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ELIMINAÇÃO DO SALÁRIO DO CARRASCO (1863)

Em junho de 1863 (1), na discussão na especialidade do orçamento do Ministério da Justiça, Aires de Gouveia (2) apresenta uma proposta para a eliminação do ofício e do salário do carrasco e uma outra para a abolição da pena de morte.
Aires de Gouveia. "O Ocidente", 1 fev. 1892, p. 28. HML.
Iniciativa assinada por Aires de Gouveia para a abolição da pena de morte, em 1863 (pormenor). AHP.
"A última execução em Lisboa: 1842", ilustrações de Sandra Duarte.

Na análise do orçamento, o Deputado confronta o salário anual dos curas (48$000 réis) com o dos carrascos (49$200 réis), denunciando a "torpeza" desta disposição que coloca o "ministro do patíbulo" em mais alta consideração do que o "ministro do altar", que respeita mais as "funções do homem que aguça a lâmina da guilhotina ou que entrança a corda da forca, do que as do homem que interpreta a página do Evangelho, que ensina os meios de conseguir a vida futura, que trata da regeneração do malditoso, que nos eleva a altura para Deus!!..."

Sobre a pena de morte, realça a sua inutilidade, face à ausência de execuções em Portugal nos últimos 17 anos. Argumenta ainda com a questão dos erros judiciais que condenam irremediavelmente pessoas inocentes, apresentando o exemplo de uma mulher executada pelo assassínio do marido, que, posteriormente, se verificou estar vivo.

Recorda depois a última execução em Lisboa, em 1842, de Matos Lobo (3), denunciando a "bruteza" de uma sociedade que vinga o crime de assassínio de três pessoas (4) provocando mais quatro cadáveres: o executado, o prior, vítima de uma apoplexia junto do patíbulo, e os pais do enforcado, que não sobrevivem à tragédia. Para Aires de Gouveia, a responsabilidade da "monstruosidade" do "assassínio legal" é coletiva:

"(…) quem é o carrasco? O carrasco é o homem que enforca? É o homem que guilhotina? É o jurado que declara o réu, o malfeitor? É o juiz que lavra a sentença? Não, senhores. O carrasco, digamo-lo com franqueza, somos nós. (…)

Do nosso coração, iluminado pela inteligência, sai o nosso voto, do nosso voto nasce a lei, da lei dimana a sentença, da sentença vem o carrasco, diante do carrasco levanta-se a forca e da forca pende a corda que esgana o pescoço do justiçado; portanto, entre o nosso coração e o pescoço do padecente há um fatal e abominável sorites. Lógica homicida!"

Defendendo o princípio da regeneração do criminoso, insurge-se contra a "vingança social" e a existência do algoz, contrária à religião, à política e à Constituição, que proíbe "os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis":

"Ora, em verdade, considerar um açoite uma pena cruel e não considerar assim o esganar barbaramente a garganta! Isto compreende-se?"

Aires de Gouveia apela à consagração da inviobilidade da vida humana nos códigos, pois a "legislação é um dos melhores padrões para aferir o sentir, a nobreza e a existência de um povo", devendo Portugal dar um exemplo da sua civilização:

"As nações não são grandes pelo número dos seus cidadãos; são grandes pelas grandes virtudes que praticam e que respeitam."

O salário do carrasco é eliminado do orçamento do Ministério da Justiça, mas a abolição da pena de morte para crimes comuns só seria aprovada em 1867, com Aires de Gouveia a defender, na ocasião, a extensão da medida aos crimes militares.

No debate de 21 de junho de 1867, ao recordar a sua proposta de 1863, provoca risos na Câmara dos Deputados:

"Lográmos então abolir uma entidade fatal que vinha inscrita no nosso orçamento, e que na relação nominal dos empregados do Estado vinha inscrita ao lado dos srs. Ministros."(5)

A 23 de junho de 1867, o folhetim do Diário de Notícias é dedicado ao último carrasco em Portugal, Luís António Alves, conhecido por Luís Negro. Condenado à morte em 1839 por crime de homicídio, vê comutada a pena em troca do emprego público de "executor de alta justiça". Na verdade, nunca chega a enforcar ninguém e, sem salário desde 1863, dedica-se ao ofício de sapateiro.

(1Diário de Lisboa, n.º 125, de 6 junho de 1863, p. 1748-1749.
(2) António Aires de Gouveia (1828-1916) nasceu no Porto. Formado em Filosofia e Teologia, foi professor da Universidade de Coimbra, bispo do Algarve e de Betsaida e arcebispo de Calcedónia. Na área política, destacou-se como deputado, ministro e par do reino. Foi também maçon.
(3Ver relato da última execução em Lisboa, ilustrações de Sandra Duarte.
(4) De acordo com a Revista Universal Lisbonense, de 21 de abril de 1842, foram quatro as vítimas de Matos Lobo: D. Adelaide Pereira da Costa, os seus filhos Júlia e Emídio, e a criada Narcisa de Jesus.
(5) Neste discurso, Aires de Gouveia faz ainda referência a um comentário jocoso da imprensa, em 1863, sobre a abolição do salário, mas não do ofício de carrasco: "Conseguindo tirá-lo do orçamento, parte da imprensa periódica, levando a mal o feito que praticávamos, veio motejar-nos, e disse – fica o carrasco por ora, e mate de graça".

 

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