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A reivindicação do direito de sufrágio feminino é anterior à instauração da República a 5 de outubro de 1910, mas, nos anos que se seguiram, foi objeto de inflamados debates parlamentares.
À distância de mais de 100 anos, há questões então debatidas e argumentos apresentados que permanecem atuais, contudo, no que toca ao direito ao voto das mulheres, não conseguimos deixar de olhar com estranheza para os argumentos exprimidos por aqueles que se lhe opunham, invocando muitas vezes a proteção da própria mulher e da família, mas também por aqueles que, embora de forma restrita, o apoiavam.
Se a questão do sufrágio feminino não era pacífica no seio das câmaras parlamentares em que foi debatida, também não o era nas organizações de mulheres então existentes [1], que, estando de acordo quanto ao direito de voto, discordavam quanto à sua abrangência.
Ana de Castro Osório e Carolina Beatriz Ângelo, os nomes mais conhecidos entre aquelas que defendiam que apenas as mulheres com estudos e que trabalhavam pudessem votar, divergiam das posições defendidas por outras ativistas, como Maria Veleda, que consideravam que apenas se deveria aceitar o direito de voto se este não tivesse restrições.
Esta questão antecedeu e prosseguiu após a publicação da primeira lei eleitoral da República, “Lei eleitoral para servir na eleição de deputados à Assembleia Constituinte”, publicada a 14 de março de 1911, e alterada por decreto de 5 de abril de 1911 [2]. A lei determinava que eram eleitores todos os portugueses maiores de 21 anos, residentes em território nacional, compreendidos em qualquer das seguintes categorias: os que soubessem ler e escrever e os que fossem chefes de família.
Apesar de não consagrar o direito de voto das mulheres, não o excluía ao considerar eleitores os chefes de família, considerando-se como tal aqueles que há mais de um ano vivessem em comum com qualquer ascendente ou descendente, tio, irmão ou sobrinho, ou com a sua mulher e provessem aos seus encargos. A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, depois de ponderar esta questão, decidiu que as mulheres que se encontrassem nesta circunstância deveriam requerer a sua inscrição nos cadernos eleitorais.
Carolina Beatriz Ângelo, viúva e chefe de família - tinha uma filha a seu cargo - requereu a sua inscrição, que não foi autorizada. Recorreu então para os tribunais, tendo a pretensão sido atendida, porque a reclamante tinha todos os predicados para ser eleitora [3], pelo que teve direito a inscrever-se no recenseamento. No dia 28 de maio de 1911, a eleitora n.º 2513 votou e recebeu uma salva de palmas dos presentes. Em 1911, a Finlândia era o único país europeu que reconhecia o direito de voto às mulheres, pelo que a notícia ultrapassou fronteiras e, para além de cartas recebidas pela própria e pela Associação de Propaganda Feminista, jornalistas estrangeiros vieram a Portugal para entrevistar a primeira eleitora portuguesa.
Ignoravam, porém, que decorreriam 20 anos antes que as mulheres portuguesas pudessem exercer, ainda que restritamente, o direito de voto.
2. Mulher feia a valer de cara é feia em inteligênciaA arquitetura do poder legislativo na 1.ª República era complexa, competindo ao Congresso da República, que era constituído pela Câmara dos Deputados e pelo Senado da República. Estas câmaras funcionaram desde 26 de agosto de 1911, logo após a aprovação da Constituição, elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte, que funcionou entre 15 de junho de 1911 e 25 de agosto de 1911.
De acordo com a Constituição - artigo 84.º parágrafo 1- os primeiros Senadores – 71 - foram eleitos de entre os Deputados da Assembleia Nacional Constituinte, passando os restantes membros a formar a Câmara dos Deputados.
A questão do sufrágio feminino foi abordada na Assembleia Nacional Constituinte, não tendo, contudo, sido tomada qualquer deliberação, considerando-se que não era matéria constitucional. A 27 de julho de 1911, na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernardino Machado, intervém sobre este assunto:
“Mas queria eu dizer, ainda agora, que julguei haver interpretado ontem o sentimento da Assembleia, quando foi eliminado o artigo do projeto da Constituição, relativo aos direitos civis e políticos da mulher. Pelo menos, desejo manifestar, positivamente, qual o sentido em que dei o meu voto. Eu creio bem, Sr. Presidente, que a Assembleia Constituinte não quis de maneira alguma, eliminando aquele artigo, tirar os direitos civis e políticos à mulher.
