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QUANDO AS COMISSÕES ERAM… COMPLICAÇÕES


Particularidades e curiosidades de algumas Comissões da Câmara dos Pares (1826-1910)

Dir-se-ia que, desde que o Parlamento é Parlamento, sempre existiram comissões parlamentares e assim é. Assim é? Sim e não. Na verdade, na Câmara dos Pares1 nem sempre foi bem assim. 

As antepassadas das comissões permanentes, equivalentes destas nas suas competências e modus operandi, eram, na primitiva Câmara dos Pares, designadas por “Mesas” e subordinadas a uma espécie de comissão guarda-chuva, ou comissão-mãe, se se preferir, a Comissão das Proposições2

Como é que isto tudo se articulava? Nada simples, mas vejamos. De acordo com o primeiro Regimento da Câmara dos Pares, de 1826, a Câmara, apenas instalada, devia eleger por escrutínio de listas a Comissão das Proposições, cujos membros renovava «no princípio de cada sessão anual, podendo ser reeleitos em todas as [sessões] da legislatura».

Esta Comissão era constituída por «um Presidente, dois Secretários e dois Relatores gerais, que devem também ser eleitos membros das mesas particulares, e de mais trinta membros divididos em cinco mesas, cada uma das quais elegerá de entre os seus próprios membros e pela pluralidade relativa de votos, um Presidente, um Secretário e um Relator». Mas não ficava por aqui. Para formar a Comissão, primeiro elegiam-se por escrutínio de listas o Presidente Geral (sic), dois Secretários e dois Relatores Gerais. Depois, por escrutínio e pluralidade absoluta, eram eleitos os doze pares, que iriam eleger as mesas, ou seja, escolheriam sete membros de cada uma das mesas por cinco escrutínios de listas e pluralidade absoluta.

Se não estamos perdidos nesta matriosca de eleições, de eleições, de eleições, eis-nos chegados à primitiva forma das comissões da Câmara dos Pares que eram então, como se disse, as Mesas da Comissão de Proposições. São estas, segundo o já referido Regimento, as seguintes: 1.ª Mesa de Legislação, Administração Interna e Negócios de Justiça; 2.ª Mesa dos Negócios Externos; 3.ª Mesa dos Negócios da Marinha e da Guerra; 4.ª Mesa dos Negócios da Fazenda; e 5.ª Mesa dos Negócios Eclesiásticos e de Instrução Pública.

Nestes tempos, estando em vigor o dito Regimento de 1826 ou a versão revista no ano seguinte, existiam apenas duas comissões com carácter permanente por legislatura, a saber, a referida Comissão de Proposições e a Comissão de Petições. Carácter permanente, entenda-se, o da comissão em si porque quanto à composição, como se viu, a Comissão de Proposições podia ser alterada em todas as sessões legislativas. Já a Comissão de Petições tinha um ritmo de funcionamento inigualável, renovando-se todos os meses. 

São ainda chamadas comissões as especialmente constituídas «para o perfeito exame dos negócios», que não se enquadravam no âmbito das competências de qualquer das cinco Mesas regimentais; a Comissão Administrativa, cujas características e funções a aproximam mais do atual Conselho de Administração da Assembleia da República; e a comissão ou comissões que o Presidente da Câmara designasse para apreciarem «a carta régia, idade e demais circunstâncias» dos novos pares que pretendessem ingressar na Câmara.

Este foi o modelo vigente durante vários anos, mas com o passar do tempo começou a dissolver-se e a caminhar-se para a tipologia atual das comissões3


Regimento interno da Câmara dos Dignos Pares do Reino, Lisboa, Imprensa Nacional, 1835

Este caminho teve início quando, para designar as mesas começou a despontar o novo termo “secções”, já presente na versão revista do Regimento, de 1827. 

“Mesas” e “secções”. Estes termos continuaram a ser utilizados por algum tempo e indiferentemente, designando o mesmo objeto, até que, em 1835, a palavra comissões se insinua pela primeira vez e timidamente com o propósito de as substituir. Na verdade, tudo começou com mais uma peripécia. A 23 de janeiro desse ano, um par propôs que as comissões substituíssem as secções gerais. Contudo, estavam a decorrer as eleições das secções, saindo, portanto, eleitas secções e não comissões. Alguém argumentou ainda que a Comissão de Reforma do Regimento (comissão especial) estava a desenvolver os seus trabalhos e era dela que se deviam esperar estas propostas, pelo que o “pai” da ideia das novas comissões acabou por recuar. 

