«Não basta que o povo cumpra as leis, é necessário que compreenda que também lhe cabe o direito e o dever de as construir.»
José Saramago
A participação dos cidadãos no processo legislativo
A valorização da participação dos cidadãos na feitura das leis constitui um dos pilares da democracia representativa e da justiça social porque permite garantir que as normas que regulam a vida em sociedade refletem, de maneira justa, os interesses e as necessidades da mesma. Assim, conforme proclamam os sistemas democráticos, as leis não devem ser impostas, mas sim construídas com a participação de quem deve cumpri-las1 .
A preocupação com a participação dos cidadãos no processo legislativo é facilmente justificável, tendo em conta que este procedimento apresenta, nomeadamente, as seguintes vantagens:
A consulta pública, no âmbito do processo legislativo, é um mecanismo de participação política que permite à sociedade civil, especialistas, organizações e cidadãos em geral contribuírem com opiniões, sugestões e críticas durante a formulação ou discussão de iniciativas legislativas2 .
No âmbito do processo legislativo parlamentar3, a consulta pode ser feita de várias formas:
- Colocar a iniciativa4 em consulta pública (através do sistema de apreciação pública ou de recolha de contributos);
- Solicitar apenas a pronúncia de certas entidades do setor (ou utilizar as duas formas referidas em simultâneo);
- Realizar audições parlamentares ou conceder audiência a quem a solicitar.
Apreciação pública e recolha de contributos
- Apreciação pública
A apreciação pública, aplicada maioritariamente a iniciativas legislativas sobre matéria laboral5, é publicitada em separata eletrónica do Diário da Assembleia da República (DAR), bem como em dois jornais de circulação nacional. Esta apreciação decorre, por regra, durante um prazo de 30 dias, no decurso do qual os interessados podem remeter sugestões e pareceres à comissão competente ou solicitar-lhe audiência para apresentar, presencialmente, a sua posição sobre a iniciativa.
Por outro lado, no sítio da Assembleia da República, no separador da cidadania e participação, em , é disponibilizada a lista das iniciativas que se encontram em apreciação pública, com hiperligação para a página em que consta a tramitação da respetiva iniciativa. Apenas são disponibilizadas as iniciativas cuja apreciação está a decorrer e não aquelas em que o prazo de apreciação já está encerrado.
Na página da iniciativa consta a indicação do prazo da apreciação pública e a hiperligação para a respetiva separata do DAR, sendo também possível enviar contributos através da caixa de correio eletrónico da comissão. As sugestões, os pareceres recebidos e a lista de contributos são publicitados na página da comissão (veja-se o Projeto de lei n.º 260/XVI/1.ª).
- Contributos a iniciativas
Também no separador da cidadania e participação, em contributos a iniciativas, são listadas as iniciativas que se encontram em consulta em cada comissão parlamentar, bem como aquelas cuja consulta já está encerrada6. Na página inicial da consulta, é possível aceder à tramitação da iniciativa em causa e enviar os contributos que se pretenda.
Neste caso, é utilizada uma plataforma criada para potenciar a apresentação dos mesmos com apreciações e propostas de alteração, em relação aos vários artigos da iniciativa, o que permite rentabilizar a sua utilização em propostas a apresentar pelos grupos parlamentares e Deputados (ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos e caso entendam dar acolhimento e sequência aos contributos recebidos), visando a alteração do texto inicial das iniciativas.
A iniciativa é inserida na plataforma com as várias partes autonomizadas, ou seja, com a exposição de motivos e cada um dos artigos em caixas individualizadas.
A título de exemplo, veja-se abaixo a página de uma consulta em curso, respeitante ao Projeto de lei n.º 252/XVI/1 (Livre) «Estabelece a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 3 anos de idade».
Inserido diretamente na plataforma pelas entidades ou cidadãos interessados, o contributo pode revestir dois tipos: genérico, ou seja, sobre a iniciativa como um todo; ou sobre um artigo específico. Finda a inserção do contributo, este fica disponível para consulta, após a comissão verificar que não inclui dados pessoais, uma vez que não podem ser publicitados. Esta consulta pode ser feita através de uma listagem de entidades com o respetivo contributo, genérico ou por artigo, ou de um relatório global com todos os contributos.
Evidencia-se, de seguida, como são apresentados no relatório global7 os contributos de duas entidades em relação a um determinado artigo.
