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AS CURANDEIRAS CHINESAS (1911)

"Faz onze meses que esse mesmo povo impressionava o estrangeiro, proclamando a República, como sendo um povo da primeira nação democrática; pois, passados onze meses, é esse mesmo povo que grita nas ruas: «Abaixo a República e vivam os bichos das chinesas!»"
Deputado Júlio Martins, 27 de novembro de 1911.
A multidão na Rua da Padaria. "Brasil-Portugal", 1 dez. 1911. Hemeroteca Digital.
"A Capital", 20 nov. 1911. Hemeroteca Digital.
"O Zé", 5 dez. 1911. Hemeroteca Digital.
"Ilustração Portuguesa", 4 dez. 1911. Hemeroteca Digital.

Em novembro de 1911, Ajus e Joé, duas chinesas de Xangai, instaladas num hotel na Rua da Padaria, na baixa lisboeta, realizam tratamentos oftalmológicos "extraindo dos olhos (…) uns bichos parecidos com os alimentados no interior dos frutos" (1).

O sucesso das "chinesas milagrosas", com várias pessoas a afirmarem ter recuperado a visão, arrasta multidões, na esperança de encontrarem uma cura para as suas doenças dos olhos.

No entanto, as autoridades intervêm e proíbem as consultas das curandeiras, acusadas de prática ilegal de medicina. A proibição gera um movimento de protesto, levando mesmo à constituição de comissões para a defesa dos direitos das chinesas junto do Presidente da República, do Parlamento, do Ministério do Interior e do Governo Civil.

Mantendo-se a interdição das operações aos olhos, cresce a contestação popular. Na madrugada de 25 de novembro, apesar da vigilância da população na Rua da Padaria, a polícia entra no hotel e resgata as chinesas para as encaminhar para fora do país. O rapto das "chinesas dos bichos" é relatado pelo jornal A Capital. Conduzidas para Vila Franca de Xira, "foram metidas numa carruagem de 2.ª classe no comboio de Badajoz, para onde seguiram acompanhadas de 4 guardas". Também as movimentações populares na cidade são descritas, com uma comissão, acompanhada por uma multidão, a dirigir-se a diversos jornais, à legação da China e ao Governo Civil. Ao hotel chegam cartas e telegramas de apoio às curandeiras, "encontrando-se na cidade várias famílias da província" para serem tratadas pelas chinesas.

Na edição de 26 de novembro, A Capital entrevista o governador civil, Eusébio Leão, que justifica o procedimento pela "evidente perturbação pública" que as chinesas estavam a provocar junto de uma multidão ingénua, pobre e ignorante. Afirma que as chinesas são prestímanas, praticando a ilusão, e que os bichos extraídos dos olhos eram, na verdade, larvas de moscas. Confrontado com as declarações de melhoras dos doentes, diz tratar-se apenas de sugestão e denuncia os perigos sanitários das intervenções das curandeiras.

Os protestos contra o afastamento das chinesas sobem de tom e invadem as ruas. Nesse mesmo dia, um comício enche o Rossio, com "oradores improvisados a incitar os grupos passando das chinesas para os casos de política geral no meio de aplausos e vivas".

Machado Santos, o herói da Revolução Republicana, após tentar acalmar a população, é obrigado a refugiar-se numa loja, que posteriormente seria destruída. Com a chegada das forças policiais, Machado Santos consegue sair de automóvel, mas renascem os tumultos, que culminam numa troca de tiros entre a guarda e o povo, resultando em 46 feridos, um morto e várias detenções.

O caso é presente ao Parlamento, pela primeira vez, na sessão de 22 de novembro, com o Deputado Boto Machado a propor a nomeação de uma comissão de técnicos para "averiguar se as chinesas produziam um trabalho de valor na cura de olhos, ou se se tratava de uma simples mistificação". Brito Camacho protesta, considerando o caso um assunto de polícia e indigno de ser discutido em sede parlamentar, ainda mais, tratando-se "de duas mulheres que nem são portuguesas".

Dois dias mais tarde, Boto Machado apresenta os objetivos que justificam a sua intervenção sobre o tema: "evitar acontecimentos graves, que podem dar-se, e que só não preveem os que desconhecem a psicologia das multidões exaltadas pela fé", dar "solução às reclamações da multidão, que veio ao Parlamento", evitar que se dissesse que a Câmara dos Deputados estava "a proteger médicos especialistas de doenças de olhos" e "obstar a que se realizasse a expulsão das pobres mulheres (…) desgraçadas mulheres, fracas, indefesas e inofensivas".

A 27 de novembro, no dia a seguir aos tumultos, o assunto é então amplamente debatido. Machado Santos afirma que as perturbações da ordem pública tinham sido obra de "arruaceiros, profissionais da desordem". Também António Granjo fala de "escumalha" que se serviu do caso da expulsão das chinesas para lançar a perturbação nas ruas. Mas outros parlamentares veem nos acontecimentos um sintoma do descontentamento do povo no novo regime republicano, como se deduz da intervenção de Júlio Martins:

"Esse povo adorava os homens da República, dignificava-os e proclamava a República por toda a parte.

Esse povo levantava, enfim, sobranceiro a sua cabeça, mostrando que, dentro das novas instituições, só queria ir pelo caminho reto da honestidade e da honra.

Faz onze meses que esse mesmo povo impressionava o estrangeiro, proclamando a República, como sendo um povo da primeira nação democrática; pois, passados onze meses, é esse mesmo povo que grita nas ruas: «Abaixo a República e vivam os bichos das chinesas!»"

Outros, como Sá Pereira, denunciam os excessos na reação das autoridades:

"Não posso compreender que para pôr termo a um tal fanatismo fosse preciso a intervenção da força armada, a não ser que qualquer coisa de anormal estivesse preparada com o fim de atingir a República."

Na sessão seguinte, Adriano de Vasconcelos acusa o Governo de "abuso de poder" e de "ataque à Constituição" no resgate das chinesas. O Ministro da Interior, Silvestre Falcão, argumenta terem sido as próprias curandeiras a querer sair "apavoradas com o barulho que se fazia em volta delas". Na resposta, o Deputado põe termo à discussão, ironizando:

"Quanto à já cansada questão das chinesas, direi que me regozijo que se tivesse finalmente averiguado, que nenhuma violência da Constituição se cometeu, fosse qual fosse o funcionário que a tivesse feito; e regozijo-me também por ver que o estudo das línguas orientais está tão adiantado em Portugal, que foi facílimo compreender que as chinesas o que queriam era ir-se embora, para se verem livres da perseguição do povo!..."

(1) Ilustração Portuguesa, 4 de dezembro de 1911, p. 721-724. Hemeroteca Digital.

Imagem do separador: Pormenor de caricatura publicada em O Zé, 5 de dezembro de 1911. Hemeroteca Digital.

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