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As Comissões de Inquérito potestativas


Constituição, composição e funcionamento das comissões parlamentares potestativas



As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) são comissões eventuais, ou seja, são especialmente constituídas para cada caso, por deliberação do Plenário ou a requerimento de um quinto dos Deputados em efetividade de funções. Estas comissões têm um enquadramento legal específico previsto no Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP)1, no Regimento da Assembleia da República e na Constituição da República Portuguesa. As CPI têm como função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração, ou seja, são na sua essência um instrumento de fiscalização.

Os inquéritos parlamentares a requerimento de um quinto dos Deputados (o que totaliza 46 Deputados) são de constituição obrigatória, isto é, potestativos. A este respeito, importa mencionar que a constituição de uma comissão de inquérito potestativa apenas pode ser requerida uma única vez por cada Deputado durante a sessão legislativa em curso2

Constituição 

O processo de constituição de uma comissão parlamentar potestativa tem início com a apresentação do requerimento no qual são explicitados o objeto e fundamentos para a sua constituição. 

O RJIP baliza o objeto dos Inquéritos Parlamentares, tornando claro que se não cumprirem certos requisitos a respetiva CPI não poderá ser constituída. Assim, as CPI apenas poderão ter por objeto matérias de interesse público relevantes para o exercício das atribuições da Assembleia da República ou incidir sobre atos do Governo ou da Administração. Neste último caso, se os factos a que disserem respeito tiverem ocorrido em Legislaturas anteriores à que estiver em curso, apenas será admissível o inquérito se incidir sobre matérias ainda em apreciação, factos novos ou factos de conhecimento superveniente. Não é ainda permitida a constituição de novas comissões de inquérito que tenham objeto idêntico a outras constituídas na mesma sessão legislativa, salvo se, entretanto, surgirem factos novos. Em caso algum podem os inquéritos incidir sobre matéria suscetível de infringir a Constituição ou os princípios nela consignados.

Recebido o requerimento, o Presidente da Assembleia da República analisa os requisitos mencionados, bem como a conformidade do objeto da comissão com os princípios constitucionais em vigor e convida os requerentes a suprirem qualquer irregularidade ou infração verificada. 

A título de exemplo, refira-se que na XIII Legislatura o Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, a propósito da iniciativa de Inquérito Parlamentar n.º 4/XIII/1.ª «Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar ao processo de recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à gestão do banco» apresentada por um quinto dos Deputados e perante «[…] a dúvida sobre se o inquérito parlamentar é o meio adequado para a Assembleia da República obter a informação que, de acordo com os fundamentos que constam do requerimento, lhe estará a ser recusada pelo Executivo» e, [se] «[…] o referido objetivo extravasa os poderes de investigação das comissões parlamentares permitidos pelo princípio da separação de poderes, arrogando-se poderes que a constituição e a lei não autorizam» solicitou um Parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República3. Este pedido viria a ser cancelado no seguimento da alteração do objeto do inquérito pelos Deputados requerentes.

Note-se que o objeto das CPI potestativas apenas pode ser alterado pelos próprios requerentes do inquérito, sendo unicamente possível à Comissão emitir um esclarecimento sobre o mesmo, reunido o consentimento dos requerentes. 

Se o Presidente da Assembleia da República concluir pela não aprovação do projeto de inquérito com base nos critérios referidos anteriormente, os Deputados que o apresentaram podem recorrer para o Plenário da Assembleia da República.

Caso contrário, o Presidente da Assembleia da República toma as providências necessárias para definir a composição da comissão de inquérito, até ao 8.º dia posterior à publicação do requerimento no Diário da Assembleia da República e, no mesmo prazo, ouvida a Conferência de Líderes, agenda um debate sobre a matéria, caso tal seja solicitado pelos requerentes ou por um grupo parlamentar. 