Em suma, a plataforma pode ser utilizada nos vários tipos de consulta, mas exige a inserção da iniciativa por artigos, o que se traduziria num grande volume de trabalho se fosse utilizada em todas as iniciativas8, facto que tem limitado a sua utilização generalizada. Em contrapartida, permite que os contributos sejam inseridos diretamente pelos interessados e fiquem disponibilizados publicamente, tornando mais acessível e atempada a informação disponível, sendo, assim, uma ferramenta que pode contribuir para a melhoria da qualidade da legislação.
Acresce ainda dizer que, quem insere um contributo numa iniciativa pode subscrever um pedido para receber um aviso quando existirem novos contributos, o que permite ter sempre informação atualizada.
Recolha de contributos temáticos ou com perguntas
A plataforma pode, de igual modo, ser utilizada, em simultâneo com a recolha de contributos em relação aos artigos nos termos habituais, para obtenção de resposta a perguntas específicas, inseridas na aplicação em campos autónomos9.
Além disso, a plataforma tem sido utilizada, com ajustamentos, para a recolha de contributos em relação a temáticas, ou seja, fora do âmbito de um processo legislativo em curso. Tal foi o caso, por exemplo, dos seguintes temas:
Conclusão
Conforme afirmou Jorge Sampaio, «a cidadania ativa é o cimento de uma democracia verdadeira, em que o cidadão deixa de ser objeto das leis para ser o seu autor». Neste sentido, a contribuição de todos no processo de aprovação das leis, através das várias formas, torna-o mais transparente e democrático e potencia uma legislação mais eficaz.
Para este efeito, o Parlamento tem vindo a desenvolver e potenciar a participação ativa dos interessados, permitindo:
- Aumentar as situações de consulta obrigatória10;
- Alargar o leque de entidades às quais são pedidos contributos;
- Disponibilizar uma plataforma que permite uma consulta dinâmica e interativa.
Recentemente, com a última revisão do Regimento, a Assembleia da República estabeleceu que todas as iniciativas legislativas serão colocadas em consulta pública no seu site, sem prejuízo do regime específico da legislação laboral. Esta consulta pública será possível desde o momento em que as iniciativas baixem à comissão para apreciação na generalidade, até ao início da votação na especialidade ou, eventualmente, até que sejam rejeitadas ou retiradas.
Este processo está em fase de implementação e envolverá a utilização da plataforma referida, com adaptações, para disponibilização das iniciativas no seu todo, e não por artigos, sendo esta a solução possível para o uso generalizado da consulta pública, em relação a todas as iniciativas legislativas.
Teresa Fernandes e Rita Nobre
Bibliografia:
FERNANDES, Teresa; TIBÚRCIO, Tiago, “Raio-X da participação dos cidadãos no Parlamento”, in Como funciona o Parlamento, Assembleia da República - Divisão de Edições, 2019.
[1] Em Portugal, embora todos os direitos de participação política se reconduzam ao artigo 48.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os artigos 108.º e 109.º da CRP são perentórios ao afirmar que «O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição», daí que a participação direta e ativa de homens e mulheres na vida política constitua condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático.
[2] No Parlamento, incluem os projetos de lei (da iniciativa dos Deputados, dos grupos parlamentares ou de grupos de cidadãos eleitores) e as propostas de lei (da iniciativa do Governo ou das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas).
[3] Quanto às iniciativas legislativas da competência do Governo, os cidadãos também podem ser chamados a pronunciar-se, através do Portal ConsultaLEX, plataforma dedicada à participação pública, que visa anunciar e recolher contribuições dos interessados. É nessa sequência que as propostas de lei devem ser enviadas ao Parlamento, acompanhadas dos contributos resultantes dessa consulta.
[4] Que pode abranger, não só as iniciativas legislativas, mas também os projetos de resolução com recomendações ao Governo.
[5] Cuja obrigatoriedade decorre da alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição, bem como da alínea a) do n.º 1 do artigo 472.º do Código do Trabalho e dos artigos 15.º e 16.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
[6] Atualmente, só constam consultas da Comissão de Educação e Ciência.
[7]Respeitante à Proposta de lei n.º 24/XVI/1.ª (Governo) «Aprova o Estatuto da Carreira de Investigação Científica e o Regime comum das carreiras próprias de investigação científica em regime de direito privado».
[8] Refira-se que desde o início da atual legislatura (26/3/2024) e até ao momento presente (27/11/2024), já deram entrada 360 projetos de lei e 34 propostas de lei.
[9] Este foi o caso, nomeadamente, do Projeto de lei n.º 809/XIV/2.ª (cidadãos) «Valorização do ensino politécnico nacional e internacionalmente».
[10] Designadamente nas áreas da deficiência, dos direitos dos consumidores, da família ou da política de ensino (n.º 5 do artigo 134.º do Regimento).