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A TORRE DO TOMBO NO PALÁCIO DE SÃO BENTO


Vista do Palácio de São Bento

O ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO EM SÃO BENTO (1757-1990)

Em 1990, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo saía do Palácio de São Bento e era instalado num edifício construído de raiz para o efeito na Alameda da Universidade, em Lisboa.

Em 1757, este arquivo histórico foi acolhido no Palácio de São Bento, onde permaneceu durante 233 anos, cruzando-se assim a história da Torre do Tombo com a de uma casa primeiramente religiosa e que viria tornar-se a sede do Parlamento português.

Durante estes mais de dois séculos várias mudanças conjunturais determinaram os destinos das duas instituições, de que são exemplo as Invasões Francesas, as lutas entre absolutistas e liberais, o triunfo do Liberalismo, a aplicação do constitucionalismo, a extinção das Ordens Religiosas, as modernizações do Fontismo, o fim da Monarquia, a Implantação da República, as duas Grandes Guerras, o Estado Novo e a instauração do sistema democrático.


Retrato de Manuel da Maia (1677-1768), Guarda-Mor do Real Arquivo da Torre do Tombo (1745-1768), arquiteto e engenheiro, autor desconhecido, óleo sobre tela, c. 1760, Associação dos Arqueólogos Portugueses, in CARITA et alii, 2005 – Os engenheiros militares e o Terramoto de Lisboa de 1755. Trabalhos e consequências. Catálogo de Exposição no Museu Militar de Lisboa, Direção dos Serviços de Engenharia.

O presente texto resume os passos e as vicissitudes de uma convivência institucional presentes nos espólios documentais de vários acervos, de entre os quais o da própria Torre do Tombo e o do Arquivo Histórico Parlamentar.

Com o Terramoto de 1755, a Torre Albarrã do Castelo de São Jorge, onde se encontrava o Real Arquivo da Torre do Tombo desde 1378, ficou completamente destruída. Os tombos (ou documentos) que dali se resgataram foram provisoriamente reunidos numa barraca de madeira montada na Praça de Armas do Castelo e, em 1757, transitaram para o Mosteiro de São Bento da Saúde.

Em 1598, começou a construção do mosteiro, pela Congregação Beneditina Portuguesa, que teve por base o projeto do arquiteto régio Baltazar Álvares. Embora ainda em construção, em 1615, o edifício já apresentava as condições básicas para instalar a comunidade masculina proveniente do Convento de Nossa Senhora da Estrela, o primeiro dos beneditinos em Lisboa, e, a 8 de novembro, celebrava-se a primeira missa em São Bento da Saúde.

A construção foi evoluindo ao longo dos séculos, com diversas adaptações ao traçado original decorrentes das necessidades, dos gostos e das vicissitudes de cada época, tais como incêndios e cheias. O mosteiro sobreviveu ao Terramoto de 1755, que destruiu vários edifícios na cidade, especialmente na baixa lisboeta, acolhendo muitas pessoas e instituições desprotegidas pela catástrofe, tal como o Real Arquivo da Torre do Tombo.

Neste contexto, o espólio do Real Arquivo foi acondicionado no edifício, ocupando dois pisos, designadamente a hospedaria no nível térreo e a Casa dos Bispos no nível superior, junto ao claustro (ainda hoje existente) e com entrada pela Calçada da Estrela. Pela ocupação destes espaços, o Arquivo daria uma contrapartida de 480$000 réis anuais ao Mosteiro.


Vista do Palácio das Cortes a partir da Calçada da Estrela (ângulo sul, onde foi instalada a Torre do Tombo)
Michellis, N. Dat. [1844], Litografia de M. L. da Costa, In Universo Pittoresco, Vol. 3, Tomo 3, 1844, p. 242.

Nas novas instalações, que foram alvo de adaptação, o acervo e os recursos humanos da Torre do Tombo foram aumentando até finais do século XVIII. No entanto, o século seguinte marcou um ponto de viragem para o Arquivo e para o Mosteiro que o albergava: algumas dependências do Mosteiro foram sendo afetadas a outras instituições, a comunidade religiosa diminuiu e deram-se grandes mudanças políticas e económicas europeias que se repercutiram a nível nacional. De facto, o fim do edifício enquanto casa religiosa terá começado em finais do século XVIII e acentuou-se com as Invasões Francesas e com as Guerras Liberais, no início do século XIX. Além disso, o Arquivo teve parte da sua documentação encaixotada e pronta para ser embarcada rumo ao Brasil, juntamente com a Corte, bem como o número de funcionários drasticamente reduzido aquando das Invasões Francesas.