É minha opinião, expressa pelo meu voto – e vejo agora que o é de toda a Camara - que tal assunto não é constitucional, e deve ficar para ser tratado em diploma especial pelas legislaturas ordinárias. Portanto, nada está absolutamente prejudicado na votação feita, e nada dela se pode concluir que se oponha aos direitos civis e políticos da mulher.
Seria mesmo extraordinário que a República, não só para o homem, mas também para a mulher, e, ainda mais, para a mulher que tem sido no nosso país muito esquecida e muito infeliz, lhes recusasse os seus direitos.”
Poucos dias antes, a 24 de julho, tinha dado entrada e sido remetida à comissão da Constituição uma petição da Associação de Propaganda Feminista, pedindo que fosse concedido o sufrágio feminino.
Depois da Constituição aprovada, é sobretudo no Senado que é reiteradamente debatida a questão do sufrágio feminino, havendo os que eram favoráveis ao direito de sufrágio das mulheres, trabalhadoras e alfabetizadas, como o Senador Faustino da Fonseca que, a 20 de junho de 1912, defendeu:
“Com relação à consignação do direito de sufrágio à mulher, é preciso atender a que a propaganda republicana foi largamente acompanhada pelas mulheres que, por isso, conquistaram o direito de colaborar com Deputados e Senadores na legislação do país, e não simplesmente nas corporações administrativas (…). Não há motivo nenhum para recusar à mulher essa regalia. Que importa que noutros países as mulheres não votem? A República não se fez para copiar o que fazem os países estrangeiros. Não quero, decerto, que a mulher analfabeta seja chamada a votar, mas quero que a mulher que tenha um curso superior ou exerça uma profissão liberal, que saiba trabalhar e tenha vida independente, possa exercer o direito de voto.”
Além dos favoráveis, havia também aqueles que, por considerarem que as mulheres eram reféns da Igreja, eram contra a concessão do direito de voto ou o admitiam com restrição às detentoras de curso superior, secundário ou especial, como o Senador Machado de Serpa que antes, a 17 de junho de 1912, disse:
“Entendo, Sr. Presidente, que as mulheres que têm um curso superior, secundário ou especial devem poder votar; as outras não, porque, como V. Exa. sabe, a mulher é ainda hoje o elemento que, pela sua fraqueza, mais se afeiçoa a manejos do clericalismo. A mulher é, em geral, um espírito fraco, que vai ao confessionário, que ouve o seu diretor espiritual e as missões dos jesuítas e padres reacionários. Felizmente que nós estamos sendo livres desta praga, mas nem por isso podemos confiar na presente geração das mulheres ignorantes e fanatizadas.”
Ou o Senador Anselmo Xavier que, a 24 de junho de 1912, intervém no debate sobre este tema, defendendo que:
“Posto que não me oponha a que o voto seja concedido às mulheres ilustradas, concordando mesmo que algumas delas fariam uso dele com mais consciência do que muitos homens; contudo votei contra na comissão para não abrir exceções. E uma outra razão também a isso me levou.
No dia em que este assunto foi discutido na comissão, tinha eu passado pela igreja de S. Mamede, donde vi sair centenas de senhoras que ali tinham ido entreter os seus ócios e ilustrar o espírito na prática do mês de Maria. O voto concedido a mulheres nestas condições, vivendo sob a influência do clericalismo, seria o predomínio dos padres, dos sacristãos, numa palavra, dos reacionários. Em todo o caso, repito, eu não me oponho a que se se conceda o voto às mulheres com certa ilustração, e que por isso mesmo estão menos sujeitas a deixarem-se dominar pelos inimigos da liberdade.”
De forma mais radical, o Senador Pais Gomes, a 2 de julho de 1912, concluirá a intervenção sobre o sistema eleitoral defendendo:
“Esses reacionários [jesuítas] espalhando-se pelas aldeias e vivendo sempre em contacto com a gente do campo, desenvolvia uma ação de que resultava o seguinte: não sendo o povo fanático, o padre, no entanto, sugestionava facilmente as mulheres que, tem fundamente radicado o sentimento religioso.
