A Biblioteca Passos Manuel tem vindo a digitalizar títulos que se encontram em domínio público, quer provenientes da coleção da Biblioteca das Cortes, quer pertencentes a espólios à sua guarda. Os exemplares digitalizados ficam disponíveis em acesso público, universal e gratuito a partir do catálogo bibliográfico, do Registo Nacional de Objetos Digitais e da Europeana. Nesta secção destacam-se alguns desses títulos.
Por antítese à monarquia absoluta, a monarquia constitucional veio operar uma separação de poderes legislativo, executivo e judicial, num número igual de agentes políticos, conforme consagrado na Constituição de 1822: «o primeiro reside nas Cortes com dependência da sanção do Rei. O segundo está no Rei e nos Secretários de Estado, que o exercitam debaixo da autoridade do mesmo Rei. O terceiro está nos Juízes. Cada um destes poderes é de tal maneira independente, que um não poderá arrogar a si as atribuições do outro».
Nesta nova lógica organizativa das instâncias de poder, não deixa de ser curioso que tenha sido objeto de partilha uma das prerrogativas mais intrinsecamente ligadas ao poder real absoluto e de uso secular: a de apreciar e decidir sobre pedidos formulados diretamente pelo súbdito-cidadão. De facto, prescreve o artigo 16.º da Constituição de 1822 que «Todo o Português poderá apresentar por escrito às Cortes e ao poder executivo reclamações, queixas ou petições, que deverão ser examinadas». Este preceito constitucional foi, de resto, decalcado das Bases da Constituição Portuguesa (aprovadas em sessão de Cortes de 9 de março de 1821 e juradas a 29 do mesmo mês), com a única alteração de passar a designar por “português” quem nas bases era designado por “cidadão”.
Nas primeiras cortes liberais portuguesas, entre 1821 e 1823, assistiu-se a um movimento peticionário sem precedentes nacionais, que os historiadores consideram ser comparável ao ocorrido em França na sequência da Revolução Francesa. Os dois marcos históricos comungam, de resto, de um mesmo ambiente de rutura, nascido de uma participação significativa da população que, naturalmente, esperou e exigiu reformas. Ou que, simplesmente, veio reclamar justiça. Escreve Miguel Dantas da Cruz1 que «os milhares de petições enviados para as Cortes dão testemunho dessa agitação política e das tensões prevalecentes na sociedade portuguesa de inícios de Oitocentos. Todos peticionavam, do aristocrata à criada doméstica, do pobre rendeiro ao ainda mais marginalizado escravo, apanhado no rebuliço político». E o ato de petição torna-se, no Portugal Liberal, uma das formas mais regulares de participação popular no processo político.
Num primeiro momento, as Cortes não parecem ter conseguido medir até que ponto a adesão popular massiva a este instituto viria a produzir entropia no trabalho parlamentar. Tanto assim é, que na 5.ª sessão, em 1 de fevereiro de 1821, «concordou-se em ser desnecessário criar Comissão de Petições, porquanto essas se repartirão pelas respetivas Secretarias»2. A realidade veio demonstrar o contrário e, em sessão de 14 de março de 1821, eram nomeados sete deputados para integrar a dita Comissão3, que assumiria a incumbência de centralizar a receção das Petições ou Requerimentos que chegavam às Cortes e, consoante o seu assunto, remetê-las à Comissão respetiva. Acrescente-se que, nas Cortes do Vintismo, o número de comissões ascendia a quase cinquenta.
Dantas da Cruz fala mesmo de uma «avalanche peticionária», «tão significativa que os deputados não conseguiam dar resposta adequada». Os Diários das Sessões deste período são um testemunho expressivo desse peso no quotidiano parlamentar e permitem conjeturas sobre o tempo investido na receção, análise, distribuição, discussão e resposta às petições entradas.
