A Biblioteca Passos Manuel tem vindo a digitalizar títulos que se encontram em domínio público, quer provenientes da coleção da Biblioteca das Cortes, quer pertencentes a espólios à sua guarda. Os exemplares digitalizados ficam disponíveis em acesso público, universal e gratuito a partir do catálogo bibliográfico, do Registo Nacional de Objetos Digitais e da Europeana. Nesta secção destacam-se alguns desses títulos.
Neste artigo analisam-se duas obras escritas pelo Barão de S. Clemente, incontornáveis para a história do parlamentarismo novecentista: os Documentos para a história das Cortes Geraes da nação portugueza, editados em oito volumes, entre 1883-1891, que cobrem a cronologia de 1820 a 1831; e as Estatisticas e biographias parlamentares portuguezas, que deixou incompletas, publicadas originalmente no jornal O Comércio do Porto, e editadas em livro, pela tipografia do mesmo jornal, entre 1890 e 1982, cobrindo a atividade parlamentar desde 1887.
Clemente José dos Santos nasceu em 5 de janeiro de 1818, em Vila Franca de Xira. Foi educado na Real Casa Pia de Lisboa, instituição em que foi admitido aos 12 anos de idade e que acabaria por funcionar como «elevador social», abrindo-lhe portas para um percurso de vida que o iria ligar, de forma duradoura e indelével, à história do Parlamento português.
De origens humildes, órfão de mãe aos 9 anos de idade e de pai aos 14, as capacidades intelectuais do jovem aluno não passaram despercebidas, e da Casa Pia saiu para a Câmara dos Deputados, para exercer funções de taquígrafo. Aconteceu no dia 10 de dezembro de 1838, embora já praticasse, desde 1835, na mesma Câmara. Progrediu na carreira: terceiro taquígrafo até 1849, segundo taquígrafo efetivo em 1850, primeiro taquígrafo em 1858, Diretor-Geral da Repartição Taquigráfica em 1880 e Chefe da 2.ª Repartição da Direção Geral da Câmara dos Deputados em 1882. Pela reforma dos serviços operada em setembro de 1889, foi nomeado bibliotecário-mor das Cortes, por despacho de 18 de janeiro de 1890.
Logo em 1848, havia sido autorizado, por decreto de 21 de novembro, a abrir um curso de taquigrafia «em uma das Aulas da Secção Ocidental do Liceu Nacional de Lisboa, colocadas no edifício da Casa Pia em Belém, para o ensino gratuito dos órfãos deste Estabelecimento, e de quaisquer outros alunos externos, que se acharem para isso suficientemente habilitados». Os internos deveriam ser escolhidos pela Comissão Administrativa da Casa, de entre «os mais adiantados no conhecimento da leitura, escrita e gramática da língua portuguesa e no de algumas noções elementares de história, ou de outras disciplinas, e que forem de saúde robusta e tiverem firmeza de mão», podendo ficar habilitados «para os exercícios práticos nos trabalhos taquigráficos da próxima Sessão de Cortes», dada a relevância do domínio dessa técnica, «cujo exercício e aperfeiçoamento produz o resultado de poder escrever-se com a mesma exatidão e rapidez com que se pronunciam os discursos»1.
A par da progressão na carreira, aumentava o seu prestígio no universo parlamentar, pelo enorme manancial de conhecimento e de memória que encerrava. Em sessão de 4 de junho de 1879, o Deputado Luís de Bívar afirmava: «Eu não sei o que tem acontecido aos meus ilustres colegas, mas o que é certo é que eu, sempre que tenho tido necessidade, para o andamento dos nossos trabalhos, de quaisquer esclarecimentos ou informações de uma certa ordem, em vez de ir ao arquivo, tenho recorrido sempre ao snr. Clemente José dos Santos e nunca deixei de obter dele, com o maior escrúpulo e prontidão, todos os esclarecimentos que me têm sido necessários»2. Em sessão de 28 de abril de 1884, o Deputado Mariano de Carvalho assinalava que «Não há ninguém nesta e na outra câmara que não o considere como um repositório, como um arquivo, que a todos os momentos nós todos consultamos, e em que todos encontramos sempre, a par da melhor vontade, os mais amplos subsídios. A mesa desta câmara, os deputados, os pares do reino e os ministros, quando querem obter informações fidedignas a respeito dos factos mais importantes da nossa história parlamentar, encontram-nos no snr. Clemente José dos Santos»3.