Nestas condições pergunto: podemos nós garantir à mulher o voto?
E como se há de resolver a dificuldade que resulta deste perigo para a República?
Seja-me permitido dizer que isto é uma utopia; isso é viver na lua!”
Ainda na véspera, a 1 de julho, e demonstrando que o debate sobre esta questão trazia à superfície, com frequência, sérios preconceitos sobre o papel da mulher na sociedade, asseverava o Senador José de Castro, numa longuíssima intervenção:
“Repare V. Exa. no seguinte: enquanto as sufragistas tiverem aquela cara das inglesas, cujas fotografias andam pelos jornais, pode ter a certeza de que não lhes dava o meu voto.
Riso.
O Sr. Artur Costa: — Podem ser feias algumas mulheres e terem inteligência.
O Orador: — Mulher feia a valer de cara é feia em inteligência. Se for extraordinariamente inteligente nem a cara se lhe chega a ver.
E V. Exa. sabe melhor do que eu: a perfeição do corpo dá a perfeição da alma. Já lá vai o tempo em que a psicologia vivia divorciada da fisiologia. Hoje a perfeição intelectual do ser humano é uma resultante da sua perfeição fisiológica. Se os órgãos não forem perfeitos não poderão funcionar com perfeição. A inteligência é uma função do cérebro. Já não estamos no tempo daquela frase: feia de corpo, bonita na alma.”[4]
A 3 de julho de 1912, foi recebida representação da União das Mulheres Socialistas manifestando o desagrado por não ter sido concedido o voto às mulheres, onde eram lembradas as promessas feitas pelos republicanos quando ainda se conservavam na oposição. Dias depois, a 9 de julho de 1912, a Liga das Mulheres Portuguesas Republicanas entregou uma petição, solicitando que na lei eleitoral ficasse consignado o direito de voto das mulheres, levando o Senador João de Freitas a perorar longamente contra o sufrágio feminino:
“Em Portugal não há corrente a esse respeito. Não há: a mulher portuguesa não reclama de modo algum a concessão do direito de voto, como significando uma corrente considerável da opinião. Qualquer petição da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, por muito respeito e consideração que me mereça essa instituição ou coletividade, relevantes que hajam sido os serviços prestados no tempo da propaganda, no sentido de difundir entre a população feminina a ideia republicana, devo consignar que essa instituição reúne apenas alguns centos de mulheres portuguesas; mas a enorme, a extraordinária massa da população feminina de Portugal é indiferente às reivindicações, que essa coletividade tem dirigido aos poderes públicos.
Por outro lado, comparando o movimento feminista do nosso país, com igual movimento doutras nações, vejo o seguinte facto: é que países da Europa com desenvolvimento e educação populares muito superiores ao nosso, não só não tem concedido, até agora, o direito do voto à mulher, mas até tem feito a essa concessão obstinada resistência.”
Debatendo-se a capacidade eleitoral ativa das mulheres, o direito de voto, era inevitável que se discutisse igualmente a capacidade eleitoral passiva, o direito de ser eleita, suscitando este mais reservas. A 6 de janeiro de 1913, aquando da votação na Câmara dos Deputados do artigo do Código Eleitoral que expressamente negava à mulher o direito de voto, o Deputado Jacinto Nunes defende-o acaloradamente, chegando a dizer que se a mulher não pode votar, nem ser eleita, também não deve contribuir para as despesas públicas. E mais adiante dirá ainda que é necessário respeitar-se a Constituição. Se a sua proposta não for aceite rasga-se a Constituição, concluirá.
A recusa do direito de voto por poder ocasionar discórdias familiares também é invocado, designadamente pelo Deputado Matos Cid, que a 5 de junho entrega uma moção que conclui referindo que se a mulher tivesse voto, havia de introduzir a discórdia no lar, quando professasse ideias opostas às do marido e seria mais uma origem de disputas que ofereceria um espetáculo degradante por ocasião de eleições, quando se tratasse de comícios e reuniões eleitorais.
