.[1]
Os temas que mais monopolizaram as intervenções foram os direitos, liberdades e garantias, o modo de eleição do Presidente da República, e o ultramar, isto é, os assuntos que, no fundo, geravam maiores divergências,[2] se bem que a própria revisão estava longe de ser consensual.
O conservador Rui de Moura Ramos, por exemplo, manifestou muitas dúvidas quanto à oportunidade da revisão, numa altura em que o País estava em guerra e era, por isso, fundamental que, na “frente de combate” interna se zelasse pela unidade nacional, a qual poderia ser ameaçada pelas alterações propostas. E questionava: «fazendo alterações que só aparentemente não têm grande significação, não estaremos nós a minar perigosamente, enfraquecendo-o, o princípio da unidade, que tanto se impõe defender e fortalecer neste momento crucial para a vida da Nação?».
O centrista Ricardo Horta foi um dos que procurou afastar este tipo de preocupações, chamando a atenção para o caráter restrito da revisão, que procurava, apenas, «ajustar as instituições às exigências das circunstâncias, adaptá-las às realidades concretas», sem constituir uma «mutação radical», ou «uma reforma no sentido revolucionário da palavra».
Do lado liberal, Mota Amaral mostrou-se convicto da necessidade urgente de atualizar a Constituição, colocando-a em conformidade com as exigências de uma sociedade que então vivia profundas transformações e preparando-a para as que viriam num futuro próximo. Dias mais tarde, Miller Guerra reforçaria a sua argumentação, estabelecendo uma ligação entre mudança política e progresso geral:
«A conservação de uma certa espécie de ordem, estabilidade e equilíbrio, definidos pelo Poder público e pelas classes dirigentes, é em grande parte incompatível com o progresso económico-social. A rapidez da evolução transtorna inevitavelmente a ordem antiga, causa perturbações, traz à superfície divergências, revela antagonismos. Mas o progresso comporta riscos que mais cedo ou mais tarde a sociedade tem de correr, a menos que o medo de um surto evolutivo lhe faça preferir a imobilidade da vida e da história. […] O meu modo de ver ficou expresso com clareza, como convém em matéria sempre tão controversa, mas agora mais do que nunca, porque nunca o mundo andou com maior velocidade, os diques de defesa foram mais quebradiços, os textos legais envelheceram com tamanha rapidez».
Já Magalhães Mota resumiria o que para ele estava em causa da seguinte maneira:
«Creio firmemente que o grande problema que a revisão constitucional em curso nos coloca é aquele que comecei por referir: a passagem de uma sociedade em que a maior parte dos cidadãos vive em situação de marginalidade política para uma sociedade aberta e participada.»
No segundo dia do debate, Sá Carneiro, num longo discurso, que acabou por se assemelhar a uma apresentação parlamentar do projeto liberal de revisão constitucional, explorou profundamente o ponto dos direitos, liberdades e garantias. Após explicar a maneira como as sociedades contemporâneas tendiam a restringir a liberdade do Homem, e de como, perante essa realidade, a defesa das liberdades fundamentais e «o papel da Constituição como principal garantia do Estado de direito» ganhavam renovada importância, traçou um cenário negro quanto às liberdades em Portugal, identificando o caso da «liberdade física» como o mais grave, visto, por exemplo, ser possível prolongar a medida de prisão preventiva indefinidamente, não obstante as penas perpétuas serem proibidas. E disto concluiu:
«Entre nós as garantias individuais acham-se, de facto, à mercê do Governo. Hoje mais do que nunca a garantia dos cidadãos, tanto pelo que respeita aos seus direitos como pelo que se refere à limitação do poder político, há de estar nas normas constitucionais e no controle da constitucionalidade das leis. A Constituição tem de consagrar, clara e insofismavelmente, os princípios e as normas que institucionalizem a liberdade da pessoa, fundamento do Estado, fim e limite último do poder político, cabendo-lhe também garantir o respeito dos seus próprios preceitos. Essa é, em meu entender, a tarefa essencial que nos incumbe».