Acabaria refém desse prestígio. Conta-nos o seu filho, Clemente dos Santos, médico em Vila Franca de Xira, que «por duas vezes requereu a sua aposentação» (em 1883 e em 1892), «justificada com a falta de saúde provada por atestados, a avançada idade e o tempo de serviço. De ambas as vezes teve, porém, de recolher o requerimento à algibeira, porque a mesa da câmara lhe declarou que tudo lhe faria, menos aposentá-lo, quer dizer privar-se dos seus serviços»4.
E assim foi. Em 23 de maio de 1884 recebeu carta de Conselho, passando a integrar o Conselho de sua Majestade. Em 3 de novembro de 1887 foi-lhe concedido o título de Barão de S. Clemente; em 7 de agosto de 1890 tornou-se Comendador da Ordem de Santiago e em 6 de dezembro de 1888 foi proposto para sócio correspondente da Academia Real das Ciências.
Distinções que não fizeram mais do que reconhecer o seu mérito: O Comércio do Porto, jornal onde colaborou, lembrou em jeito de epitáfio que «o barão de S. Clemente, que morreu rodeado da veneração dos primeiros homens de Portugal, […] não foi conduzido por esses homens à posição eminente que ocupava. Impôs-se-lhes pelo seu caráter; insinuou-se-lhes pela sua erudição; cativou-os invencivelmente pelos seus extraordinários hábitos de trabalho. E, assim, de indiferentes fez amigos; de amigos constituiu admiradores»5.
Felizmente, para quem hoje pretende recuperar esse saber e essa memória, o Barão lançou-se à tarefa de os verter em registo escrito, deixando duas obras incontornáveis para a história do parlamentarismo novecentista: os Documentos para a história das Cortes Geraes da nação portugueza, editados em oito volumes, entre 1883-1891, que cobrem a cronologia de 1820 a 1831; e as Estatisticas e biographias parlamentares portuguezas, que deixou incompletas, publicadas originalmente no jornal O Comércio do Porto, e editadas em livro, pela tipografia do mesmo jornal, entre 1890 e 1982, cobrindo a atividade parlamentar desde 1887.
Os Documentos… foram uma encomenda da Câmara dos Deputados, que financiou a impressão e concedeu ao autor uma contrapartida monetária. Nasceram por proposta do Deputado Mariano de Carvalho, visando colmatar «uma grande lacuna existente nos assuntos parlamentares portugueses, pois que há sessenta e dois anos que em Portugal foi proclamado o regime constitucional representativo, por efeito dos acontecimentos políticos realizados na cidade do Porto, em 24 de agosto, e na capital, a 15 de setembro de 1820, e contudo, desde então até ao presente, não se há publicado um único livro especial, por onde se conhecessem com facilidade e segurança os factos que naquela época e posteriormente se deram, e, portanto, a estatística e história parlamentar portuguesa, minuciosamente descrita e documentadamente comprovada; e assim, a origem do sistema representativo entre nós, e os assuntos mais importantes tratados nos corpos legislativos, quando eles têm funcionado, e igualmente os nomes e títulos dos cidadãos portugueses que, desde 1821, têm exercido as altas, nobres e elevadas funções de pares do reino, senadores, deputados, ministros ou conselheiros de estado»6. Na advertência prévia ao primeiro tomo, o autor advoga ter-se limitado, «conforme o espírito e letra da proposta aprovada em sessão de 4 de junho de 1881, a coligir e coordenar os elementos para uma estatística geral sobre o assunto, isenta de apreciações políticas, sem a mínima sombra de parcialidade partidária; é simplesmente o repositório de valiosos documentos oficiais dispersos por dezenas de volumes, alguns incorretos na impressão, e que foi mister examinar com escrupuloso cuidado, porquanto se encontram graves erros e omissões entre o confronto da folha oficial do governo, diário das sessões, atas, coleção da legislação e outros muitos livros que consultei, trabalho difícil, sobretudo nas duas primeiras épocas, pela falta absoluta dos autógrafos pertencentes aos arquivos das cortes de 1821 a 1823 e 1826 a 1828».
Quanto às Estatísticas…, consta que «na câmara dos deputados, à saída de cada tomo, o snr. barão de S. Clemente recebeu, em votação unânime, as mais honrosas manifestações pelo êxito do seu empreendimento, de tamanha valia na cooperação da história pátria contemporânea».
Dispensamo-nos de descrever a estrutura e objetivos da obra, usando em alternativa as palavras do próprio autor: «Os amigos já conhecem a natureza e fim do livro. Já têm visto que se pode assegurar afoitamente que, desde que em Portugal há sistema representativo, não se publicou um único livro deste género.
