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"QUERO QUE A NAÇÃO ME CHAME INCONSTITUCIONAL"


A adjetivação ou a caracterização de uma iniciativa, de um artigo ou mesmo de um comportamento como anticonstitucional ou inconstitucional nasce com a instituição parlamentar, antes ainda da aprovação da primeira Constituição portuguesa, a 23 de setembro de 1822. Mais de um ano antes, a 30 de junho de 1821, já se defendia que a pensão atribuída a D. Maria Teresa e seu filho 1 não deveria ser mais considerável que a atribuída às outras senhoras Infantas “porque o contrário parecia injusto e inconstitucional” (intervenção do Deputado Sarmento nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, a 30 de junho de 1821).

Sala das Cortes de 1820

“As Cortes Constituintes de 1820”, por Roque Gameiro. In Quadros da História de Portugal, 1917).

Nessa mesma sessão, na sequência de uma intervenção do Deputado Borges Carneiro, que apelida de anticonstitucional e escandalosa uma proposta feita por um outro Deputado - no sentido de ser castigado um parlamentar, caso se provasse que a acusação que fizera a um membro do Governo era infundada -, há alguns momentos de agitação entre os que apoiam uma e outra posição, mas como anota o taquígrafo Marti, “tudo isto foi obra de um momento e passou com a maior viveza”.









Borges Carneiro

Retrato de Borges Carneiro, estudo para a luneta de Veloso Salgado, representando as Cortes Constituintes de 1821, 1920.

Já após a aprovação da Constituição, a 18 de dezembro de 1822, na Câmara dos Deputados, o Deputado Borges Carneiro intervém no âmbito do debate sobre a proposta de dissolução do batalhão que guarnecia a Ilha Terceira, referindo que “neste batalhão tem dominado muito o espírito inconstitucional promovido pelos milhares de morgados, fidalgos e aristocratas de que abunda aquela ilha vaidosa, e excitado pelo general Stockler 2, que, havendo dado palavra de honra ao seu amigo e membro do governo, o general Azedo, de ir para ali propagar o sistema constitucional, nada menos fez, e só tratou de animar aquele espírito, e de prolongar uma teimosa reação contra os princípios constitucionais. Não digo com isto que todo o batalhão seja anticonstitucional.” O fundamento para a dissolução do batalhão, apresentado pelo Governo, assentava nas contínuas desordens e desgraças que causava na ilha, não se fazendo referência a qualquer norma da Constituição.

Em 1838, na sequência da Revolução de Setembro de 1836, são eleitas as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, com poderes constituintes, delas tendo resultado a Constituição de 1838, jurada por D. Maria II. Apesar de ter sido temporariamente reposta em vigor a Constituição de 1822, as palavras inconstitucionalidade ou anticonstitucional são ditas sem que se invoque em concreto a norma constitucional violada, como aconteceu no debate realizado na sessão de 5 de maio de 1837, sobre o contrato feito pelo Governo com uma empresa que se propunha atravessar o Tejo, sem concurso prévio.

Câmara dos Deputados em 1835

A primeira sala da Câmara dos Deputados instalada no antigo Mosteiro de São Bento da Saúde. In A Guarda Avançada dos Domingos, 10 de maio de 1835.

O Deputado Almeida Garrett intervém, considerando que não havia que respeitar leis que não existiam e que o princípio devia ser o da utilidade pública:

“Bem, todos querem isso (a travessia do Tejo); mas dizem que também, querem que se salvem certos princípios. E quais são esses princípios que aqui se defendem? São porventura que o trabalho legislativo deve ser feito depois do administrativo? Eu também entendo ser mais natural! Mas tão inflexível é esse princípio? Pela minha parte estou pronto a transigir, quero carregar com todo o peso da responsabilidade, que daqui me vier: quero que a nação me chame inconstitucional. Não há de tal chamar. A nação tem mau juízo do que seus nojentos aduladores inculcam.”

Também na Assembleia Nacional Constituinte, eleita após a Revolução de 5 de Outubro de 1910, para elaborar a Constituição, se falou de inconstitucionalidade. Num debate realizado a 10 de agosto de 1911, que teve Ordem do Dia e Ordem da Noite e que haveria de prosseguir até às 12 horas e 25 minutos da madrugada, debateu-se a proibição de o Presidente da República, eleito pelo Congresso, ser escolhido de entre os membros do Governo. Esta proposta foi apresentada pelo Deputado Inocêncio Camacho, por considerar que a Constituição devia estabelecer um ”freio às ambições de um mau Ministro corrupto”. Outros Deputados apoiaram-na por considerarem que um Presidente da República não podia estar sujeito às paixões parlamentares, mas, na sua maioria, manifestaram-se contra, tendo inclusivamente sido proposta uma exceção relativa aos membros do Governo então em funções. O Deputado António Macieira finaliza o debate:

Para mim considero a proposta do Deputado Inocêncio Camacho inconstitucional, considero-a uma ofensa ao atual Governo, considero-a imoral, considero-a, Sr. Presidente e Srs. Deputados, mais que tudo e acima de tudo, extremamente perigosa. Não tenho idade nem bastantes cabelos brancos para dar conselhos; se os tivesse já seria porque estava mais avançado em idade, contento-me bem com os que tenho na idade em que estou; mas Sr. Presidente, já aqui os deu uma pessoa mais nova que eu, seja-me lícito também aconselhar. Aos velhos não fica mal receber conselhos e até solicitá-los. Assim, Assembleia Nacional Constituinte, representantes da Nação, da soberania nacional, meditai bem no passo que ides dar, vede bem que a questão é grave.”

