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A INFLUÊNCIA DAS RESOLUÇÕES COM RECOMENDAÇÕES AO GOVERNO NO TEXTO CONSTITUCIONAL


O impacto das resoluções com recomendações ao Governo no texto constitucional.

Encontrando-se a decorrer um novo Processo de Revisão Constitucional, revisitamos anteriores constituições e processos de revisão constitucional, de modo a perceber o impacto que as resoluções com recomendações ao Governo tiveram no texto constitucional, ao longo dos anos.

Se no constitucionalismo moderno, o Parlamento é o órgão legislativo estrutural ou funcionalmente mais adequado enquanto órgão legislativo predominante, ou por excelência, não é menos verdade que, ao longo dos últimos anos, de forma discreta, mas particularmente intensa, a emanação de resoluções da Assembleia da República, em particular as que contêm recomendações ao Governo, parecem ter ganho um crescente destaque na agenda parlamentar.

A Constituição autonomiza, sob o nome de resoluções, os principais atos não normativos do Parlamento. Mas, apesar de não serem atos legislativos, partilham com eles quatro elementos comuns: (i) são atos de autoridade, por serem emanados de um órgão de soberania; (ii) são atos independentes de outros órgãos; (iii) têm específica relevância institucional; e (iv) são, na aceção lata do termo, atos políticos, na medida em que consagram uma posição política por parte do órgão colegial que as adota.

Embora a natureza jurídica das resoluções possa continuar a suscitar alguma discussão, na verdade, a sua origem não é recente.

Foi durante o período da Monarquia Constitucional, com a Carta Constitucional de 1826, que surgiu a expressão “resolução”. A Constituição de 1911 distingue leis e resoluções, mas ainda sem indicar o tipo de atos que lhes havia de corresponder. No entanto, até 1923 a prática tinha formado um costume interpretativo, segundo o qual as resoluções se traduziam em convites ou recomendações do Parlamento ao Poder Executivo.

Desde a Constituição de 1933 até à atualidade, os principais atos não normativos do Parlamento revestem a forma de resolução. Mas apesar de na Constituição de 1976 o n.º 5 do artigo 166.º estar praticamente inalterado, no que diz respeito a esta forma de atos parlamentares, a questão da constitucionalidade e da consagração expressa das resoluções com recomendações de carácter político foi diversas vezes discutida, especialmente no âmbito de processos de revisão constitucional.

O Projeto de Resolução n.º 5/I/4.ª (PCP) – “Recomendação ao Governo sobre a criação da licenciatura em Contabilidade nos Institutos Superiores de Contabilidade e Administração (…)” foi o primeiro Projeto de Resolução com recomendações ao Governo apresentado e aprovado no Parlamento, ainda na I Legislatura.

Mas a aprovação dos Projetos de Resolução com recomendações ao Governo nem sempre foi pacífica e encorajada. Exemplo paradigmático foi o Projeto de Resolução n.º 24/III/1 (PCP) - “Adoção de medidas financeiras técnicas e administrativas necessárias ao prosseguimento e conclusão do empreendimento do Alqueva”, cujo recurso não foi admitido por deliberação do Plenário, tendo sido apelidado de “ato de duvidosa constitucionalidade”.

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Deputado Luís Beiroco (CDS-PP) Ata da reunião plenária de 8/05/1984

Tal situação motivou, a partir de então, uma extensa troca de argumentos sobre a delimitação material do conteúdo das resoluções, pesando, de um lado, o princípio da separação de poderes e da proibição da Assembleia se imiscuir no exercício da função administrativa que incumbe ao Governo (artigo 182.º da Constituição), e questionando-se, por outro lado, se existiria uma verdadeira ingerência de poderes quando o Parlamento emite, somente, recomendações. O aspeto que mais ressaltou desta extensa discussão foi a necessidade de o Parlamento refletir seriamente sobre o instituto das resoluções enquanto recomendações ao Governo.

Nesta sequência, o Presidente da Assembleia da República, Fernando Amaral, encarregou um pequeno grupo de estudos para reflexão sobre o papel das recomendações na vida parlamentar. Contudo, o referido grupo não chegou a uma conclusão definitiva, nem a verteu num documento, tendo apenas concluído ser possível que as recomendações fossem aprovadas sob a forma de resolução.

