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Do direito de iniciativa legislativa de cidadãos fixado na Constituição, até à lei que o regula e às leis que dele resultam.
A revisão constitucional aprovada em 1997 alargou a grupos de cidadãos eleitores o direito de apresentação de iniciativas legislativas à Assembleia da República.
Mas foi necessário aguardar seis anos para que a Lei n.º 17/2003, de 4 de junho, regulasse os termos e condições em que este direito pode ser exercido, bem como a participação dos cidadãos proponentes no subsequente procedimento legislativo.
A 20 de setembro de 1997, foi publicada a Lei Constitucional n.º 1/97 – “Quarta revisão constitucional”, que aprofundou a dimensão da participação dos cidadãos na vida pública e política. São exemplos desse aprofundamento, além da previsão do direito de iniciativa legislativa de cidadãos, o reforço do conteúdo dos direitos de petição e ação popular (artigo 52.º, n.º 1 e 3), a garantia da participação dos cidadãos para assegurar o direito ao ambiente (artigo 66.º, n.º 2) ou ainda a admissão do direito de iniciativa referendária por parte de cidadãos (artigos 115.º e 240.º).
Refira-se que antes da consagração constitucional e legal do direito de iniciativa legislativa de cidadãos, a Assembleia da República apreciou iniciativas desencadeadas por cidadãos, apresentadas no quadro do direito de petição. Também no âmbito deste processo de revisão constitucional, por despacho do então Presidente, António Almeida Santos, foram distribuídos pelos grupos parlamentares e considerados como contributos, um conjunto de textos subscritos por cidadãos ou associações, que foram igualmente ouvidos pela Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (1). Não deixa de ser curioso o facto de ter havido cidadãos que, antecipando a consagração daquele direito, tenham desejado apresentar contributos ainda no domínio da iniciativa e não apenas durante a discussão das propostas, e que tenha havido recetividade para os receber, embora não formalmente como projetos de revisão constitucional.
Logo após a entrada em vigor desta revisão constitucional, foi apresentado o projeto de lei n.º 422/VII/3.ª (PCP) “Sobre iniciativa legislativa popular”, seguindo-se os projetos de lei n.º 455/VII/3.ª (PSD) “Regula a iniciativa da Lei por grupos de cidadãos eleitores” e n.º 456/VII/3.ª (PS) “Regula e garante o exercício do direito de Iniciativa Legislativa Popular”. Estes projetos, depois de terem sido objeto de relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias, foram debatidos e aprovados na generalidade, tendo caducado com o final da legislatura, em outubro de 1999.
Na VIII Legislatura (2), com o objetivo de regular o direito de cidadãos eleitores apresentarem iniciativas legislativas, foram de novo apresentados quatro projetos de lei: n.º 75/VI II/1.ª (PSD), n.º 95/VIII/1.ª (PCP), n.º 192/VIII/1.ª (PS) e n.º 193/VIII/1.ª (BE). Estes projetos foram igualmente objeto de relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, tendo sido debatidos e aprovados na generalidade em maio de 2000. A dissolução da Assembleia da República no início de 2002 conduziu à sua caducidade.
Na IX Legislatura (3), esta questão voltou a ser debatida, na sequência da apresentação dos projetos de lei n.º 9/IX/1.ª (BE), n.º 51/IX/1.ª (PS), n.º 68/IX/1.ª (PCP) e n.º 145/IX/1.ª (PSD/CDS-PP), que foram objeto de relatório e parecer, debatidos e aprovados, tendo dado origem à Lei n.º 17/2003, de 4 de junho, “Iniciativa legislativa de cidadãos”.
Os projetos apresentados divergiam entre si em vários pontos, designadamente no número de cidadãos eleitores necessário para subscrever uma iniciativa legislativa. Assim, enquanto o projeto de lei apresentado pelo BE exigia 4000 assinaturas, o mesmo número então exigido para que uma petição pudesse ser apreciada em Plenário, a iniciativa do PS defendia que deveria reunir assinaturas em quantidade próxima do número de votos necessário para eleger um Deputado, pelo que propunha que os subscritores correspondessem a 0,3% dos inscritos no recenseamento em território nacional. O projeto do PCP considerava 5000 cidadãos eleitores como o número adequado, por ser o número exigido para a constituição de um partido político. Finalmente, o projeto apresentado pelos grupos parlamentares do PSD e do CDS-PP tomava como base o número médio de eleitores necessários para eleger um Deputado à Assembleia da República – 25 000 –, tendo em conta que são estes que podem apresentar projetos de lei. As iniciativas divergiam noutros aspetos, mesmo quanto aos subscritores, sendo que o projeto do PS reservava este direito aos cidadãos portugueses, enquanto os restantes não faziam qualquer referência à nacionalidade.
A Lei n.º 17/2003 veio a fixar em 35 000 o número mínimo de cidadãos eleitores necessários para exercer o direito de iniciativa legislativa e determinou que são titulares deste direito, os cidadãos regularmente inscritos no recenseamento eleitoral em território nacional e também os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro e regularmente recenseados, sempre que a iniciativa tenha por objeto matéria que lhes diga especificamente respeito.