Assembleia Constituinte de 1911

Sessão inaugural da Assembleia Nacional Constituinte, em 1911, fotografia de Joshua Benoliel, Arquivo Fotográfico da Assembleia da República (AR-AF).

Esta inelegibilidade não foi aprovada, ficando no texto constitucional como inelegíveis para Presidente da República as pessoas das famílias que reinaram em Portugal e os parentes consanguíneos ou afins do Presidente que sai do cargo.

Previamente aos trabalhos da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de abril de 1975, na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, foram publicadas diversas leis, para valer como leis constitucionais, designadamente a Lei n.º 3/74, de 14 de maio, que “Define a estrutura constitucional transitória que regerá a organização política do País até à entrada em vigor da nova Constituição Política da República Portuguesa”, e que mantinha transitoriamente em vigor a Constituição Política de 1933 naquilo que não contrariasse os princípios expressos no Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA).

Apesar da existência de um enquadramento constitucional, nos debates realizados na Constituinte, com frequência se punha em causa uma proposta, considerando-a inconstitucional, sem fazer referência à norma ou ao preceito que era assim desrespeitado, como foi o caso da discussão havida a 23 de agosto de 1975.

Debatia-se então o que ficaria como artigo 18.º da Constituição, com a epígrafe “Força Jurídica”, sobre a restrição de direitos, liberdades e garantias, em especial se a limitação à imposição de deveres vigoraria em todas as leis ou apenas naquelas cujo objeto era o de impor restrições a direitos individuais.

Projeto de Regimento da Constituinte de 1975

Projeto de Regimento da Assembleia Constituinte: plano de elaboração da Constituição, Arquivo Histórico Parlamentar.

Questionado o Deputado José Luís Nunes, sobre a redação proposta, intervém:

“(…) as leis restritivas das liberdades, direitos e garantias, 2.ª parte, deverão ter sempre carácter geral e abstrato e em caso nenhum poderão diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais. Este ponto é fundamental.
O que é que isso quer dizer? Quer dizer, evidentemente, que não é possível fazer entrar pela janela aquilo que não se pode sequer fazer entrar pela porta. Quer dizer que nenhuma lei se pode contrapor ao conteúdo essencial do direito constitucional, aquilo que é fundamental, o que é fundamento.

Agora o que é que resta daqui? Eu pergunto, o que é que resta daqui? Há um sujeito que quer obrigar todos os cidadãos – nós não estamos ainda no Uganda, nem o nosso Governo tem nada a ver com o do general ldhi Amin 3. Mas uma lei que quer obrigar todos os cidadãos a usarem, ao pescoço, o distintivo ou a fotografia do Presidente da República evidentemente que é uma lei anticonstitucional, embora um homem que queira obrigar os cidadãos a usar ao pescoço o distintivo do Presidente da República é um homem que está louco, ou é paranoico.”

Risos.

“Portanto, onde é que isto bate? A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos nesta Constituição. Há um direito meu de usar ao pescoço aquilo que muito bem entender. Portanto, esta lei já está ferida de inconstitucionalidade. Eu não vejo onde é que bate, não consigo compreender.”

Nas quatro assembleias constituintes que, ao longo da vida parlamentar, se reuniram para elaborar constituições, com muita frequência, nos debates se adjetivavam de inconstitucional ou anticonstitucional normas e até pessoas ou atitudes, sem nunca se invocar a disposição constitucional violada, dando ao termo um uso pejorativo, por contrastar com o sentir dominante dos Deputados constituintes.


Ana Vargas

[1] Maria Teresa de Bragança, filha primogénita de D. João VI de Portugal e de Carlota Joaquina, casou em 1810 com o neto de Carlos III de Espanha, que veio a falecer em 1812. Desse casamento nasceu um filho, Sebastião de Bourbon e Bragança.

[2] Stockler é nomeado Capitão General dos Açores, aonde chega a 18 de outubro de 1820. Contra a expetativa dos liberais, não reconhece a legitimidade das instituições existentes em Lisboa. Depois de diversos levantamentos e revoltas nas ilhas, é dada ordem régia para que Stockler saia da Ilha Terceira.

[3] Idhi Amin Dada foi um militar ugandense que ocupou o cargo de Presidente de Uganda de 1971 até 1979, na sequência de um golpe de Estado que derrubou o então Presidente. Durante o período que esteve no poder, instaurou uma ditadura repressiva e extremamente violenta.