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A ALA LIBERAL E A REVISÃO CONSTITUCIONAL DE 1971


O projeto de revisão constitucional que desafiou o regime do Estado Novo.

Caricatura

A 2 de dezembro de 1970, o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, deslocou-se ao Palácio de São Bento para apresentar, perante a Assembleia Nacional, a proposta de revisão constitucional do Governo. A sua política reformista, que suscitara, inicialmente grandes esperanças de democratização do regime, entrara, nesse ano de 1970, num período de retrocesso.1


Palácio da Assembleia Nacional, postal, Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

A desilusão com as eleições de 1969 para a Assembleia Nacional e a dinâmica oposicionista, entretanto ganha no seio dos sindicatos graças às "reformas" implementadas no ano anterior, resultaram no aumento e na radicalização da atividade da Oposição. A reação do Governo fez-se sentir com o agravamento da repressão policial e com o retrocesso legislativo no campo sindical e laboral.2

Apesar disso, havia ainda quem acreditasse que o regime podia ser democratizado por dentro, pacificamente, por meio da conquista progressiva de direitos e liberdades. Tratava-se da chamada «Ala Liberal», um grupo de deputados que tinha aceitado integrar as listas da União Nacional, em 1969, com o objetivo de, contra os setores conservadores do regime, apoiar Caetano nas suas reformas, reservando, no entanto, um estatuto de independência e liberdade face ao Governo e fazendo depender o seu suporte da aprovação de medidas que fossem no sentido da desejada democratização.3


Marcelo Caetano reunido com Deputados na Biblioteca da Assembleia Nacional, fotografia de Miranda Castela, AHP.

Os liberais consideravam a segunda sessão legislativa, então no seu começo, como uma fase decisiva, durante a qual se verificaria se o regime iria, ou não, evoluir verdadeiramente num sentido democrático.4 A revisão constitucional surgia, aos seus olhos, certamente, como o momento-chave. Aliás, o motivo que levara a então figura mais destacada da Ala Liberal, Francisco Sá Carneiro,5 a candidatar-se a deputado tinha sido a vontade de aproveitar a revisão para tentar promover a democratização do regime, segundo o colega Joaquim Pinto Machado.6


Francisco Sá Carneiro, AHP.

No entanto, para a Ala Liberal, a proposta governamental7 revelou-se «um balde de água fria em manhã de inverno», nas palavras do historiador José Manuel Tavares Castilho.8 No seu discurso, Marcelo Caetano foi claro nas intenções que haviam presidido à elaboração do texto: «O propósito que o Governo agora visa é justamente o de atualizar e revitalizar o texto constitucional. Não se trata, como é óbvio, de alterá-lo radicalmente.» Ou seja, fazendo justiça ao seu «propósito de renovação na continuidade», «sem espírito de demolição, nem frenesi de mudança», Caetano, longe de promover uma verdadeira liberalização - muito menos preparar uma transição democrática - por via de uma mudança substancial da Constituição, limitava-se a propor um conjunto de modificações com pouco ou nenhum impacto no cariz autoritário e antiliberal do regime: um incremento das competências da Assembleia Nacional, mantendo-a, porém, na sua posição bastante secundária face ao Governo, o qual, por sua vez, via os seus poderes ainda mais aumentados e mantinha larga autonomia relativamente à mesma Assembleia; e uma tímida tentativa de dar mais garantias aos cidadãos no âmbito da aplicação das «medidas de segurança», sobretudo as «privativas ou restritivas da liberdade pessoal», para responder, provavelmente, às denúncias de abusos policiais cometidos sobre os suspeitos de crimes políticos. Em simultâneo, mantinha o sufrágio indireto do Presidente da República e era omisso quanto à liberdade de imprensa.

A alteração mais profunda dizia respeito ao ultramar, em concordância com o projeto marcelista de «autonomia progressiva». Propunha-se a transformação das províncias ultramarinas em regiões autónomas, às quais se atribuía uma série de direitos, entre eles o de ter os seus próprios «órgãos eletivos de governo», com competência legislativa e executiva, administrar as suas finanças, e «possuir regime económico adequado às necessidades do seu desenvolvimento e do bem-estar da sua população». Para sossegar os mais conservadores, reafirmavam-se «a unidade da Nação», «a solidariedade entre todas as parcelas do território português», e «a integridade da soberania do Estado». Do seu discurso, inferia-se, ainda, que o Presidente do Conselho assegurava a continuação da guerra em África, a qual, aliás, era essencial para o tal projeto de autonomia progressiva.9


Mota Amaral, AHP.