Composição

Em 24 de maio de 2024, no seguimento de uma iniciativa legislativa4 subscrita por todos os Grupos Parlamentares5, foi aprovada a alteração ao artigo 6.º do RJIP6. Esta disposição determinava que o Presidente da Assembleia da República fixava o número de membros da Comissão, que não poderia ser superior a dezassete. Neste seguimento, o RJIP passa a dispor o seguinte: «A composição da comissão deve ser proporcional à representatividade dos grupos parlamentares, devendo o número de membros e a sua distribuição pelos diversos grupos parlamentares ser fixados por deliberação da Assembleia da República, sob proposta do seu Presidente, ouvida a Conferência de Líderes, a qual deve mencionar, no caso de serem os requerentes do inquérito, os Deputados únicos representantes de um partido que integram a comissão.»

Assim, a composição das CPI deixa de ter um limite máximo pré-determinado, sendo apenas condição sine qua non que esteja garantida a proporcionalidade dos grupos parlamentares que a compõem, conforme já determina a Constituição da República Portuguesa7. Prevê-se ainda que caberá ao Plenário, em última instância, a fixação da composição das CPI, após proposta do Presidente da Assembleia da República8

Outro aspeto que merece destaque diz respeito à clarificação, por parte da Assembleia da República, que os Deputados únicos representantes de um partido podem integrar as comissões de inquérito potestativas se fizerem parte dos 46 deputados requerentes do inquérito. Já anteriormente se tinha procurado compatibilizar a participação de Deputados únicos representantes de um partido nas CPI. Refira-se, a título de exemplo, a composição da Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução9, que incluiu o Deputado único representante do partido Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo, e autor de uma das iniciativas para a constituição do inquérito que foi aprovado em Plenário. Para a composição desta Comissão de Inquérito, não sendo potestativa, um dos Grupos Parlamentares com maior representatividade - Grupo Parlamentar do PSD-, aceitou reduzir o seu número de Deputados efetivos na CPI, permitindo assim a participação do Deputado único representante do partido e acrescentando um Deputado do PSD aos Deputados Suplentes.

Poderá ainda ser equacionado, se os Deputados não inscritos que pretendam utilizar a prerrogativa de requerer um inquérito potestativo em conjunto com outros Deputados, poderão participar nos trabalhos do mesmo, uma vez que a alteração legislativa em causa não o esclarece.

A Presidência da CPI potestativa caberá a um dos «representantes na comissão dos grupos parlamentares a que pertencem os requerentes do inquérito»10. Isto acontece ao contrário das restantes CPI para as quais está igualmente contemplada a regra do princípio da representatividade, no cumprimento do qual é elaborada uma tabela no início da Legislatura, seguindo o método de Hondt. 

É condição para a tomada de posse dos membros da CPI a assinatura de uma declaração de inexistência de conflito de interesses em relação ao objeto do inquérito, bem como de compromisso de isenção quanto ao apuramento dos factos sujeitos a inquérito.

Funcionamento

O prazo de duração do inquérito é fixado pelo Presidente da Assembleia da República e pode ter no máximo 180 dias. Poderá ser concedido um prazo suplementar de 90 dias caso tal seja requerido, e devidamente fundamentado, por uma maioria dos Deputados da CPI ou por um dos requerentes do inquérito, sendo neste último caso de concessão obrigatória, ou seja, não sujeito a votação. O prazo poderá ainda ser suspenso a requerimento fundamentado da CPI11 e após aprovação pelo Plenário. Este pedido de suspensão pode surgir no seguimento da recusa de prestação de depoimento, de prestação de informações ou de apresentação de documentos. Desde a X Legislatura, tem sido frequente a utilização deste recurso para a suspensão dos trabalhos da CPI.

Cada Deputado membro da CPI pode ser substituído, em cada reunião, por um Deputado Suplente, ainda que cada reunião contemple vários pontos ou esteja prevista mais do que uma audição.

Os requerentes do inquérito potestativo deverão designar um Deputado relator até à quinta reunião da CPI, responsável pela elaboração do relatório final e apresentação do mesmo em Plenário.