Nesta matéria, Miller Guerra enfatizou a relação entre liberdades e desenvolvimento:
«O estilo autoritário do poder político, o seu caráter pessoal, o antiliberalismo e a fidelidade intransigente a uma certa forma de tradição histórica desenham a fisionomia geral do regime que vigorou desde 1926. Dentro deste sistema emerge uma caraterística com desusada relevância: a supressão das liberdades públicas, traduzida pela censura, no campo do espírito, pela polícia política, no campo do comportamento físico. […] Por isso, estou convicto de que a restauração das liberdades públicas é a condição prioritária do desenvolvimento. Esta convicção não se baseia apenas em razões de ordem moral, mas igualmente em razões crematísticas, pois onde se suprimiram liberdades levantam-se embargos invencíveis a qualquer tipo de desenvolvimento: técnico, científico, económico, cultural, literário ou qualquer outro.»
Embora tenha elogiado o projeto da Ala Liberal, o centrista Rafael Ávila de Azevedo remeteu a adoção das suas propostas neste âmbito para uma futura revisão constitucional, por considerar que a falta de instrução e de preparação cívica dos portugueses tornava inoportuno o imediato alargamento e reforço dos seus direitos individuais, para o qual, os deputados mais conservadores da Assembleia, como seria de esperar, olhavam como uma caixa de Pandora que era imprescindível manter bem fechada.
Um deles, Raul Cunha Araújo, alertou que se estava a pretender «ressuscitar um passado bem morto», aludindo ao liberalismo individualista em que assentava o projeto redigido por Sá Carneiro e Mota Amaral, e invocou a manutenção da capacidade do Estado em combater a «subversão» para rejeitar «a constitucionalização das liberdades individuais nos termos ousados em que se têm defendido». Outro, João Ruiz de Almeida Garrett, foi categórico:
«Que, sobretudo depois da crise do capitalismo liberal subsequente à 1.ª Grande Guerra, por toda a parte, Estado e sociedade se aproximaram, é indiscutível. O gozo natural das liberdades individuais levou à exploração, à desagregação social; o exercício da liberdade conduziu à sua própria destruição. […] Em face deste panorama, sem dúvida verdadeiro, surpreende que se queira ver na simples reafirmação das liberdades do indivíduo a panaceia de todos os males. […] Em história, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Foi a liberdade ilimitada que se destruiu a si própria, e será ela que se voltará a negar.»
Quanto ao tema do modo de eleição do Presidente da República, o problema central, para a Ala Liberal, pode ser resumido nesta passagem do já mencionado discurso de Sá Carneiro:
«Verifica-se um acentuado desequilíbrio entre os órgãos de soberania, encontrando-se a Assembleia Nacional subalternizada e subordinada ao Chefe do Estado. O Presidente da República concentra todos os poderes, exercendo-os através do Chefe do Governo, mas o processo da sua eleição não é consentâneo com os princípios democráticos de soberania popular inscritos na Constituição nem assegura representatividade ao detentor do Poder, pois o colégio eleitoral carece dela e encontra-se em última análise dependente do Governo […] aproximamo-nos por isso de uma autocracia.»
No fundo, o Presidente da República tinha demasiados poderes para não dever ser eleito por todos os cidadãos e, logo, o sufrágio direto e universal devia ser reinstituído. Para lá de uma maior legitimidade para exercer o cargo, a escolha de um Presidente por este meio significava que a população, ainda que indiretamente, poderia pronunciar-se sobre a condução dos destinos do País, visto o Governo depender da nomeação presidencial e não responder perante a Assembleia Nacional.
Segundo Mota Amaral, «o sufrágio universal para a eleição do Chefe do Estado é, por mais que se diga contra ele, a melhor forma que até hoje se descobriu para assegurar a participação dos cidadãos na determinação das grandes linhas de rumo da sociedade política. […] O relevo das funções em causa propicia a reflexão coletiva e a discussão das questões de mais vital interesse ao País».
