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CELIBATO DO CLERO (1835)

Na sessão de 26 de fevereiro de 1835 da Câmara dos Deputados, Manuel da Silva Passos (Passos Manuel) apresenta dois projetos de lei (1) para a abolição do celibato religioso, considerando cruel e contrária à natureza humana a proibição do matrimónio dos sacerdotes católicos e das freiras.
Busto de Passos Manuel da autoria de Anatole Calmels.
Pormenor de painel de Columbano Bordalo Pinheiro representando Passos Manuel. Sala dos Passos Perdidos.
O Deputado aponta os resultados funestos da lei do celibato para a religião e a sociedade, conduzindo a estupros, adultérios e comportamentos contrários à civilização. Aspetos que ganham relevância pela influência que o clero exerce na sociedade:

"Se os eclesiásticos forem virtuosos, salutar será a sua influência; mas se pelo contrário forem devassos, dissolutos, e imorais, a liberdade da nação não pode deixar de se ressentir dessa funesta imoralidade! Em vez de clérigos estragados, adúlteros, concubinários, seria melhor que o povo se acostumasse a ver e respeitar em cada sacerdote um homem virtuoso, um bom marido, e um prudente pai de famílias."

Sobre as mulheres religiosas, lastima a brutalidade de "prender em ferros a melhor parte do género humano", obrigando "fracas damas" a um voto "feito muitas vezes quando o coração não tinha escutado ainda a voz irresistível da natureza". O projeto de Passos Manuel tem o propósito de libertar as religiosas dessa condição, de protegê-las da exposição ao "opróbrio e à desonra", mas também de honrar a dignidade de ser mãe, contra os preconceitos "que tendem a dar preferência a uma virgindade forçada e perpétua sobre a maternidade".

No entendimento de que "a obrigação do legislador não se limita a castigar crimes", mas também a encontrar "meios indiretos" que os previnam "sem provocar os males que acompanham os castigos e que derivam da jurisprudência penal", Passos Manuel socorre-se de dois preceitos defendidos por Jeremy Bentham:

 "1.º Satisfazer um desejo sem prejuízo.

 2.º Diminuir a sensibilidade quanto à tentação."

Relativamente ao primeiro meio de prevenção do crime apontado pelo filósofo e jurista inglês, Passos Manuel começa por evidenciar a "mútua e irresistível inclinação dos dois sexos", "a necessidade que têm de se amarem", conduzindo desta forma "à reprodução da espécie, pelo estímulo do prazer mais vivo, e mais imperioso, da cópula misteriosa”. Prossegue dizendo que, “apesar da hipocrisia", "não há moral poderosa para acalmar sentidos agitados, nem leis que bastem para refrear os vivos desejos do amor".

Defende, assim, que para prevenir o crime, não se deve contrariar a natureza, nem criminalizar os "desejos mais vivos" de um amor recíproco, assente no matrimónio:

"Às leis não cumpre fazer crime do que a natureza fez virtude, ou deixou inocência. Nem o coito vago, nem a poligamia, nem o concubinato oferecem vantagens à sociedade, que possam pôr-se em paralelo com o casamento, estado o mais próprio para fazer a felicidade do homem policiado. É por isso que os legisladores não só não devem pôr nenhum obstáculo aos matrimónios, mas pelo contrário têm obrigação de os favorecer e de os honrar."

Sobre o segundo meio de prevenir o crime, segundo Bentham, Passos Manuel defende que para "diminuir a sensibilidade quanto à tentação, é necessário deixar os meios de satisfazer os desejos do amor sem prejuízo", não os criminalizar e "honrar o matrimónio".

No seu discurso, refere ainda a imprudência de confiar a confissão e a "direção de consciências" a sacerdotes celibatários, salientando a maior pureza do protestantismo, "onde os clérigos, quando pregam a "castidade conjugal e a modéstia das virgens, são eles próprios, suas mulheres e suas filhas, o exemplo vivo destas virtudes cristãs".

Passos Manuel conclui que o celibato religioso contribui para a "escravidão dos povos", com uma lei imoral que os despoja dos "bons costumes, sem os quais não [pode] haver liberdade".

Na sessão da Câmara dos Deputados de 5 de março de 1835, é rejeitada a admissão à discussão do projeto de lei para a abolição do celibato clerical.