Um dos Deputados a fazer eco dessa preocupação foi o representante da Madeira, Maurício José de Castelo Branco Manuel, que, na sessão de 17 de julho, apresentou uma proposta de reagendamento dos trabalhos, que pode ser consultada no Arquivo Histórico Parlamentar4. Para o Deputado, as Cortes tentavam dar resposta às petições «com o maior desvelo, até prorrogando as suas sessões por algumas horas», embora sem que fosse possível alcançar o desejado efeito de lhes dar deferimento em tempo útil, «já pela multiplicidade dos requerimentos que se oferecem, já talvez por não ser este o meio mais oportuno, achando-se naquelas horas da prorrogação os espíritos fatigados pelas antecedentes discussões e incapazes de darem a devida atenção, e justa decisão, a objetos algumas vezes mui ponderosos». Maurício José temia que dessa incapacidade de resposta pudesse resultar o descontentamento popular, dando como certo que «continuando esta marcha de coisas, e amontoando-se cada vez mais os requerimentos e projetos, será certamente maior o embaraço e desgosto dos Povos, na falsa suposição de que alguns ficaram em desprezo, ou caíram em esquecimento». Para obviar o problema, propunha «que em lugar das horas da prorrogação, que se tem adotado para a discussão dos Pareceres adiados, e que a experiência tem mostrado (pela fadiga dos Ilustres Deputados) não serem as mais próprias para o dito fim, se substitua no dia imediato ao dos Pareceres uma sessão extraordinária de três horas, que pode ser (no verão) das seis até às nove da tarde, e outra às mesmas horas em todos os sábados; isto provisoriamente enquanto assim o pedir a expedição dos requerimentos».
Esta preocupação resultava não apenas da vontade de dar cumprimento ao previsto nas Bases da Constituição (e, como vimos, na Constituição de 1822), mas também de uma intenção paralela de manter o protagonismo das Cortes, enquanto canal aberto privilegiado de diálogo entre a sociedade e as instâncias de poder. Além disso, desse modo, viabilizar-se-ia um processo que o historiador Miguel Dantas da Cruz apelida de «parlamentarização da vida política portuguesa». A resposta rápida às petições era crucial para manter a confiança pública nas novas instituições liberais e na representatividade parlamentar, aspeto particularmente sensível do recém-estabelecido regime constitucional.
Para o historiador Diego Palacios Cerezales, que se interessou em estudar a construção da ideia de opinião pública no liberalismo oitocentista português, o caráter original das petições, enquanto forma individual de participação política e de âmbito estritamente local, tenderá a evoluir, até se tornarem um recurso utilizável em contexto de combate político5. Reconhece, porém, que só em 1855 é possível encontrar uma primeira petição coletiva de âmbito verdadeiramente nacional, aberta à assinatura da maioria dos cidadãos. Tratava-se da rejeição de um conjunto de novos impostos, que recolheu cerca de 35.000 assinaturas provenientes de várias regiões de Portugal. Os seus proponentes não hesitaram em fazer uso deste quantitativo para apresentar esta petição como expressão da opinião pública, uma ideia partilhada por alguns deputados. Na sessão de 15 de maio de 1856, o Deputado Basílio Alberto afirmava: «Quanto à força do voto, julgo que no fim da legislatura é igual à do princípio, mas somente no que respeita à força legal, porque a moral não provém da carta nem das eleições, mas da opinião pública; e por isso, nessa influem as representações, as quais, como tais, não podem ser desprezadas, porque o voto parlamentar sem força moral é nulo»6.
Trata-se de uma evolução com paralelo em outros países, já que «a historiografia internacional tem acentuado as diferenças existentes entre as petições tradicionais pré-contemporâneas, tendencialmente individuais, circunscritas e normalmente formuladas num discurso deferencial, e as petições modernas, já relacionadas com os protestos de massa, característicos do mundo contemporâneo» e, como tal, «instrumentos de pressão coletiva», veiculando «a nova linguagem de direitos políticos mais amplos»7.
Pela sua natureza, a quase totalidade das petições apresentadas às Cortes nunca conheceram versão impressa e é na forma de documento manuscrito que podem ser consultadas no Arquivo Histórico Parlamentar. Na Biblioteca Passos Manuel, não existe qualquer exemplar do primeiro período liberal. Após o processo de guerra civil que opôs absolutistas e liberais, as Cortes reabriram no dia 15 de janeiro de 1834. Como prescrito na Carta Constitucional de 1826, então vigente, as Cortes compunham-se de duas Câmaras: dos Deputados e dos Pares. Para esse período, existem na coleção vários opúsculos impressos, remetidos ao Poder Legislativo, fazendo uso do direito de petição, e revelando uma intenção clara de participação cidadã nos processos de decisão política. Selecionámos uma.
Trata-se de um pequeno folheto de 6 páginas, datado de 1836, endereçado aos Dignos Pares do Reino, em defesa dos direitos de «cento e três chefes de cento e três famílias». A petição em causa prende-se com o «Projeto de Abolição das Capatazias, apresentado à Câmara dos Senhores Deputados, pela Comissão de Comércio, em sessão de 22 de fevereiro próximo passado, e agora já aprovado por aquela Câmara», e que os suplicantes pretendem ver rejeitado pela Câmara dos Pares.