As iniciativas legislativas de cidadãos têm os mesmos limites que são impostos às iniciativas apresentadas pelos Deputados, grupos parlamentares e Assembleias Legislativas das regiões autónomas e podem ter por objeto todas as matérias, salvo as alterações à Constituição, as iniciativas reservadas pela Constituição ao Governo e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas, as amnistias e perdões genéricos e ainda as que revistam natureza ou conteúdo orçamental, tributário ou financeiro.
Em 2005, é apresentada a primeira iniciativa legislativa de cidadãos, mas terão de decorrer sete anos para que outros projetos de lei subscritos por cidadãos deem entrada na Assembleia da República. Ou seja, quase uma década depois da aprovação da Lei n.º 17/2003, apenas tinha sido apresentada e debatida uma iniciativa legislativa de cidadãos, o que conduziu à apresentação de propostas de alteração, no sentido da redução do número de subscritores ou da sua simplificação, que foram debatidas na generalidade e rejeitadas (4). Duas iniciativas (5) apresentadas no mesmo ano, embora posteriormente, que visavam eliminar a discriminação relativa aos portugueses residentes no estrangeiro, foram aprovadas e deram origem à Lei n.º 26/2012, de 24 de julho, que introduziu a primeira alteração à Lei n.º 17/2003, de 4 de junho.
Em 2016, na XIII Legislatura, são de novo apresentados projetos de lei com o objetivo de reduzir o número de subscritores. Estas iniciativas surgem também na sequência da apreciação de uma petição, com mais de 4000 subscritores, na qual se solicitava a simplificação dos requisitos legais para a apresentação de iniciativas legislativas de cidadãos e de iniciativas populares de referendo e a consagração de prazos para a sua apreciação, invocando para o efeito os programas eleitorais dos diversos partidos políticos.
Os projetos de lei apresentados (6), que propõem a redução do número de subscritores, oscilando entre os 4000 e os 28 000, e a possibilidade de recolha e entrega através da Internet, são debatidos e aprovados, dando origem à Lei Orgânica n.º 1/2016, de 26 de agosto, que fixa em 20 000 o número mínimo de subscritores e prevê a possibilidade de apresentação das iniciativas legislativas de cidadãos por via eletrónica, designadamente através de plataforma eletrónica disponibilizada para o efeito pela Assembleia da República.
No ano seguinte, a Lei n.º 52/2017, de 13 de julho, que procedeu à 3.ª alteração à Lei n.º 17/2003, teve origem no projeto de lei n.º 527/XIII/2.ª subscrito por todos os grupos parlamentares, no âmbito do Grupo de Trabalho para o Parlamento Digital, criado em junho de 2016, pelo Presidente da Assembleia da República. Esta alteração deixou cair a obrigação da assinatura, substituída pela identificação dos subscritores, cuja autenticidade poderá ser verificada, e passou a permitir a possibilidade da sua recolha, simultânea e cumulativamente, em suporte de papel e por via eletrónica. A plataforma eletrónica ficou disponível em 2018.
A quarta alteração à Lei n.º 17/2003 foi aprovada pela Lei n.º 51/2020, de 25 de agosto, e resultou de iniciativa (Projeto de lei n.º 466/XIV/1.ª) apresentada pelo PAN que propunha a redução do número de subscritores para 15 000 e um alargamento das matérias que podem ser objeto de iniciativa legislativa de cidadãos, só tendo vingado esta última proposta.
Na X Legislatura, em 2005, foi apresentado o primeiro projeto de lei da iniciativa de cidadãos, o projeto de lei n.º 183/X/1.ª “Arquitetura: Um direito dos cidadãos, um ato próprio dos Arquitetos (revogação parcial do Decreto n.º 73/73, de 28 de fevereiro)”, subscrito por 36 783 cidadãos (7). Este projeto de lei, o único subscrito por cidadãos na IX Legislatura, foi objeto de um amplo debate, juntamente com a Proposta de Lei n.º 116/X/2.ª (Gov), tendo, para o efeito, sido criado um fórum na página da Internet da Assembleia da República, designado “Revisão do Decreto n.º 73/73”, entre março e maio de 2008. Ao longo deste processo foram recebidos contributos de diversas entidades, incluindo de 100 cidadãos, por escrito ou em audições promovidas para o efeito. O articulado que constava do projeto de lei apresentado pelos cidadãos foi rejeitado, mas espoletou um processo legislativo que deu origem à Lei n.º 31/2009, de 3 de julho.
Apenas sete anos depois, em 2012, já na XII Legislatura, são apresentadas quatro iniciativas legislativas de cidadãos, que versam sobre matérias completamente distintas: precariedade laboral, direitos dos animais, apoio à maternidade e paternidade e direitos individuais e comuns à água. Com exceção desta última, as restantes deram origem a leis, sendo que foram debatidas e votadas em conjunto com outras iniciativas. Assim, os projetos de lei n.º 142/XII/1.ª, n.º 790/XII/4.ª e n.º 976/XII/4.ª estiveram na origem, respetivamente, da Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, da Lei n.º 136/2015, de 7 de setembro e da Lei n.º 27/2016, de 23 de agosto.