O livro, na parte propriamente estatística, não é, nem o «Diário das Cortes», nem a sinopse dos trabalhos das duas câmaras legislativas, nem a estatística do pariato português, nem o anuário da câmara dos deputados, nem a coleção das cartas de lei, nem, enfim, outros documentos que é costume, ou não, publicar separada e anualmente, o livro é uma coisa inteiramente diferente; outros são os seus elementos, como outro é o seu fim e intuito.
O livro é o sumário da vida parlamentar, ou antes, da vida legislativa portuguesa nas suas diversas relações.
O livro é o parlamento - o Rei, o deputado, o par e o ministro - é, enfim, o movimento geral dos atos e do pessoal dos corpos legislativos, desde 1821 a 1886, segundo a Constituição política de 1822, a Carta Constitucional de 1826, a Constituição de 1838 e os Atos Adicionais de 1852 e 1885.
O livro, na parte das biografias parlamentares, não é a galeria dos deputados, não é o censor, não é o pai da mãe pátria, não é o estudo da questão, etc., etc., não é, enfim, nenhum desses folhetos que até aqui se têm publicado, alguns deles com mais ou menos critério, acerto e justiça, analisando o merecimento, proceder e valor dos representantes do país, tanto de uma, como de outra câmara; o livro é o deputado, o par e o ministro dentro do parlamento, marcando as eleições e dissoluções de uns, a nomeação e a demissão de outros e assuntos tratados e resolvidos.
O livro assim, e sendo isto, parece-me que satisfará»7.
A ligação do Barão de S. Clemente ao Parlamento e à investigação contemporânea de temas parlamentares faz-se ainda por outra via, por intermédio da Biblioteca Passos Manuel: nos mais de 40 anos de serviços prestados, o autor reuniu uma coleção bibliográfica notável, organizada pelo próprio em cinco secções: Miscelânea Política; Política, História Pátria e Parlamentar; Maços de Folhetos e Impressos Políticos; Legislaturas - Legislação - Jurisprudência; e Economia Política, Agricultura e Diversos. Foi adquirida pelo Parlamento em 1893, sendo objeto de um catálogo impresso. A relevância desta coleção, aliada aos novos procedimentos de recuperação de informação, deu lugar a um separador próprio no Catálogo da Biblioteca.
João Oliveira
[1] Legislação Régia [Em linha]. Decreto de 21 de novembro de 1848. Disponível em https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/24/77/p369.
[2] Diário da Câmara dos Deputados. Sessão de 4 de junho de 1879. Disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/cd/01/01/01/108/1879-06-04/1959?q=%2522Eu%2Bn%25C3%25A3o%2Bsei%2Bo%2Bque%2Btem%2Bacontecido%2B%2522&pPeriodo=mc&pPublicacao=cd.
[3] Diário da Câmara dos Deputados. Sessão de 28 de abril de 1884. Disponível em
https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/cd/01/01/01/066/1884-04-28/1269?q=%2522N%25C3%25A3o%2Bh%25C3%25A1%2Bningu%25C3%25A9m%2Bn%2527esta%2Be%2Bna%2Boutra%2Bc%25C3%25A2mara%2Bque%2Bn%25C3%25A3o%2Bo%2Bconsidere%2B%2522&pPeriodo=mc&pPublicacao=cd.
[4] Estatísticas e biografias parlamentares portuguezas, livro 3, parte 1, p. XXV.
[5] Estatísticas e biografias parlamentares portuguezas, livro 3, parte 1, prólogo, p. VI.
[6] Documentos para a história das Cortes Geraes da nação portugueza, Tomo I.
[7] Estatísticas e biografias parlamentares portuguezas, livro 3, parte 1, prólogo, p. V-VI.
Neste ComunicAR, dedicado ao cruzamento da proteção de dados com a atividade parlamentar, destaca-se, como Peça do mês, a urna de voto.
Esta peça, em madeira de mogno, e uma outra que lhe faz par, foi representada numa fotografia da Sala das Sessões da Câmara dos Pares do Reino, datada de 1867, e que atesta a sua original utilização para as votações daquela Câmara. Mais tarde, em 1911, as duas urnas voltaram a figurar numa fotografia da Sala do Senado, que documenta a sua permanência nesta Câmara durante a República.
Na Assembleia da República (AR) a forma mais comum de votação é por levantados e sentados, que, para além de permitir apurar o sentido do voto, torna pública a posição expressa por cada um dos votantes.
No entanto, sempre que se trata de uma eleição, como a do Presidente da Assembleia da República e dos restantes membros da Mesa, o voto é secreto, utilizando-se para esse efeito uma das quatro urnas de voto existentes no Parlamento. Há outras situações, determinadas pelo Regimento da AR ou pelo Estatuto dos Deputados, em que o voto é igualmente secreto, como acontece sempre que está em causa a deliberação relativa a uma pessoa.