Havia na proposta governamental a intenção de agradar a liberais e a conservadores, fazendo algumas cedências a um e a outro setor.10 Para os primeiros, o que Caetano oferecia era muito escasso e não mudava em nada a essência do regime.11 Era necessário agir. Sá Carneiro e João Bosco Mota Amaral redigiram, então, em muito pouco tempo, um projeto de revisão constitucional em linha com as suas ideias de liberalização, que foi publicado no suplemento ao Diário das Sessões da Assembleia Nacional no dia 19 de dezembro de 1970 como projeto de lei n.º 6/X. Assinado por mais treze deputados, entre eles, Francisco Pinto Balsemão, João Pedro Miller Guerra, Joaquim Magalhães Mota, Joaquim Pinto Machado e José Gabriel Correia da Cunha, foi muito mal recebido por Marcelo Caetano, que logo escreveu a Mota Amaral manifestando «profunda surpresa» perante o seu conteúdo, «hostil à política» que havia adotado e «assente em princípios e seguindo orientações radicalmente opostas» às declaradas no seu discurso e no relatório da proposta do Governo.12


Pinto Balsemão, AHP.

Caetano acusou os liberais de quererem «desarmar o Poder» num momento «tão cheio de incertezas e de ameaças» e de procurarem «precipitar e radicalizar soluções que não deixariam de suscitar viva reação e obrigar o Governo a procurar apoios onde os encontre».13 Estava consumada a rutura entre Caetano e os liberais,14 cuja relação, diga-se, tinha assentado, desde o início, num equívoco causado pelo facto de cada um dos lados estar convencido de que o outro lhe podia dar mais do que aquilo a que, de facto, se tinha comprometido.15


Miller Guerra, AHP.

O projeto de revisão constitucional da Ala Liberal era, efetivamente, demasiado avançado para poder ter a aprovação do Presidente do Conselho. Como seria de esperar, tendo em conta os fins pelos quais os deputados liberais se batiam, o texto caraterizava-se por uma muito significativa ampliação dos direitos, liberdades e garantias. Retiravam-se os condicionalismos aos direitos ao trabalho e à inviolabilidade do domicílio e sigilo da correspondência; introduziam-se o direito de emigração, bem como o de deslocação e fixação no território nacional; determinava-se o direito à «informação livre e verídica», e conferia-se ao Estado a função de zelar pela «livre formação e expressão» da opinião pública; estabeleciam-se as bases constitucionais para uma futura lei de imprensa,16 como a ausência de censura administrativa, prévia ou não, a «liberdade de obtenção e divulgação de informações», a livre fundação de «empresas jornalísticas, editoras e noticiosas», ou a proteção da independência e do sigilo profissional dos jornalistas; suprimia-se o reconhecimento da religião católica como «religião da Nação portuguesa» e consagrava-se a liberdade religiosa, com o culto limitado, somente, por atos «incompatíveis com a vida e integridade física da pessoa humana e com os bons costumes».


Magalhães Mota, AHP.

Era também notória a atenção especial dada à secção relativa aos procedimentos policiais e judiciais, procurando garantir os direitos dos suspeitos e arguidos e evitar os abusos das autoridades no que tinha a ver com a instrução do processo e a aplicação de medidas de segurança e de «penas privativas ou restritivas da liberdade pessoal», com a prisão preventiva sem culpa formada, por exemplo, a ser alvo de limitações consideráveis. Refira-se que, além disso, era atribuída ao Estado a responsabilidade de garantir «o efetivo exercício e funcionamento dos direitos, liberdades e garantias», sublinhando a necessidade de vigilância do estrito cumprimento das normas constitucionais.

O outro tópico a que a Ala Liberal mostrou maior dedicação foi o dos órgãos de soberania. A modificação mais importante que propunha era o regresso ao sufrágio direto e universal do Presidente da República, visto que este, desde 1959, era escolhido por um colégio eleitoral. Permitir a sua eleição por esse modo, poderia permitir a ascensão ao cargo de alguém favorável ao desencadear de um processo de democratização,17 beneficiando dos vastos poderes de que dispunha - desde logo o de nomear e exonerar os membros do Governo -, e com uma verdadeira legitimidade, oriunda do exercício da soberania popular por parte dos cidadãos votantes. Sintomática deste propósito é a concessão de um novo poder presidencial, a liderança suprema das Forças Armadas, as quais seria imprescindível manter sob controlo do chefe do Estado.


Correia da Cunha, AHP.

Em simultâneo, os liberais procuraram aumentar as competências da Assembleia Nacional, desde logo, as que lhe eram exclusivas em termos de aprovação das bases gerais das leis. Estas passaram a incluir, por exemplo, as referentes à eleição do Presidente da República e da Assembleia Nacional, às garantias de processo penal, e ao exercício das liberdades de informação, expressão, ensino, reunião, associação, religião, e migração, tudo matérias, que, como vimos, eram centrais ao projeto liberal e sobre as quais era preciso influir, com autonomia face ao Governo. A Assembleia Nacional adquiria, igualmente, maior capacidade de escrutínio da ação do Governo na apreciação e ratificação de decretos-leis por este publicados fora do âmbito das autorizações legislativas.