Na XIII Legislatura, foram admitidas de novo quatro iniciativas legislativas de cidadãos, contudo nenhuma logrou ser aprovada como lei. Os projetos de lei n.º 944/XIII/3.ª “Consideração integral do tempo de serviço docente prestado durante as suspensões de contagem anteriores a 2018, para efeitos de progressão e valorização remuneratória”, e n.º 1236/XIII/4.ª “Termina com a atribuição de apoios financeiros por parte de entidades públicas para a realização de atividades tauromáquicas”, foram rejeitados.
O projeto de lei n.º 955/XIII/4.ª “Manutenção e abertura de farmácias nas instalações dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde”, depois de aprovado, foi vetado pelo Presidente da República, tendo sido rejeitado na fase da confirmação. O projeto de lei n.º 1195/XIII/4ª (8) “Revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de julho (Aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa)” foi objeto de parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, que concluiu que não cumpria os requisitos legalmente exigíveis por não traduzir o exercício de competências legislativas da Assembleia da República.
Na atual legislatura, já foram recebidas cinco iniciativas legislativas de cidadãos, sendo que uma foi retirada pelos proponentes (n.º 513/XIV/2.ª) e uma não foi admitida (n.º 33/XIV/1.ª) por não ter o número mínimo de subscritores. As três restantes estão em fase de tramitação, sendo que duas estão em apreciação em conjunto com outros projetos de lei apresentados posteriormente pelos grupos parlamentares:
- Projeto de lei n.º 133/XIV/1.ª – “Procede à segunda alteração ao regime da carreira especial de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica”, está a ser apreciado no seio de grupo de trabalho criado para o efeito, no âmbito da Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local; e
- Projeto de lei n.º 214/XIV/1.ª – “Procriação medicamente assistida post mortem.”
Importa ainda referir que a comissão representativa, composta por entre cinco a dez subscritores da iniciativa e por eles designados, tem direito a ser ouvida pela comissão parlamentar competente e a assistir aos debates sobre ela realizados em Plenário.
A iniciativa legislativa de cidadãos, não se tendo banalizado, tornou-se um instrumento importante de participação e capacitação dos cidadãos, permitindo-lhes não só a participação ativa ab initio em determinados processos legislativos, como também a marcação da agenda parlamentar. A crescente adesão resultou da capacidade da Assembleia da República, depois de ter criado este importante instrumento, ter sabido avaliá-lo, alterar as regras e criar os procedimentos necessários de forma a facilitar a sua utilização por parte dos cidadãos.
1 - Diário da Assembleia da República, II SÉRIE-RC, n.º 22 (1996.09.13). Procedeu-se à audição dos autores de petições que integram propostas ou sugestões de revisão constitucional: João Nabais (Associação Cívica Política XXI), João Joanaz de Melo e José Cunhal Sendim (Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente — GEOTA); Luís Costa (Confederação Portuguesa do Ensino não Estatal); Maria Teresa Féria de Almeida (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas); Joaquim Resende Nunes da Silva; Manuel Jorge Caramelo; João Armando Soares Pereira de Aragão e Rio; Isaías Araújo de Sousa; Henrique Medina Carreira; José Maria de Jesus Martins; José Manuel Ferreira da Silva Pereira; José de Sousa Esteves; Hilário Pereira de Carvalho; Armando da Silva Saturnino Monteiro e José Gerardo Barbosa Pereira.
2 - Iniciada a 25 de outubro de 1999.
3 - Iniciada a 5 de abril de 2002.
4 - O projeto de lei n.º 85/XII/1.ª (PCP) reduzia para 5000 o número mínimo de cidadãos subscritores, enquanto projeto de lei n.º 128/XII/1.ª (PEV) passava o número de subscritores para 5500 cidadãos eleitores. Já o projeto de lei n.º 123/XII/1.ª (BE) visava permitir o recurso à Internet ou ao correio eletrónico para a submissão de iniciativas.
5 - Projetos de lei n.º 186/XII/1.ª (PSD) e n.º 203/XII/1.ª (PS).
6 - Projetos de lei n.º 136/XIII/1.ª (PCP), n.º 167/XIII/1.ª (BE), n.º 188/XIII/1.ª (CDS-PP), n.º 208/XIII/1.ª (PEV), n.º 210/XIII/1.ª (PS) e n.º 212/XIII/1.ª (PSD).
7 - Curiosamente, na IX Legislatura, 54 839 cidadãos subscreveram a petição n.º 22/IX (1ª), através da qual apelavam à Assembleia da República para que tomasse as medidas legislativas que se impunham com vista à revogação do Decreto n.º 73/73, de 28 de fevereiro, salvaguardando o princípio de que os atos próprios da profissão de arquiteto competem exclusivamente a arquitetos. A apreciação desta petição deu origem à Resolução da Assembleia da República n.º 52/2003, de 11 de junho.
8 - Esta iniciativa deu entrada a 10 de abril de 2019, tendo sido renovada na XIV Legislatura, iniciada a 25 de outubro, a pedido da comissão representativa.