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Petição vs iniciativa legislativa de cidadãos


Os cidadãos por trás de iniciativas legislativas

pessoas na escadaria nobre do palácio de são bento

A participação dos cidadãos na elaboração da lei é um dos princípios do Estado de Direito democrático, porquanto são os cidadãos os destinatários da lei. 

As vias de participação dos cidadãos, no procedimento legislativo parlamentar, estão consagradas na Constituição, no Regimento da Assembleia da República (Regimento) e ainda em leis avulsas, sendo as principais: o direito de petição; a iniciativa legislativa de cidadãos e a iniciativa de referendo1

O direito de petição 2é conferido pela Constituição (artigo 52.º) aos cidadãos, individual ou coletivamente considerados, de apresentarem sugestões à Assembleia da República (AR), no âmbito do processo de tomada de decisão política, em última instância, tendente à criação, alteração ou revogação de ato legislativo.

O direito de iniciativa legislativa de cidadãos (ILC), consagrado no artigo 167.º da Constituição3, é exercido através da apresentação, por parte de um grupo de cidadãos eleitores, de projetos de lei à Assembleia da República. 

Ao contrário da ILC, o direito de petição não consubstancia um direito de iniciativa legislativa, porém, como veremos, ao servir para colocar o legislador perante uma reivindicação de alteração legislativa específica, as petições têm muitas vezes sido verdadeiras impulsionadoras de agendamentos de iniciativas de grupos parlamentares. 

Em 2020, ambos os regimes sofreram alterações atendentes ao número de assinaturas necessárias à sua tramitação. O regime da ILC desceu do número constante da versão originária da lei de 35.000, para o novo patamar de 20.000 assinaturas4. Por seu lado, para apreciação em Plenário de uma petição, o número mínimo subiu de 4.000 para 7.500 assinaturas5. No caso das petições, a não superação do patamar mínimo de assinaturas apenas dita uma tramitação distinta, sem garantia de debate em plenário ou em comissão6.  Já no caso das ILC, a consequência da não obtenção do número mínimo é a não admissibilidade da iniciativa. 

Sendo menor o número de assinaturas necessárias para que uma petição seja apreciada em Plenário, há uma clara vantagem para os cidadãos que procuram influenciar o debate parlamentar através do direito petição. 

A ILC é formalmente mais exigente porque obriga à produção de um texto normativo, sob forma de articulado7, de uma designação e de exposição de motivos, além dos requisitos de identificação dos proponentes e da comissão representativa. Já a petição não está sujeita a uma forma específica de apresentação do respetivo conteúdo, carecendo apenas de redução a escrito e de ser inteligível. Porém, em termos de resultado prático, esta exigência de articulado não se revela decisiva, uma vez que, durante a discussão e votação na especialidade, os cidadãos autores da ILC não têm como impedir a AR de alterar substancialmente o conteúdo do projeto de lei porque não está vinculado ao texto apresentado. Nesse sentido, a ILC não oferece mais meios de condicionar a intervenção parlamentar do que uma petição.

No que toca ao conteúdo e limites, não existem limites no direito de petição, além das causas de indeferimento constantes da lei (pretensão ilegal, solicitação de reapreciação de decisões judiciais ou atos administrativos que já não são impugnáveis, reapreciação de petição anterior ou carência de fundamento). 

Já no caso da ILC, não podem ser incluídas no objeto as alterações à Constituição, as matérias cuja iniciativa esteja reservada ao Governo ou às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, as amnistias e perdões genéricos e as matérias que revistam natureza ou conteúdo orçamental, tributário ou financeiro. Estão também excluídas as iniciativas que violem a Constituição, não contenham definição clara das alterações a introduzir ou que impliquem aumento de despesa ou diminuição de receita no ano económico em curso, contudo estas são limitações comuns às demais iniciativas legislativas. 

Nesse sentido, a opção por um ou outro instituto não acarreta diferenças de regime. 

Quanto à tramitação, não há grandes discrepâncias quanto ao perfil dos atos a praticar em cada fase: 

Com exceção da elaboração da nota técnica nas ILC, são identificáveis perfis equivalentes de atos a praticar: nota de admissibilidade, audição dos cidadãos que desencadeiam o processo e elaboração de relatório/parecer por Deputado designado pela Comissão.