O fim da vida monástica foi ditado pelo triunfo do Liberalismo, que precipitou os acontecimentos entre 1820 e 1834: em 1822, os monges deixaram o edifício e recolheram à casa-mãe da Ordem (Mosteiro de São Martinho de Tibães); em 1823 regressaram, mas foram expulsos em 1833, antecipando a Extinção das Ordens Religiosas (que viria a acontecer em 28 de maio de 1834) e que determinou a nacionalização de todas as casas regulares e seculares masculinas ocupadas por menos de 12 professos, bem como a dispersão dos respetivos bens. Na verdade, à época, neste mosteiro viviam apenas 9 monges, número inferior ao estabelecido pelo édito como garantia de continuidade da respetiva vida religiosa.


Retrato de D. Frei Francisco de São Luís Saraiva, O.S.B. (1766-1845), Guarda-Mor da Torre do Tombo de 1834 a 1836, Francisco António Silva Oeirense, c. 1822-1823, litografia, MAR 151, Assembleia da República, fotografia de Miguel Saavedra.

Extinto e nacionalizado, o edifício ficou incompleto, permanecendo uma parte ocupada por instituições laicas como a Torre do Tombo, que, embora depauperada, subsistia e era alvo de propostas de reforma. Em 1822, é elaborado um novo regulamento onde a Torre do Tombo surge, pela primeira vez, designada como Arquivo Nacional e Real. Em breve, este arquivo seria enriquecido com várias incorporações documentais provindas de outras instituições extintas pelo sistema liberal.

Outra parte do edifício, que correspondia às áreas litúrgicas e de serventia aos monges, ficou disponível para novas funções, também elas laicas. Espaçoso, funcional e bem situado em termos urbanísticos, o edifício foi escolhido para albergar as duas câmaras legislativas à época (a dos Deputados e a dos Pares do Reino), até então provisoriamente instaladas em diferentes edifícios. De imediato, foi adaptado para desempenhar as novas funções parlamentares, e, por Decreto de D. Pedro, datado de 9 de agosto de 1834, passou a designar-se Palácio das Cortes, reunindo a primeira sessão plenária no dia 15 de agosto.

No processo de ocupação dos espaços devolutos, toda a metade do extinto mosteiro onde estava a Torre do Tombo ficou afeta à Câmara dos Dignos Pares do Reino, sendo a metade oposta atribuída à Câmara dos Deputados. A localização da Torre do Tombo não sofreu, nesse momento, qualquer alteração nem com ela interferiu a instalação dos arquivos das câmaras legislativas no edifício, que mantiveram autonomia logística e funcional.


Corte longitudinal do Arquivo Nacional da Torre do Tombo na ala nordeste do Palácio das Cortes, local para onde transitou em 1862, autor desconhecido, não datado (c. 1862-1910), Direção-Geral do Património Cultural - Forte de Sacavém.

No entanto, a presença religiosa não terminou por completo. Foi disso exemplo paradigmático D. Frei Francisco de São Luís Saraiva, que, entre 1834 e 1836, foi Guarda-Mor da Torre do Tombo em acumulação de funções com o cargo de Ministro do Reino nos anos de 1834 e 1835. Adepto da causa liberal desde 1820, este clérigo beneditino tinha sido membro da Junta Provisional do Supremo Governo do Reino e do Conselho de Regência, deputado às Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes (1821-1822), Presidente da Câmara dos Deputados (1826-1828 e 1834), Par do Reino (a partir de 1835) e Vice-Presidente da Câmara dos Dignos Pares do Reino (1842-1845), vindo posteriormente a ser feito Patriarca de Lisboa (1843-1845) e ficando conhecido como Cardeal Saraiva.


Planta arquitetónica representando as acomodações do Arquivo Nacional da Torre do Tombo na ala nordeste do Palácio do Congresso da República e a remodelação da fachada correspondente. Não datado (c. 1895-1910), Miguel Ventura Terra, fotografia de Alberto Carlos Lima, Arquivo Municipal de Lisboa.

Instalado no edifício há 105 anos, com um acervo em constante crescimento e com a deterioração das condições de preservação dos manuscritos, como o excesso de humidade e falta de ventilação e luz, a área ocupada pelo arquivo da Torre do Tombo precisava de ser aumentada e melhorada. Paralelamente, as remodelações de toda a ala afeta à Câmara dos Pares implicavam a libertação do espaço até então ocupado pela Torre do Tombo, pelo que em 1862 transitou para a ala dos Deputados. Passou assim a ocupar o corpo da antiga igreja e todo o antigo refeitório monástico construído por altura do terramoto, bem como algumas dependências contíguas.