A referida Comissão de Reforma do Regimento, que principiara os trabalhos no ano precedente, reforçou, de facto, nestas eleições de 1835, a fixação da designação “secções”, em simultâneo com “mesas”, propondo, a eleição de cinco «secções ou mesas» permanentes e ignorando a sugestão de “comissões”.

O termo “comissões” só substituiu definitiva e oficialmente as antigas designações de “mesas” ou “secções”, no Regimento de 1843. Comissões gerais, como então eram referidas as que tinham carácter permanente, passaram a ser, nessa altura, dez, o dobro das primitivas cinco Mesas. Cristalizado o termo, as comissões sofreram, daí em diante, muitas alterações quanto ao elenco, composição e competências. Quanto a semântica, nada mais.

Entretanto, esfumara-se a Comissão de Proposições. Tratava-se de uma alteração de fundo que se impôs na prática, simplificando o modo de composição das Mesas ou Secções, cujos membros passaram a ser eleitos pela Câmara ou nomeados pela Mesa da Presidência4

O que se passava com as comissões especiais tem também muito que se lhe diga. Olhemos para uma delas. O contexto é o da abertura solene das Cortes, no início de cada sessão legislativa. A sessão era presidida pelo monarca, que proferia um discurso de cariz político, uma espécie de estado da nação. Cada uma das Câmaras, Deputados e Pares, preparava-se então para dar resposta a este discurso. Nos primeiros anos de vigência da Câmara dos Pares - a que aqui se aprecia -, o Presidente era responsável pela elaboração da resposta que esta Câmara iria apresentar, devendo designar dois membros para o coadjuvarem. O que é peculiar é que este discurso era trabalhado com enorme reserva e apresentado à Câmara, a fim de ser aprovado, em sessão secreta. A primeira interrogação é: porquê tanto secretismo para algo que se destinava a ser público? Efeito surpresa? A questão nunca foi esclarecida, mas o certo é que, talvez por tal não ter fundamento, deixou de ser assim. 


Folha de rosto da compilação de discursos da coroa e suas respostas, 1826. AHP, Secção VI, cx. 38, nº 1.

Após a reabertura das Cortes, em 1834, fala-se pela primeira vez de uma Comissão ad-hoc, com a missão de preparar o texto da resposta ao dito discurso. Dir-se-ia óbvio o papel desta comissão, assim como a designação que devia ter, mas na prática teve mil e um nomes: “Comissão para a resposta ao discurso do Trono”, “Comissão para a resposta ao discurso da Coroa”, "Comissão para a Redacção da Resposta", ou do "Projeto de Resposta ao Discurso", ou "Fala do Trono", ou "da Coroa", chegando a ser referida, em 1861, como Comissão para a "confeção da resposta ao discurso da coroa". Se o nome já era uma complicação, não menos o eram os debates em torno do texto apresentado pela comissão. De tal modo, que esta prática veio a ser contestada, argumentando alguns pares que havia parlamentos por esse mundo fora que abriam as sessões sem o discurso real, obstando assim a «perder-se um mês na discussão da resposta ao discurso da coroa, como ordinariamente acontece». Foi assim decidido que em 1851 nada houvesse, mas na sessão seguinte retomou-se o hábito do discurso e, consequentemente, da respetiva resposta longa e renhidamente debatida na Câmara. Assim foi até 1910.

Outra comissão que merece notícia neste contexto das peculiaridades sobre a matéria é a Comissão de Verificação de Poderes. Atualmente, é a primeira comissão a ser constituída após cada eleição e dissolve-se, cumprido o seu propósito, pouco depois do início de cada nova legislatura. Mas já se adivinha que nem sempre foi assim.

Antes de mais, há que assumir que a designação “Comissão de Verificação de Poderes” é aqui utilizada por comodidade de expressão e economia de discurso, pois a sua designação não foi sempre esta e compreendeu realidades múltiplas: a dos que recebiam cartas régias de elevação ao pariato e pretendiam ingressar na Câmara; a dos sucessores dos pares falecidos que reclamavam o seu direito; a das dignidades religiosas com assento na Câmara por direito próprio; e o pariato eletivo, num pequeno período. A necessidade de verificar a legitimidade e direito de pertença de um par como membro da Câmara era uma constante, o que fez desta uma das comissões mais perenes que, de uma forma ou de outra (muitas outras!), foi sempre “aparecendo” quando era precisa, mesmo sem se chamar propriamente Comissão de Verificação de Poderes. Segue-se seu breve historial.