Os prazos distintos podem acabar por não se revelar um elemento decisivo na tramitação (e consequentemente na escolha pelo cidadão) entre a ILC e a petição, porque nem sempre são cumpridos e porque há margem de discricionariedade nos agendamentos que torna esses prazos, na maior parte das vezes, indicativos.

Um dos aspetos que mais tem contribuído para um relevo acrescido das petições no trabalho parlamentar é o mecanismo do agendamento por arrastamento9 de iniciativas legislativas (ou de resoluções10) com petições, que sobem a Plenário para apreciação. É esta realidade que transforma as petições num canal de acesso adicional dos cidadãos à atividade legislativa. Está dependente, é certo, da intervenção de um grupo parlamentar ou Deputado que apresente um projeto e promova o seu arrastamento, mas permite realizar o exercício de comparação com a ILC. A hipótese de agendamento por arrastamento, possibilita a inclusão na ordem do dia de iniciativas de que os grupos parlamentares sejam autores sem usar um agendamento próprio.

Assim, os partidos que se revejam numa pretensão suscitada por uma petição agendada para Plenário podem dar entrada de uma iniciativa e requerer o seu agendamento por arrastamento11.

No caso das ILC, recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo de 30 dias para a sua elaboração, deve a iniciativa ser agendada para uma das 10 reuniões plenárias seguintes. Concluída a fase de instrução, há também um caráter automático, mas a janela temporal para o agendamento é ainda extensa e dotada de alguma discricionariedade, nem sempre sendo cumprida estritamente. 

É esta particularidade do regime de agendamento por arrastamento com a petição (já resultante da própria lei, mas com um alcance estatístico crescente, como veremos de seguida), que oferece um regime que, não tendo a natureza de iniciativa legislativa, cria uma porta para desencadear um processo legislativo.

A combinação destas dimensões do regime das petições permite que, mesmo sendo externa, a petição ofereça acesso a uma fase já interna do processo legislativo.



Estatísticas

Consultados os elementos constantes da base de dados da atividade parlamentar, é possível retirar elementos quantitativos sobre esta matéria, a partir da primeira legislatura completa, após a entrada em vigor do regime jurídico da Iniciativa Legislativa de Cidadãos e das alterações substantivas introduzidas ao regime do Direito de Petição em 2003 (a X Legislatura), analisando as legislaturas findas subsequentes (a XI, XII, XIII, XIV e XV Legislaturas).



Iniciativas legislativas de cidadãos  



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Petições

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Avaliação

Os dados coligidos revelam, para o mesmo período temporal, elementos relevantes para uma apreciação comparada. Não obstante o período temporal estar balizado por marcos normativos essenciais para analisar os dois regimes, alguns fatores carecem de análise e avaliação mais detalhada noutra sede na procura de relações de causalidade. A título de exemplo, a configuração das maiorias parlamentares (em todo o período em análise existem três momentos de governação maioritária – de um só partido, entre 2005 e 2009 e entre 2022 a 2024, e de uma coligação, entre 2011 e 2015 – o que diminui a possibilidade de constelações contrárias às opções do grupo parlamentar de maior dimensão e/ou que formou o Governo), e as práticas interpretativas fixadas pela Conferência de Líderes sobre agendamentos e arrastamentos ao longo dos anos. 

Quanto às ILC, o balanço de 19 anos é revelador de um uso pouco frequente da figura (com apenas 13 projetos admitidos), apesar do sucesso relativo dessas iniciativas, com a aprovação de 53,8%. 

Já o percurso das petições é mais interessante: descontadas as legislaturas interrompidas [XI (2009 a 2011); XIV (2019 a 2022) e a XV (2022 a 2024)], nas demais há uma estabilidade do número de petições, sempre acima ou muito perto das cinco centenas. A partir da X Legislatura há uma subida clara do número de petições agendadas em Plenário e uma subida ainda mais constante e intensa dos agendamentos por arrastamento, com essa subida das petições a Plenário. Este último número mais do que duplica da XI para a XII Legislatura (desconte-se o efeito da dissolução, ainda assim), quase duplica novamente da XII para a XIII, e, atendendo à duração das duas legislaturas seguintes (aproximadamente dois anos cada), o número de arrastamentos é bastante significativo. 

