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Sala da Câmara dos Deputados em 1835. Litografia in "A Guarda Avançada dos Domingos", n.º 4, 10 de maio de 1835.
Mesa e cadeira (à esquerda) da presidência da Câmara dos Deputados, séc. XIX, 2.º quartel. MAR 81, 86. Cadeira dos deputados (1834 a 1895), MAR 3953.
Trono real, concebido por mestre desconhecido no início do século XIX, no Palácio de São Bento, n.º inv. MAR 84.
Trono real atribuído a Tomás Aquino, século XIX, n.º inv. MAR 88.
SALA DAS SESSÕES DOS DEPUTADOS (1834-1895)

Entre 1834 e 1895, as sessões da Câmara dos Deputados decorreram numa sala concebida pelo arquiteto da Casa Real, Joaquim Possidónio da Silva, no extinto Mosteiro de São Bento da Saúde, recém-designado Palácio das Cortes. Limitado pela escassa verba disponível e pelo curto prazo imposto por D. Pedro IV, o espaço foi projetado e erguido em pouco mais de 50 dias, acolhendo a primeira reunião em 15 de agosto de 1834.

A sala localizava-se à direita da velha igreja beneditina, englobando as áreas sobre as galerias dos claustros a Leste e a Norte. Tinha planta retangular, com os cantos cortados em viés na parede atrás das bancadas dos Deputados, para permitir uma disposição tendencialmente semicircular e em anfiteatro, e comportava dois níveis superiores de galerias públicas; o teto seguia a configuração da planta e era pintado com emblemas; todo o interior apresentava um aspeto sumptuoso, de memória palaciana, que denunciava o ecletismo estético de Possidónio da Silva, certamente influenciado pela aprendizagem em Itália. Uma descrição publicada em 1837 no Diário do Governo completa a imagem do conjunto parcialmente representado em litografias coevas:

"A sala é de feição de um paralelogramo retângulo. A relação dos seus lados está na proporção de três para um. Tem vinte e seis meias colunas prateadas da ordem compósita no gosto dos arabescos; o fundo das estrias é carmesim. Os capitéis da dita ordem são inspirados pela ordem interior do Panteão de Agripa.


Em um extremo da sala avulta um arco muito elegante, sustido por quatro colunas jónicas isoladas, as quais sustentam no seu entablamento a arquivolta do arco; daí vem que a sua forma, além de não ser pesada, está em harmonia perfeita com as proporções e adornos da sala; a cornija da ordem nobre tem por guarnição os competentes medalhões dourados.

A sala tem seis janelas de sacada; os alizares são feitos de meias colunas.

Fronteiros às janelas acham-se quatro espelhos para dar maior largura aparente à sala, e duas portas de gosto inteiramente novo, guarnecidas de estrias douradas, para obter-se a necessária harmonia com as colunas.

No outro extremo da sala acha-se colocado o coreto da música, construído debaixo dos princípios da acústica; tem tímpano, e a novidade da formosa combinação de teia, que serve de balaustrada." (2)

Adequando-se ao funcionamento das sessões parlamentares e respondendo às prementes necessidades políticas de um monarca acometido pela enfermidade terminal, a Sala dos Deputados trouxe ao seu arquiteto a recompensa régia, que se traduziu na nobilitação a Cavaleiro (mas não na integral remuneração pelo trabalho, como o próprio notou).

No que toca ao recheio, a Sala contava com o retrato do monarca reinante, algumas cadeiras requisitadas ao Ministério do Reino para os Deputados (marcadas pelo espaldar de tabela oitavada) e ainda um conjunto de mobiliário de estilo Império composto por armários, uma grande mesa e respetivo cadeirão para a Presidência. Este último apresenta, no cachaço, uma coroa de louros (símbolo de triunfo) e, nas pernas dianteiras e braços, dois grifos (animais de simbologia apotropaica e ligados ao poder).