Os pares que integraram a primeira Câmara, em 1826, foram convocados, apresentaram as suas cartas e prestaram juramento, sem que conste ter havido uma comissão para os receber e apreciar documentos. De facto, só uns dias depois, à data de 23 de novembro de 1826, foi criada a primeira comissão designada "Comissão para verificar a admissibilidade por haver completado a idade competente o Conde de Almada". Em conformidade com o que era ainda o Projeto de Regulamento, esta comissão destinava-se a «conhecer se [o candidato] estava no caso de ser admitido por haver completado a idade competente». 

Uma vez aprovado o Regimento, o seu Título XI estabelecia, o modo de «verificação da carta Régia, admissão e juramento dos pares», preconizando que por cada carta que o Presidente da Câmara recebesse designasse três pares para dela se ocuparem.

Este princípio, de criar uma comissão expressamente para apreciar as condições de admissibilidade de cada par, fez com que tivessem existido centenas de comissões, cada uma delas com uma vida muito breve, por vezes de algumas horas apenas. No total, foram cerca de 250 estas comissões efémeras, especialmente concentradas nos primeiros cinquenta anos de funcionamento da Câmara. Houve anos recordistas, como o de 1842, com vinte comissões, sendo que a uma delas coube apreciar 5. Em 1836, tinha-se optado por criar, em simultâneo, três comissões, tal era o número de novos ingressos. De certo modo, estas soluções foram apontando o caminho para a criação de uma comissão com carácter perene. Porém, só no início da década de 80 foi aprovada uma proposta para que a Comissão de Verificação de Poderes fosse eleita no início da legislatura, passando a figurar na 5ª edição do Regimento, de 1884, como a 13.ª comissão permanente, embora com a ressalva de ser eleita anualmente, ao contrário das demais.

Pelo meio, houve quem sugerisse comissões só para os pares eclesiásticos, umas para os pares hereditários, outras para as novas cartas, enfim. Mas isto não era de todo descabido. O que se fez foi criar comissões diferentes quanto ao número e quanto à formação ou perfil dos pares que as compunham, uma vez que a tarefa se diferenciava, de facto, consoante o processo que deviam avaliar. Se apreciar uma carta régia ou as credenciais de um bispo era algo que três pares faziam em poucos minutos, já esquadrinhar os documentos apresentados por alguém que reivindicava o seu direito sucessório exigia, normalmente, um conjunto de sete pares e muitos dias, não isentos de polémicas. Porquê? Porque, a dada altura, a Câmara pedia prova de uma série de requisitos de idade, rendimentos, naturalidade, etc., que nem sempre eram consensuais e simples de analisar e com estes se cruzavam questões políticas (se o candidato ou seu pai tinham estado do lado certo das barricadas) e outras. Destas comissões havia quem fugisse a sete pés, alegando parentesco próximo com o candidato ou outras afinidades várias. Também era argumento o facto de alguns pares se sentirem sobrecarregados, uma vez que a escolha de membros para as comissões decorria de eleição ou nomeação e não da vontade do próprio. Aliás, diga-se, este argumento da sobrecarga é também recorrente para se tentarem desvincular - nem sempre com sucesso -, de quaisquer outras comissões que considerassem ser já um excedente de obrigações. Mais escusas do que para certas comissões de verificação de poderes, só quando a Câmara era convocada como Tribunal de Justiça, pois aí então é que os laços de amizade e parentesco falavam altíssimo e o absentismo impunha-se. Mas isso agora é uma história para outras histórias.


Maria Filomena Melo


[1] Guia do Fundo da Câmara dos Pares (1826-1910), Câmara dos Pares (1826-1836) Debates Parlamentares - Câmara dos Pares do Reino / Monarquia Constitucional, Câmara dos Pares (1842-1910) Debates Parlamentares - Câmara dos Pares do Reino (II) / Monarquia Constitucional

[2] Guia do Fundo da Câmara dos Pares (1826-1910)

[3] Algumas alterações decorreram de um novo enquadramento regimental, mas outras emergiram na prática e no consenso encontrado entre os membros da Câmara, talvez procurando afinidades com as designações e procedimentos da coeva Câmara dos Deputados.

[4] A última Comissão de Proposições constitui-se em 1828. Não obstante, uma reedição do Regimento, à data de 1835 e com as alterações entretanto feitas ao Regimento de 1826, ainda plasmava o esquema das Mesas subordinadas à Comissão de Proposições.

[5] Isto porque se começou a tentar atribuir à mesma comissão vários processos quando apresentados num mesmo dia.