A 29 de junho de 1913, o Senador Arantes Pedroso intervém para declarar que não vota nem o artigo 1. °, vindo da Câmara dos Deputados, nem o da Comissão do Senado, porque tendo defendido o sufrágio universal, quando foi discutido o projeto de lei eleitoral na Câmara, de maneira alguma poderá votar o que está em discussão. E prossegue:
“O sufrágio fica assim, pela aprovação deste artigo, reduzido a uma insignificância tal que não pode ser tomado a sério num regime democrático.
A população portuguesa é composta de analfabetos na sua maioria, e excluindo as mulheres, os menores, os militares, os empregados públicos e outros indivíduos eu pergunto a que fica reduzido o sufrágio.”
No dia seguinte, a 30 de junho de 1913, Afonso Costa, na qualidade de Presidente do Ministério e Ministro das Finanças, intervém na ordem da noite [5] do Congresso, no encerramento da sessão legislativa, congratulando-se com a aprovação da lei eleitoral. Não houve uma menção sequer à exclusão das mulheres, ao contrário do que aconteceu com os oficiais do exército.
3. A perfeita igualdade perante a leiA lei eleitoral foi publicada a 3 de julho de 1913 e determinava no artigo 1.º que são eleitores de cargos legislativos e administrativos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos ou que completem essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no gozo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever português e residam no território da República Portuguesa. Este dispositivo era seguido da indicação daqueles que não podiam ser eleitores, mas a grande diferença relativamente à lei eleitoral de 1911, é a especificação do sexo masculino que substitui a situação de chefe de família.
As mulheres teriam de aguardar quase 20 anos para alcançarem o direito de voto. O Decreto n.º 20 073, de 15 de julho de 1931, veio estabelecer que os cidadãos portugueses do sexo feminino, maiores de 21 anos, com curso secundário ou superior são eleitores.
O que levou ao incumprimento das promessas dos republicanos quanto à concessão do direito de voto das mulheres ou, como referido na petição apresentada em 1912 pela União das Mulheres Socialistas, à perfeita igualdade perante a lei?
A responsabilidade distribui-se naturalmente entre os vários atores políticos da época, receosos da influência da Igreja e conscientes das percentagens elevadas de analfabetismo entre as mulheres. Mas não se pode ignorar o facto de as organizações das mulheres de então, além de se empenharam mais ativamente noutras lutas que lhes pareceram mais urgentes, como o divórcio e a revisão do Código Civil, divergirem no universo de mulheres a abranger.
A perfeita igualdade perante a lei, como se encontra mencionada na petição apresentada em 1912, só será alcançada depois do 25 de abril de 1974.
[1]Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, Associação de Propaganda Feminista (APF) e Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP).
A divisão existente quanto ao universo de mulheres a serem abrangidas pelo direito de voto dentro da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas levou a uma cisão e à formação, a 12 de maio de 1911, da Associação de Propaganda Feminista.
[2]O Decreto fundamenta a alteração na “alta conveniência que há em abreviar a abertura e funcionamento da Assembleia Constituinte, por forma a normalizar quanto antes a vida da Nação Portuguesa, e atendendo às informações e reclamações que lhe têm vindo de toda a parte do país (…)”
[3]A apreciação do recurso recaiu em João Baptista de Castro, pai de Ana de Castro Osório e juiz da 1ª Vara Cível, que decidiu em favor da reclamante, ordenando que ela fosse incluída no recenseamento em preparação, porque a lei eleitoral, estabelecia que eram eleitores e elegíveis os portugueses maiores de vinte e um anos, residentes em territórios nacionais, soubessem ler e escrever e fossem chefes de família, concluindo que a lei, ao referir-se a portugueses, englobava tanto os homens como as mulheres, pois se o legislador tivesse intenção de as excluir tê-lo-ia manifestado de forma clara.
[4]A esta intervenção responderá o Senador Nunes da Mata, dizendo que as exceções provem da educação. Há uma filha interessante e outra não interessante. A que é pouco bonita trata de suprir esse defeito pelo estudo.
[5]A sessão foi aberta às 22 horas e 5 minutos e o Diário do Congresso substitui a menção a Ordem do dia para Ordem da noite.