Nas Sessões Reais, a Sala incluía os tronos dos monarcas. Dois desses móveis de assento distintivos da soberania conservam-se no espólio parlamentar e ostentam uma iconografia muito significativa: o mais imponente é inspirado no modelo do trono neoclássico de Napoleão em Fontainebleau, depositado no Louvre, como primeiramente notou Augusto Cardoso Pinto na obra Cadeiras Portuguesas, publicada em 1952 (p. 113). Tem o espaldar semicircular percorrido por coroa de louros que se desenvolve a partir de cálices de acanto, cingida por sete fitas pontuadas por sete palmetas e preenchido por astros (16 com sete pontas, em torno de um com cinco pontas). A conformação e a decoração recriam a abóbada celeste, que naturalmente conferia a quem ali se sentava uma dimensão triunfal, uma omnipotência cósmica e até uma eternização apoteótica, possivelmente em concordância com a referência feita pelo poeta romano Ovídio às metamorfoses de Júlio César e do Imperador Augusto em astros (OVÍDIO, Metamorfoses, XV, 746-750). Igualmente integra espigas de trigo nas pernas – que recordam os atributos das deusas homólogas da mitologia greco-romana Deméter/Ceres, em alusão à prosperidade e à ideia de que o soberano é o garante do sustento da nação. Junto ao assento, em eixo com a estrela central, inclui ainda folhas de acantos e uma simplificação dos raios de Zeus/Júpiter, elemento também presente no saial do trono de Napoleão no Palais de Saint Cloud, hoje na coleção particular de M. Bruno Ledoux, e no saial do fauteuil de Napoleão no escritório das Tulherias (Malmaison). Este símbolo reitera a iconografia de um poder legitimado pelos deuses, concretamente pelo capitolino que foi representado com a mesma tipologia de raios numa medalha emitida em França no ano de 1809.

O segundo trono ostenta, no centro do cachaço, um medalhão com a figura alegórica à Prudência, uma das quatro virtudes cardiais primeiramente identificadas pelo grego Platão na sua obra A República (Livro IV, 426-435) e justamente a que deveria assistir aos soberanos. Apresenta ainda, na junção dos braços com as pernas, cabeças de leão (outro animal apotropaico ligado ao poder, à soberania, à justiça e à sabedoria desde a Antiguidade). Este último trono faz parte de um conjunto de outros cadeirões com figuras alegóricas diferentes, hoje no Palácio Nacional de Queluz.

Os derradeiros tronos usados nesta Sala pertencem hoje ao acervo do Paço Ducal de Vila Viçosa. Mandados fazer por D. Fernando II na primeira metade do século XIX, em estilo neobarroco, caracterizam-se por uma iconografia eclética, que conjuga Numina Syluarum (designados desde 1939 como Green Men, a partir do artigo «The "Green Man" in Church Architecture», que Lady Raglan publicou na revista Folklore nesse mesmo ano), sendo dois deles masculinos (circunscritos ao rosto) e outros tantos femininos (de corpo inteiro), Cariátides, Putti Custódios, grinaldas vegetalistas, a Coroa e as Armas Reais, resultando numa legitimação histórica da monarquia através de imagens que remontam à Antiguidade, com utilização estreitamente ligada ao poder, o que adquire especial sentido num momento em que os novos ideais republicanos ganhavam terreno.

Esta primeira Sala das Sessões dos Deputados foi utilizada durante 61 anos e cinco reinados: de D. Pedro IV, de D. Maria II, de D. Pedro V, de D. Luís I e de D. Carlos I. Nela tiveram lugar os mais importantes debates parlamentares do século XIX e foram aprovadas leis fundamentais para a história do Portugal contemporâneo, como é o caso da abolição da pena de morte, em 1867, durante o reinado de D. Luís.

Pelo seu uso intenso e prolongado (com uma interrupção digna de nota em novembro de 1894, altura em que o Parlamento encerrou na sequência da política de Hintze Ribeiro), requeria obras de fundo pelo menos desde 1872, quando o teto abateu, mas a escassez de meios foi adiando a sua concretização. Em junho de 1895, no decurso da reparação dos telhados, deflagrou um incêndio e a Sala foi consumida pelas chamas. No sinistro perdeu-se grande parte do recheio, incluindo o retrato de D. Carlos I, pintado por António Ramalho em 1890, salvando-se apenas as mais significativas peças de mobiliário (como a mesa e a cadeira da Presidência, os tronos régios e alguns armários, duas urnas de voto, relógios e documentos do arquivo). O retrato do seu predecessor e reinante em 1867, D. Luís I, teve melhor sorte porquanto havia já sido requisitado para o Tribunal de Contas. Apesar das consequências desastrosas, o incêndio acabou por ser a condição de possibilidade da reconstrução da Sala das Sessões, há muito reclamada, o que veio a acontecer pelas mãos do arquiteto Miguel Ventura Terra.

Cátia Mourão

(1) Imagens da página inicial. Em cima: pormenor do levantamento do corte arquitetónico da Sala das Sessões dos Deputados. c. 1834-1856. (DGEMN/DREL/DRC, n.º 53961, in AFONSO e MOURÃO, Os espaços do Parlamento, 2003, p. 154, n.º 39); em baixo: pormenor da planta do 3.º piso do Palácio das Cortes, com representação do espaço ocupado pela Sala em 1834 (AHMOP-DR-6811-D, in AFONSO e MOURÃO, Os espaços do Parlamento, 2003, p. 153, n.º 35).
(2) ANÓNIMO, «Parte não oficial – Arquitetura». Diário do Governo, 19 de junho de 1837, p. 726.
Mais informações em: www.parlamento.pt
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