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(1) Os projetos apresentados foram os seguintes:

Abolição do celibato clerical
Art. 1.º As ordens sacras não constituem um impedimento dirimente do matrimónio.
Art. 2.º Nenhum presbítero, passados dez anos da publicação desta lei, será elevado ao episcopado, sem que, além das qualidades morais e religiosas para isso requeridas por direito canónico, tenha a de ser casado, ou viúvo, e sobre isso, pelas suas virtudes conjugais, e pela boa criação que der a seus filhos, tendo-os, se fizer estimar, e respeitar entre os fiéis, como um bom e prudente pai de famílias.
Art. 3.° O Governo não proverá em nenhum benefício eclesiástico presbítero, que depois da publicação da presente lei se ordenar, não tendo completado os quarenta anos de sua idade, salvo se ao tempo da ordenação, ou depois dela, for casado, ou viúvo.
Art. 4.º O Ministro e Secretário de Estado, que referendar algum decreto contra as disposições do artigo 2.°, será castigado com pena de um até três anos de prisão. O que referendar decreto contra as disposições do artigo 3.° será castigado com a pena de seis até dezoito meses de prisão.
Art. 5.° Nas mesmas penas incorrerá o eclesiástico, que tomar posse de algum bispado, ou benefício eclesiástico, contra as disposições do 2.° e 3.° artigos da presente lei.
Art. 6.° O Governo fica autorizado para convocar um concílio nacional, ou concílios provincianos, se assim o pedirem as necessidades da igreja lusitana, para dela se tirarem os escândalos, reformarem os abusos, e manter a pureza da nossa Santa Fé, e moral cristã.
Art. 7.º Os votos de pobreza, obediência, e castidade, feitos pelos religiosos de ambos os sexos, ou os que para o futuro se fizerem, são declarados desde já írritos, e nulos, por virtude desta lei, e como se feitos não fossem.
§. 1.° O voto de castidade não constitui um impedimento dirimente do matrimónio.
Art. 8.º Nos conventos de religiosas é conservada a clausura.
§. 1.° Só se pode quebrar perpetuamente: 1.° pelo casamento das religiosas; 2.° por autoridade do Governo, ouvidas as câmaras municipais do distrito, e com sua aprovação especial.
§ 2.º Quebra-se a clausura temporariamente: 1.º a das religiosas maiores de quarenta e cinco anos de idade, com licença da prioresa, na falta dela com licença da câmara municipal do distrito; 2.° a das religiosas menores de quarenta e cinco anos, se com as cláusulas acima declaradas, saindo elas para casas de parentes até ao quarto grau, segundo o direito, ou de outras pessoas respeitáveis, e como tais havidas pela câmara municipal do distrito, e só para tratarem de sua saúde, por conselho de um facultativo, dado por escrito; 3.º a clausura de quaisquer religiosas, que queiram sair para casa de seus ascendentes, ou irmãos, declarando eles por escrito, perante a câmara municipal, que estão prontos a receber as ditas religiosas em suas casas, e por quanto tempo as recebem.
Art. 9.º Os filhos ilegítimos dos eclesiásticos regulares ou seculares, que estes perfilharem por escritura pública, ou testamento, são em tudo, e para todos os efeitos havidos como filhos legítimos.
§. 1.° Os eclesiásticos não herdarão de seus filhos ou descendentes, assim legitimados, se não por disposição de suas últimas vontades.
Art. 10.° Fica revogada toda a legislação em contrário. Câmara dos Srs. Deputados, 26 de fevereiro de 1835. - Manuel da Silva Passos, Deputado pelo Douro.

Subsídio às religiosas
Art. 1.° O Governo pagará desde já a cada uma das religiosas a quantia de 480 réis diários, que lhes serão continuados enquanto vivas forem.
Art. 2 ° Esta quantia poderá subir até à de 720 réis, em atenção às poucas rendas dos conventos, que ficarem subsistindo, e à idade, e enfermidades das mesmas religiosas.
Art 3.º As religiosas, que com autoridade do Governo viverem fora da clausura, vencerão a quantia que se lhes pagaria vivendo clausuradas.
Art. 4.° As religiosas, que casarem, vencerão a pensão de 480 réis diários. Tendo dois filhos, ou daí para cima vencerão 720 réis.
Art. 5.° O Governo por nenhum motivo espaçará a pensão alimentária decretada nos artigos 1.°, 3.° e 4.°.
Art. 6.° As pensões alimentárias decretadas às religiosas começam a vencer-se desde a publicação da presente lei.
Art. 7.º O Governo fará reparar os conventos das religiosas, e as obras necessárias se farão por arrematação.
Art. 8.° As indemnizações decretadas [pelos] decretos de 30 de julho, e 13 de agosto de 1832 a respeito das corporações de religiosas, ficam satisfeitas desde a publicação da presente lei com as pensões nela designadas.
Art. 9 ° Fica revogada toda a legislação em contrário. Câmara dos Srs. Deputados, 26 de fevereiro de 1835. - Manuel da Silva Passos.
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