Almeida Garrett respondeu aos argumentos dos liberais quanto à falta de capacidade de intervenção política dos cidadãos causada pelo sufrágio indireto do Presidente da República. Visto que a Constituição consagrava o caráter corporativo do Estado português, Garrett era da opinião que a escolha do Presidente da República por um colégio integrado por representantes dos corpos da Nação - famílias, municípios, corporações - a partir de 1959 tinha sido nada mais do que um ato de coerência com aquele princípio. E os cidadãos não perdiam, por isso, a sua intervenção política: esta dava-se, contudo, não enquanto indivíduos, mas como membros dos diferentes corpos a que pertenciam, não prejudicando, ainda, a legitimidade de quem fosse eleito.
Cunha Araújo denunciou a posição dos liberais como uma rutura com a ideia de evolução na continuidade que presidia à revisão constitucional proposta pelo Governo e como desviante do «espírito apartidário» da Ação Nacional Popular (ex-União Nacional), em cujas listas tinham sido eleitos. A seu ver, a proposta do sufrágio direto era potencialmente subversiva, insinuando até que poderia tratar-se de uma tentativa de propiciar um golpe de estado constitucional, contrapondo-lhe o «sufrágio orgânico» como o «único capaz de possibilitar uma eleição consciente do Chefe do Estado com a efetiva participação da Nação organizada; organizada e consciente». Com efeito, para Cunha Araújo, o sufrágio direto não era adequado a um povo «impreparado politicamente» e «facilmente sugestionável por propagandas fáceis», para além de gerar «a intranquilidade e a balbúrdia».
Assinale-se, ainda, que, fora do círculo da Ala Liberal, houve quem considerasse preferível o sufrágio direto, como Ávila de Azevedo e Albino dos Reis, mas, para os quais, não era oportuna a sua reinstituição no contexto que então se vivia, justificação logo explorada, com ironia, por Magalhães Mota:
«Não deixa de ser curioso, aliás, assinalar como a argumentação que vem sendo produzida para a manutenção do sistema atual não combate no campo dos princípios: vai ater-se, quase exclusivamente, a critérios de oportunidade que, ao menos, oferecem a vantagem de ser “subjetivos”.»
Como se referiu na primeira parte deste artigo, a Ala Liberal, preferira não sugerir alterações ao estatuto do ultramar no seu projeto. Embora Sá Carneiro, como se viu, não tenha sido completamente claro quanto ao significado daquela opção, o debate veio a demonstrar que a ideia era poder apoiar a proposta do Governo, pelas razões táticas já igualmente apontadas na primeira parte deste artigo. Assim, compreendem-se as palavras de Pinto Balsemão, quando declarou:
«Neste importante capítulo do ultramar, rever a Constituição é, portanto, cumprir a Constituição. Manter inalterado o seu texto seria negar o seu espírito, seria fechar os olhos à realidade, seria recusar a compatriotas nossos - brancos e pretos - o direito, que nós na metrópole detemos, de dispormos de organização política e administrativa própria. Deixemos, pois, os integracionistas com os seus sonhos respeitáveis e apoiemos o Governo na sua orientação realista de preparar o futuro das diferentes parcelas do território nacional.»
Os «integracionistas» de que Balsemão falava eram deputados ultraconservadores como Moura Ramos, ou Francisco Casal Ribeiro, críticos ferozes da autonomia das províncias ultramarinas, mesmo que progressiva.