Quanto à opção de não incluir qualquer menção às províncias ultramarinas no projeto, Sá Carneiro foi pouco claro na sua justificação: «A sua omissão no projeto pode ter vários sentidos, prestar-se a diferentes interpretações, desde o apoio à proposta do Governo até à defesa da manutenção das atuais disposições. […] Penso que a omissão da matéria no projeto n.º 6/X revela apenas que os seus signatários não sentiram necessidade de a contemplar. Se o fizeram em virtude de perfilharem os pontos de vista do Governo ou se optaram pela inalteração do texto atual, caberá a cada um dizê-lo na altura própria.» Para Fernando Rosas, a atitude dos liberais relaciona-se com a sua convicção no potencial do aumento das liberdades para gerar, posteriormente, uma solução política para a guerra, isto é, decidiram-se por um adiamento tático dessa discussão.18 Já Tiago Fernandes afirma que o silêncio sobre o ultramar seria uma «moeda de troca» para facilitar a concordância de Marcelo Caetano com a eleição do Presidente da República por sufrágio direto.19

A proposta do Governo, o projeto da Ala Liberal, e um outro projeto, o n.º 7/X, da autoria de um grupo de deputados conservadores, seguiram para a Câmara Corporativa para apreciação. Os pareceres surgiram nas Atas da Câmara Corporativa a 16 de março de 1971. A proposta foi recomendada para aprovação na generalidade por considerar-se que as «adaptações e aperfeiçoamentos» nela inclusos, embora necessários, não significavam uma «quebra no regime constitucional estabelecido e nas instituições ideadas, vão decorridos quase quarenta anos». Quanto aos dois projetos, a sua aprovação na generalidade não foi aconselhada, com a deliberação relativa ao dos liberais a firmar-se, segundo o procurador da Câmara Corporativa André Gonçalves Pereira, «não só na falta de bondade ou oportunidade das propostas […], mas também em exceder o seu espírito os limites em que deve manter-se a revisão constitucional».20

Quanto à comissão eventual constituída pela Assembleia Nacional para avaliar os três documentos, presidida pelo histórico Albino dos Reis, não se pronunciou, na generalidade, sobre os dois projetos com origem parlamentar. Limitou-se a aprovar a proposta do Governo na generalidade e, depois, tomando-a como base de trabalho, analisou-a na especialidade, confrontando-a, sempre que havia «matéria coincidente», com os projetos. Todavia, a parte destes que incidia sobre assuntos diferentes da proposta também foi alvo de exame por parte da comissão na especialidade. Do processo resultou um novo projeto, que não alterou o essencial da proposta governamental, tendo sido muito poucos os contributos adotados oriundos dos textos da Ala Liberal e dos conservadores.

(continua)

Ricardo Revez

[1] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), vol. VII de História de Portugal (dir. de José Mattoso), s. l., Editorial Estampa, 1998, p. 490.

[2] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 490; cf. Fernando Rosas, Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976), Lisboa, Editorial Notícias, 2003, pp. 117-121; cf. Fátima Patriarca, «Estado Social: a Caixa de Pandora», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), s. l., Círculo de Leitores, 2004.

[3] Tiago Fernandes, Nem Ditadura, Nem Revolução: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974), Lisboa, Assembleia da República / Dom Quixote, 2006, pp. 77-78, p. 117.

[4] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 86-87.

[5] O líder original da Ala Liberal, José Pedro Pinto Leite, tinha falecido em julho de 1970.

[6] Tiago Fernandes, op. cit., p. 91.

[7] Para ter acesso à segunda parte do suplemento, onde se encontra o texto da proposta do Governo, é necessário descarregar o PDF do documento na totalidade.

[8] Manuel Tavares Castilho, Marcello Caetano. Uma Biografia Política, Coimbra, Almedina, 2012, p. 625.

[9] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 487.

[10] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 90-91.

[11] José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 625.
Como se verá na segunda parte do artigo, os deputados mais conservadores ficaram insatisfeitos com a autonomia político-administrativa que a proposta do Governo pretendia atribuir às províncias ultramarinas. Isto parece indicar que as cedências que Caetano lhes fez - segundo Tiago Fernandes, a manutenção da guerra em África e do estatuto do Presidente da República (Tiago Fernandes, op. cit., 90) - não parecem ter compensado aquela decisão do Presidente do Conselho.

[12] José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 626.

[13] José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 626.

[14] Rita Almeida de Carvalho, «O Marcelismo à Luz da Revisão Constitucional de 1971», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), p. 44.

[15] Cf. Rita Almeida de Carvalho, op. cit., pp. 39-41.

[16] Em novembro de 1970, os liberais tinham já apresentado um projeto de lei de imprensa, cuja discussão só viria a decorrer em meados do ano seguinte, em conjunto com uma proposta do Governo (cf. Tiago Fernandes, op. cit., 100-101).

[17] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 93-94; Rita Almeida de Carvalho, op. cit., p. 58.

[18] Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), p. 21.

[19] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 94-95.

[20] Ao contrário do que as palavras de André Gonçalves Pereira parecem mostrar - num esforço de compreensão do motivo da decisão dos seus colegas -, o procurador foi um dos três que votou vencido o parecer, juntamente com Maria de Lourdes Pintasilgo e Diogo Freitas do Amaral. Os dois primeiros defendiam que o projeto merecia ter tido uma discussão na especialidade, e Freitas do Amaral concordava com várias das alterações propostas pelos liberais (cf. Actas da Câmara Corporativa, n.º 67, 16 de março de 1971, pp. 683-684).