Tidas em conta as percentagens de agendamentos e de leis aprovadas por esta via, por referência às petições admitidas, há também aí um salto claro após a X Legislatura, um recuo na XII Legislatura (eventualmente compreensível pela presença de uma maioria parlamentar) e uma retoma do ritmo a partir da XIII. 

O balanço absoluto da comparação dos resultados das petições com arrastamento de iniciativas legislativas com as ILC, esse, é bastante eloquente: aos 7 casos de chegada a bom porto da intenção dos cidadãos com aprovação de uma lei, o caminho alternativo, impulsionado pelo recurso a petições, dá um panorama mais bem-sucedido: 28 leis aprovadas – quatro vezes superior ao resultado da ILC.



Balanço e Conclusões

As ILC não têm tido um aumento expressivo, ao contrário do que tem sucedido com as petições.  

Não sendo o direito de petição um direito de iniciativa legislativa, verifica-se, com uma frequência cada vez maior, que os temas objeto das petições desencadeiam a iniciativa legislativa de Deputados e grupos parlamentares, permitindo que estes muitas vezes aumentem a possibilidade de agendamentos que de outra forma não conseguiriam concretizar.

Assim, no que diz respeito à efetivação da participação política dos cidadãos em matéria legislativa, as petições são mais eficientes do que as ILC e têm dado mais resultados práticos de aprovação final de atos legislativos. Refira-se que isto acontece mesmo havendo menor intervenção dos signatários (que são ouvidos apenas uma vez na Comissão) e de o processo ser potencialmente menos detalhado na instrução. 

É, assim, inegável a importância eminente que as petições têm vindo a assumir na definição da agenda política, ao conseguirem pressionar a atuação do Parlamento, porque os grupos parlamentares e os Deputados acabam por exercer o seu poder de iniciativa legislativa levados pelo ímpeto das petições.

Este reforço da democracia participativa através do envolvimento dos cidadãos na atividade legislativa, via exercício do Direito de Petição, tem contribuído para a construção de um Parlamento mais próximo dos cidadãos, superando os entraves que o regime mais exigente da ILC lhes coloca.



Inês Mota


[1] Atendendo ao objeto do presente trabalho, apenas nos iremos debruçar sobre o direito de petição e a iniciativa legislativa de cidadãos.

[2] Cujo regime jurídico consta na Lei n.º 43/90, de 10 de agosto.

[3] Regulamentado pela Lei n.º 17/2003, de 4 de junho.

[4] Cf. n.º 1, do artigo 6.º, da Lei n.º 17/2003, de 4 de junho alterado pela Lei n.º 51/2020, de 25 de agosto.

[5] Cf. al. a), do n.º 1, do artigo 24.º, da Lei n.º 43/90, de 10 de agosto alterado pela Lei n.º 63/2020 de 29 de outubro.

[6] Porém, é possível que uma petição que não reúna as 7.500 assinaturas seja apreciada em Plenário, desde que «seja elaborado relatório e parecer favorável à sua apreciação em Plenário, devidamente fundamentado, tendo em conta, em especial, o âmbito dos interesses em causa, a sua importância social, económica ou cultural e a gravidade da situação objeto de petição» (cf. al. b), n.º 1, artigo 24.º, da Lei n.º 43/90, de 10 de agosto).

[7] Articulado é uma exposição jurídica ordenada por artigos (artigo a artigo), como por exemplo de um tratado, lei ou regulamento.

[8] A comissão representativa é constituída para participar nas diversas fases do procedimento legislativo a que deram origem (artigo 7.º da Lei n.º 17/2003, de 4 de junho).

[9] O agendamento por arrastamento é a possibilidade de juntar uma proposta ou projeto seu a um debate sobre iniciativa de outro partido ou Governo já agendado par Plenário, desde que exista «efetiva conexão material entre objeto dos projetos e propostas a arrastar e o objeto do agendamento inicial» (cf. n.º 3, do artigo 65.º, do Regimento).

[10] No caso das petições em que o objeto é da competência do Governo, os Deputados e Grupos Parlamentares dão entrada e arrastam projetos de resolução.

[11] Com a alteração ao Regimento de 2020, passou a estar expressamente previsto os casos de agendamento por arrastamento com petições.