Em 1901, na sequência do Decreto de 24 de dezembro, o arquivo da Torre do Tombo foi aberto ao público, ainda que de modo restrito, implicando uma revisão no circuito de acesso às instalações, que se resolveu, passando a ser efetuado através da arcaria do corpo central da fachada principal do edifício.

Num projeto assinado por Miguel Ventura Terra, datável de finais do século XIX, ou já mesmo de inícios do século XX, vêm-se as áreas até então adstritas ao Arquivo Nacional e os espaços que lhe viriam a ser afetados no quadro de uma remodelação dos vários pisos e das fachadas principal e lateral nordeste (virada para o antigo Mercado de São Bento).


Projeto para remodelação da fachada nordeste do Palácio da Assembleia Nacional, não assinado [Adolfo António Marques da Silva], não datado (c. 1933-1938), Direção-Geral do Património Cultural - Forte de Sacavém.

As reformulações previstas por Ventura Terra, contudo, tardavam a concretizar-se e, em 1911, após a Implantação da República, o Arquivo Nacional e Real passou a ser designado apenas por Arquivo Nacional, ao passo que o Palácio das Cortes foi renomeado como Palácio do Congresso da República.

As obras de beneficiação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo só vieram a ser efetuadas a partir de 1938, pelo arquiteto Adolfo António Marques da Silva, que imprimiu algumas alterações não apenas ao nível da afetação dos espaços, mas também do aspeto da fachada correspondente,  garantindo para a Biblioteca parlamentar a ala do piso superior junto ao torreão sul.


Projeto para remodelação da parte da fachada posterior correspondente à ala norte da Torre do Tombo (antigo refeitório dos monges), António Lino, não datado (c. 1939-1940), Direção-Geral do Património Cultural - Forte de Sacavém.

A concretização desta empreitada veio afetar algumas estruturas e componentes artísticas da época monástica, sendo que várias abóbadas foram demolidas e alguns painéis de azulejo do velho refeitório, datáveis da segunda metade do século XVIII, foram destruídos, bem como parte do pavimento original. Também o pé direito, que originalmente tinha cerca de nove metros, foi cortado para lançamento de um piso intermédio em betão armado.


Funcionários da Torre do Tombo a preparar a transferência da documentação para o novo edifício na Cidade Universitária, Fotografia de José António Silva, 1989, in Humberto Baquero Moreno (dir.) - MEMÓRIA: Revista Anual do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, n.º 1. Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

O arquiteto António Lino concebeu os ajustes finais, sendo que a alteração das janelas tornava inevitável o sacrifício dos painéis azulejares aí integrados.

Nos anos 70, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo foi modernizado. Em 1970, foi dotado com um monta-livros que veio facilitar o trajeto dos documentos desde os depósitos, localizados na cave, até à sala de leitura, situada no rés-do-chão, e foi equipado com sistema de ar condicionado na casa forte. Em 1976, passou a contar com um bar para os leitores e teve as instalações sanitárias ampliadas. Nesta data, já o Palácio da Assembleia Nacional se designava Assembleia da República, ou Palácio de São Bento, na sequência do fim do Estado Novo e da instauração do sistema democrático.

No entanto, apesar de todas as alterações e beneficiações de que o Arquivo foi alvo desde 1757, o permanente crescimento do respetivo espólio e a sua natureza autónoma relativamente ao Parlamento, ditavam a necessidade de transferência definitiva para um espaço próprio. Assim, nos anos 80, foi concebido de raiz um outro edifício, na Alameda da Universidade ao Campo Grande, em Lisboa, para onde todo o acervo finalmente transitou em 1990.

Com a mudança definitiva da Torre do Tombo, as dependências que o acervo ocupara no Palácio de São Bento ficaram libertas, acolhendo, à exceção do antigo refeitório dos monges, o Arquivo Histórico Parlamentar.

A história do Palácio de São Bento é feita de diferentes cronologias e conjunturas religiosas, políticas, jurídicas, culturais, sociais, económicas e institucionais, e assume-se como espelho dos seus quatro séculos de ocupação contínua. Significativamente, metade da sua história está interligada com boa parte da história da Torre do Tombo, instituição que mais tempo nele perdurou.

Adaptado do texto da exposição O Arquivo Nacional da Torre do Tombo em São Bento (1757-1990).