O primeiro, por exemplo, achava que, numa altura em que Portugal travava uma guerra em África, em três frentes, e, por isso, mais do que nunca, era fundamental manter a ordem e a unidade nacionais, não se deviam estar a discutir «profundas transformações» ao estatuto do ultramar, ainda para mais com aquele teor. Moura Ramos condenou a proposta governamental de eliminação do artigo 133.º, que atribuía à «essência orgânica da Nação Portuguesa» a «função histórica» de colonizar, dominar e civilizar os territórios ultramarinos[3], pois correspondia a retirar da Constituição «a motivação e justificação da presença ultramarina» pela qual Portugal se batia, naquele momento, em África. Em simultâneo, olhava para a autonomia das províncias ultramarinas como «o primeiro degrau para a obtenção de uma independência precoce», preocupação que Casal Ribeiro também partilhava, quando, referindo-se ao possível efeito subversivo da palavra «autonomia», exclamou:
«Há que deixar, aos que vierem e cujas intenções podem não ser nem tão claras nem tão puras, todas as portas fechadas no trinco, para que não haja gazua que as abra; e há palavras, quanto a mim, que podem transformar-se em autênticas gazuas!»
A 30 de junho, no final do debate na generalidade, o deputado José de Almeida Cotta informou o Plenário de que o Governo tinha decidido adotar o projeto da comissão eventual. De seguida, quando o Presidente da Assembleia Nacional, Carlos do Amaral Neto, anunciou a abertura do debate na especialidade, Manuel Trigo Pereira pediu a palavra para fazer um requerimento, solicitando que a proposta inicial do Governo e os dois projetos dos deputados fossem retirados da discussão em favor do projeto da comissão, ou seja, só este último seria alvo de análise e votação. Não obstante as tentativas de Sá Carneiro em impedir a votação do requerimento, invocando o Regimento, esta acabou mesmo por ocorrer, tendo aquele sido aprovado.[4]
Como demonstração de desagrado e indignação perante o sucedido, a maior parte dos membros da Ala Liberal não esteve presente nas cinco sessões de debate na especialidade, que culminou na aprovação da revisão constitucional no dia 7 de julho.[5]
A forma como decorrera este processo, bem como o seu desfecho, reveladores de que o reformismo marcelista era apenas superficial e não correspondia a uma vontade de real liberalização política, marcou o início de uma nova etapa na relação entre a Ala Liberal e Marcelo Caetano, caraterizada por um distanciamento progressivo. Este, a médio prazo, levaria, por um lado, à renúncia, ou à recusa de recandidatura, de boa parte dos deputados liberais, frustrados com os repetidos bloqueios às suas propostas reformistas, e, por outro, ao cada vez maior isolamento de Caetano, que, para lá dos apoios à esquerda, perderia, também, definitivamente, o suporte da ala mais conservadora do regime, em desacordo com a sua política ultramarina.[6]
Ricardo Revez
[1] Rita Almeida de Carvalho, «O Marcelismo à Luz da Revisão Constitucional de 1971», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), s. l., Círculo de Leitores, 2004, pp. Carvalho, pp. 50-51.
[2] Rita Almeida de Carvalho, op. cit., p. 50.
[3] Constituição Política da República Portuguesa, s. l., Imprensa Nacional de Angola, 1968, p. 41.
[4] Com a reabertura da Assembleia Nacional, depois das férias, Sá Carneiro apresentou um projeto de lei que considerava inconstitucional a revisão constitucional aprovada, mas, tendo a comissão de Legislação e Redação emitido um parecer negativo, nunca chegou a ser discutido, nem publicado no Diário das Sessões (Jorge Miranda, pp. 9-10).
[5] A ala mais conservadora da Assembleia Nacional também não participou na votação final (Rita Almeida de Carvalho, op. cit., pp. 71-72).
[6] Neste parágrafo, exceto onde já indicado com nota própria: Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), pp. 22-23; Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), vol. VII de História de Portugal (dir. de José Mattoso), s. l., Editorial Estampa, 1998, p. 491; Rita Almeida de Carvalho, op. cit., p. 71; Tiago Fernandes, Nem Ditadura, Nem Revolução: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974), Lisboa, Assembleia da República / Dom Quixote, 2006, pp. 116-117.