As deliberações da CPI são tomadas por maioria dos votos individualmente expressos por cada Deputado e não por grupo parlamentar, como sucede nas comissões permanentes.

As reuniões das CPI podem ocorrer em qualquer dia, mesmo enquanto decorrem as Sessões Plenárias e durante a interrupção dos trabalhos parlamentares, sem dependência de autorização prévia do Presidente da Assembleia da República.

As reuniões são em regra públicas, dependendo de deliberação da CPI para reunião à porta fechada quando esteja em causa matéria sujeita a segredo de Estado, segredo de justiça, sigilo ou outras matérias sensíveis previstas na lei.12

Outra particularidade das CPI potestativas13 é que as diligências instrutórias requeridas pelos Deputados que propuseram a criação da CPI são de realização obrigatória, até ao limite de 15, recaindo sobre os mesmos Deputados a faculdade de determinar a data da sua realização. Os restantes Deputados gozarão de idêntica prorrogativa até ao limite máximo de 8, sendo as restantes diligências instrutórias sujeitas a deliberação da Comissão.

O Presidente da República e os ex-Presidentes da República, por factos de que tiveram conhecimento durante o exercício das suas funções e por causa delas, gozam da prerrogativa de não prestar depoimento, ou querendo fazê-lo, de optar por prestar depoimento escrito. Já o Primeiro-Ministro (ou ex-Primeiros-Ministros) e o Presidente da Assembleia da República (ou ex-Presidentes da Assembleia da República), não podem recusar prestar depoimento, mantendo-se, no entanto, a prerrogativa de deporem por escrito, se assim o preferirem.

Por fim, sublinhe-se que estas CPI são um instrumento de fiscalização da atividade governativa, plasmado na Constituição da República Portuguesa. Assim, é a Constituição que consagra a um determinado número de Deputados o direito de impor a constituição de uma CPI, independentemente da vontade da maioria, aprofundando o RJIP que o mesmo número de deputados determinará as suas principais regras de funcionamento.


Josefina Gomes


[1] Lei n.º 5/93, de 1 de março, alterada pela Lei n.º 126/97, de 10 de dezembro, pela Lei n.º 15/2007, de 3 de abril, e pela Lei n.º 29/2019, de 23 de abril.

[2] Cf. a alínea b), n.º 1 do artigo 2.º do RJIP.

[3] «Posição do Presidente da Assembleia da República sobre a iniciativa de inquérito parlamentar n.º 4/XIII/ 1.ª (PSD e CDS)» disponível na página da Assembleia da República

[4] Projeto de Lei n.º 153/XVI/1.ª – «Altera o Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de março».

[5] PSD, PS, CH, IL, BE, PCP, L e CDS-PP

[6]  O n.º 2 do artigo 6.º do RJIP referia o seguinte: «A fixação do número de membros da comissão deve observar o limite máximo de 17 Deputados, com respeito pelo princípio da representatividade previsto no n.º 1 do artigo 31.º do Regimento.»

[7] Artigo 178.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa

[8] No rescaldo desta alteração, poderá ser necessário revisitar a redação do n.º 4 do artigo 4.º do RJIP que atribui ao Presidente da Assembleia da República a responsabilidade de tomar as providências necessárias para definir a composição da comissão de inquérito, uma vez que a recente alteração ao artigo estabelece que o Presidente da Assembleia da República toma as diligências necessárias para permitir ao Plenário definir a composição da Comissão. Poderá ainda equacionar-se a adequação do n.º 1 do artigo 6.º à alteração efetuada, uma vez que deixa de existir um limite máximo de deputados membros da CPI.

[9] Cf. Resolução da Assembleia da República n.º 90/2020, de 16 de dezembro

[10] Artigo 6.º, n.º 8 do RJIP.

[11] Nos termos do artigo 11.º do RJIP.

[12] Artigo 15.º do RJIP.

[13] Constante do artigo 16.º do RJIP, em particular no n.º 4