João Oliveira
[1] CRUZ, Miguel Dantas da - «Petições: o vox populi durante a Revolução Liberal Portuguesa, 1820-1823» In Público, 1 de novembro de 2020. Disponível em https://www.publico.pt/2020/11/01/politica/noticia/peticoes-vox-populi-durante-revolucao-liberal-portuguesa-18201823-1936898.
[2] Diário da Câmara dos Deputados, n.º 5, sessão de 1 de fevereiro de 1821, p. 18. Disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821/01/01/01/005/1821-02-01/18.
[3] Eram eles os Deputados Francisco Barroso Pereira, João Baptista Felgueiras, José Maria Xavier de Araújo, José Peixoto de Sarmento Queiroz, Isidoro José dos Santos, Manuel José Plácido da Silva Negrão e Alexandre Tomás de Moraes Sarmento. Cf. Diário da Câmara dos Deputados, n.º 34, sessão de 14 de março de 1821, p. 267. Disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821/01/01/01/034/1821-03-14/267.
[4] AHP, Câmara dos deputados; Diversos (expediente da secretaria); seção I e II, Caixa 123, maço 84 (n. 333).
[5] PALACIOS CEREZALES, Diego - «Embodying public opinion: from petitions to mass meetings in nineteenth-century Portugal». In e-Journal of Portuguese History. V. 9, n.º 1 (Summer 2011), p. 1-19. Disponível em https://catalogobib.parlamento.pt:82/images/winlibimg.aspx?skey=&doc=147199&img=34805.
[6] Diário da Câmara dos Deputados, n.º 12, sessão de 15 de maio de 1856, p. 148. Disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/cd/01/01/01/036/1856-05-15/148.
[7] CRUZ, Miguel Dantas da - «O movimento peticionário do primeiro liberalismo português e a parlamentarização da vida política em Portugal (1820-1823)». In Almanack, n.º 30 (2022), p. 7. Disponível em https://catalogobib.parlamento.pt:82/images/winlibimg.aspx?skey=&doc=147185&img=34788.
José Maria Veloso Salgado (Orense, 1864 – Lisboa, 1945)
1920
Óleo sobre tela
Alt. 23 x Larg. 35,7 cm
Inv.º MAR 528
Nesta edição dedicada aos instrumentos de participação política, destaca-se um estudo de personagens da assistência nas tribunas do público do Hemiciclo, realizado para integrar a composição histórica com a representação de uma sessão das Cortes Constituintes de 1821-1822. A composição decoraria a então Câmara dos Deputados do Congresso da República, atual Sala das Sessões, no âmbito das comemorações do Centenário da Constituição de 1822. O estudo está assinado e datado no seu canto inferior direito: «J V Salgado / 1920».
Trata-se de uma pintura a óleo sobre tela retangular, disposta na horizontal, em quarto de círculo direito onde, em fundo azul, se observam seis figuras adultas representadas a meio corpo, presentes nas galerias, de frente para o espectador. A presença feminina, à época, era uma novidade em termos de representação artística em ambientes políticos. As expressões faciais das figuras retratadas sugerem um ambiente carregado de expectativa, refletindo a importância dos debates parlamentares.
A presença do público na assistência às sessões parlamentares tem sido uma constante desde a primeira sessão das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, que elaboraram a Constituição de 1822, assumindo um papel fundamental no debate político e na transparência dos processos legislativos. Esta presença (ou assistência) demonstra que as decisões políticas são tomadas num espaço aberto e acessível a todos os cidadãos, o que fortalece a legitimidade do processo democrático, aumenta a confiança nas instituições e responsabiliza os parlamentares.
José Maria Veloso Salgado (1864-1945) nasceu em Orense, na Galiza, e em 1887 adquiriu a nacionalidade portuguesa. O pintor português foi considerado um dos maiores representantes da segunda geração do Naturalismo em Portugal, destacando-se essencialmente no género de pintura de história. Em 1888 foi galardoado num concurso de pintura temática alusiva ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia, com a obra “Vasco da Gama em presença do Samorim”. Diplomado no mesmo ano pela Academia Real de Belas Artes de Lisboa, foi para Paris com uma bolsa do Estado português. Foi condecorado com medalhas de ouro nos salões artísticos no Rio de Janeiro, Brasil, e São Francisco, Estados Unidos da América, e, em 1911, com a medalha de honra da Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa.
Joaquim Soares