Talvez por esse motivo, na Comissão Eventual para a II Revisão Constitucional, o tema tenha continuado a suscitar discussão, levando o Partido Socialista, em 1988 (V Legislatura), a sugerir a menção expressa às “recomendações ao Governo” no texto constitucional (no âmbito do atual artigo 162.º da CRP, então artigo 165.º), afirmando que aquela era “uma figura não clarificada, não está proibida, não está admitida, não se sabe se é permitida ou não”.

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Reunião da Comissão Eventual para a II Revisão Constitucional de 06/07/1988, transcrita no DAR, II Série-RC, n.º 40, p. 1309

No âmbito da discussão desta proposta, foi sugerido que as recomendações ao Governo passassem a ser feitas “no fim de uma interpelação em que se debateu profundamente uma política setorial”, inserindo-se tal poder “no quadro da função de controle político da ação do Governo”. Além disso, havia quem afirmasse, como o Deputado António Vitorino (PS), que “o controlo da ação política do Governo por parte da Assembleia da República pode, e deve, também ser um controle das formas de execução do Programa de Governo. (…) O desvio da ação governativa relativamente ao seu próprio programa (…) pode, e deve, merecer um juízo valorativo que, não se podendo traduzir, por exemplo, numa moção de censura pode traduzir-se em recomendações”, principalmente por estas não terem natureza jurídico-normativa.

Na IV Revisão Constitucional, em 1997, foi colocada à discussão a situação de o Parlamento publicar recomendações ao Governo, ora sob a forma de resolução, ora sob a forma de deliberação, levando o Partido Comunista Português a propor a consagração expressa das “recomendações” no texto constitucional, a qual foi, novamente, rejeitada.

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Deputado Luís Marques Guedes (PSD), na reunião da Comissão Eventual para a IV Revisão Constitucional, de 23/10/1996, transcrita no DAR, II Série-RC, n.º 44, p. 1338

Assim, a proposta de introduzir uma menção expressa a essa figura no texto constitucional, apesar de ter sido, por duas vezes (na II e na IV revisões constitucionais), aprovada por maioria simples, não conseguiu reunir a maioria qualificada de dois terços de votos favoráveis, exigida para a alteração da Constituição no seu artigo 286.º, n.º 1.

O tema não voltou a ser objeto de discussão nos processos de revisão constitucional seguintes, não tendo sido apresentados no processo em curso quaisquer projetos de revisão constitucional que visem a alteração do atual n.º 5 do artigo 166.º da Constituição.

Contudo, de acordo com os dados disponíveis na base de dados do Parlamento, é possível concluir que, a partir da XI Legislatura, o número de projetos de resolução, a grande maioria deles com recomendações ao Governo, tem-se mantido permanentemente superior ao número de projetos de lei apresentado.

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O contínuo aumento significativo da apresentação e aprovação dos Projetos de Resolução, em especial dos que contêm “resoluções recomendatórias”, bem como a sua publicação, por vezes de forma sequencial e sobre a mesma matéria (algumas exatamente iguais e outras contraditórias entre si), no Diário da República, são alguns dos assuntos que, não raras vezes, têm sido objeto de reflexão pela Conferência de Líderes. Exemplo disso, foi a reunião 51 da Conferência de Líderes, de 8 de julho de 2021, na qual foram aprovadas e fixadas interpretações do Regimento da Assembleia da República, nomeadamente, sobre os Projetos de Resolução com recomendações ao Governo. Neste âmbito, chama-se a atenção para o facto de apesar do n.º 7 do artigo 128.º do Regimento referir que “todas as resoluções que não tenham natureza normativa e não estejam expressamente previstas na Constituição e na lei, designadamente as recomendações ao Governo, revestem a forma de deliberação e, uma vez aprovadas, são publicadas no Diário” esta prática, por motivos constitucionais, não ter vindo a ser aplicada.

Atualmente, as recomendações ao Governo permanecem sem consagração constitucional, mais não sendo do que uma praxis parlamentar que, de uma forma ou de outra, resultam da fiscalização política do Parlamento ao Executivo. Este é um costume que, ao longo do tempo, se foi estabelecendo e desenvolvendo no Parlamento, tendo hoje aceitação política e constitucional.

Rita Nobre

Referências bibliográficas: