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A voz dos cidadãos no Parlamento


A palavra à sociedade civil – como as comissões parlamentares contribuem para um Parlamento mais próximo dos seus cidadãos

«Não me deixe morrer, eu quero viver!», ouviu-se, no dia 4 de fevereiro de 2015, durante uma audição do então Ministro da Saúde, na Comissão de Saúde.

Oriundo de um cidadão que assistia à reunião e há muito aguardava tratamento contra a hepatite C, este grito de ajuda irrompeu na sala e, de imediato, atravessou as paredes do Parlamento, ecoando de tal forma que dois dias depois foi formalizado o acordo entre o Estado e o laboratório fornecedor dos medicamentos inovadores para a hepatite C. Volvido pouco mais de um ano, em outubro de 2016, mais de três mil doentes estavam curados. 

Decorrida quase uma década, este caso continua a ser ilustrativo de como um Parlamento transparente, aberto e que presta contas contribui para a aproximação da política aos cidadãos, permitindo mesmo que estes influenciem e tenham voz no processo de decisão. Não se tratando de uma participação institucionalizada, na medida em que a comissão foi, não um agente ativo de mudança, mas apenas o palco dos acontecimentos, certo é que este episódio só foi possível porque a regra é, desde 2007, a da publicidade dos trabalhos, incluindo os das comissões - vd. artigo 110.º do Regimento da Assembleia da República, facultando-se o acesso dos cidadãos, não apenas às galerias do Plenário, como igualmente às salas das comissões.

Com efeito, a comunicação entre o Parlamento e a sociedade civil é crucial para o reforço de uma democracia que se quer participativa, constituindo-se também como um instrumento fundamental para a centralidade da instituição parlamentar do século XXI.

A Assembleia da República não é exceção, sendo essa comunicação alcançada pela criação de diversos mecanismos que dão à sociedade civil e científica acesso direto ao Parlamento. Desta forma, além de se assegurar a total disponibilização e transparência da informação sobre a sua atividade legislativa, de controlo e fiscalização, de debate político e de representação, asseguram-se também as oportunidades de participação dos cidadãos no processo de decisão, em cumprimento do preceito constitucional inserido no artigo 2.ª da Constituição, que exige ao Estado de direito democrático «o aprofundamento da democracia participativa».

Imagem da Audição Pública das Comunidades de Afrodescendentes e Brasileiros que decooreu no que decorreu no auditório António de Almeida Santos em 2019;

Audição Pública das Comunidades de Afrodescendentes e Brasileiros, 08/02/2018

Mas qual o palco no qual a voz do cidadão se pode ouvir? 

Uma vez que não é no Plenário, onde se exige ao público um mero papel de espectador, cabe então às comissões parlamentares o papel fundamental de porta de entrada da voz dos cidadãos no Parlamento. Nas comissões consubstancia-se assim o processo participativo, aproximando eleitos e eleitores, que têm a oportunidade de apresentar as suas opiniões e sugestões e de contribuir para a conceção e transformação de planos, políticas e projetos. 

Com efeito, as comissões, enquanto órgãos internos do Parlamento, com competências especializadas, de natureza permanente ou temporária, têm vindo a ganhar crescente relevância no exercício das diversas funções parlamentares, incluindo as de legislação e fiscalização. Verdadeiras «criaturas parlamentares» contribuem para o «desengarrafamento» do Plenário, permitem uma maior especialização dos trabalhos e constituem o ponto de contacto para as organizações externas e cidadãos. 

A constituição, composição e competências das comissões parlamentares encontram-se previstas no artigo 178.º da Constituição , bem como nos artigos 29.º a 38.º - A do Regimento da Assembleia da República. Apesar de o objetivo deste artigo não ser compulsar os poderes e competências destes órgãos1, sempre se dirá que eles partilham as competências legislativas e de fiscalização com o Plenário, sendo de relevar, para o que aqui importa:

- A recolha de contributos no âmbito do processo legislativo, sob diversas formas, nomeadamente espoletando apreciações públicas2, pedindo contributos, requerendo informações e pareceres;

- A solicitação de depoimentos de quaisquer cidadãos;

- A realização de audições parlamentares, frequentemente sob a forma de eventos;

- A requisição e contratação de especialistas para as coadjuvar nos seus trabalhos;

- A organização de missões de informação ou de estudo; e

- A apreciação das petições dirigidas à Assembleia da República. 3

É assim que, nas comissões, os cidadãos participam ativamente, seja como especialistas, seja como destinatários das medidas, podendo ainda participar na atividade parlamentar através de exposições, pedidos de audiências, audições parlamentares, contributos por escrito, consultas públicas ou petições, valorizando, desta forma, a democracia direta participativa.

O facto de os cidadãos serem ouvidos significa que as suas pretensões ou opiniões encontram sempre respaldo na decisão política? 

A resposta a esta questão, obviamente negativa, em nada belisca a relevância do processo de participação. Ademais, casos há, para além do relatado no início deste artigo, em que de facto o impulso ou a participação dos cidadãos, bem como o apport de especialistas e cientistas se revela essencial para a conceção de determinada solução legislativa. Sem qualquer pretensão de exaustividade, aqui se deixam alguns exemplos que bem ilustram esta afirmação:

imagem Conferência “Apreciação na Especialidade dos Projetos de Lei do Ensino Superior Politécnico” que decorreu no auditório António de Almeida Santos

Conferência “Apreciação na Especialidade dos Projetos de Lei do Ensino Superior Politécnico”, 10/01/2023

A Lei n.º 16/2023, de 10 de abril, que valoriza o ensino politécnico, alterando a Lei de Bases do Sistema Educativo e o regime jurídico das instituições de ensino superior, teve, na sua origem, uma iniciativa legislativa de cidadãos, ou seja, nasceu de um instrumento de participação que, estando constitucionalmente previsto, viria a ser regulamentado em 2003. 

No decurso da apreciação na especialidade desta iniciativa, bem como de dois outros projetos de lei apresentados pelos grupos parlamentares do BE e do PCP, a Comissão de Educação e Ciência organizou, para além do habitual processo de audições e recolha de contributos, uma conferência com a participação de cidadãos oriundos das diversas instituições de ensino, que durante uma tarde debateram os projetos de lei que deram origem à Lei n.º 16/2023.

No dia 4 de fevereiro de 2020, entrou na Assembleia da República a Petição n.º 28/XIV/1.ª sobre a Procriação medicamente assistida post mortem e, no dia 17 de fevereiro de 2020, os mesmos cidadãos entregaram uma iniciativa legislativa de cidadãos sobre a igual matéria.

Neste caso, foram utilizadas paralelamente, e essencialmente pelos mesmos interlocutores, dois instrumentos de participação - a iniciativa legislativa de cidadãos e o direito de petição -, com vista a promover a alteração do regime jurídico constante na Lei n.º 32/2006, de 26 de julho. Nessa sequência, vários partidos (PS, BE e PCP) deram entrada de iniciativas nesse sentido.

No dia 12 de novembro de 2021, foi publicada a lei que permite o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida através da inseminação com sémen após a morte do dador e, a 16 de agosto de 2023, nasceu a primeira criança em Portugal concebida após a morte do pai.

Objeto de intenso debate, iniciativas legislativas, petições e iniciativas de referendo, desde a XIII Legislatura, o tema da morte medicamente assistida fez correr rios de tinta.4

No dia 9 de dezembro de 2022, procedeu-se à votação final global do texto final das iniciativas que conduziram à Lei 22/2023, de 25 de maio, «que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal».

O relatório de discussão e votação dos quatro projetos de lei que deram origem ao diploma é um exemplo paradigmático de como o Parlamento ausculta cidadãos, carreando informação da comunidade científica, de áreas da saúde e jurídica, bem como aferindo das diversas sensibilidades éticas e religiosas. Aliás, num tema que tanto dividiu a sociedade portuguesa, não poderia ser de outra forma. 

Cumpre sublinhar a possibilidade de, por sua iniciativa, os cidadãos solicitarem a mediação da Assembleia da República para aceder a informação para efeitos de investigação científica, colocando posteriormente o resultado da mesma ao serviço do legislador. Tal aconteceu na anterior legislatura, na qual um académico solicitou, em sede de audiência, que a Comissão de Saúde mediasse o seu pedido para acesso aos dados da plataforma informática sobre doentes em diálise, com o objetivo de estudar a elevada incidência de adolescentes em diálise em Portugal, ao que a Comissão acedeu. Recentemente, o mesmo académico, no âmbito de nova audiência, partilhou com a comissão a análise e conclusões retiradas dos dados entretanto fornecidos.

Em jeito de conclusão, salientamos que estes são apenas exemplos de como o Parlamento legisla e intervém, não apenas para, mas também em conjunto com os seus cidadãos, paradigma imperativo para garantir a participação direta da sociedade civil e científica – permitindo-lhes identificar problemas e propor soluções – e reconhecer a capacidade dos eleitos de trazer uma ampla gama de posições da sociedade, incluindo as das minorias. O reforço do incentivo da cidadania é, assim, fundamental, para o Parlamento, enquanto espaço para a conquista de direitos e de resolução de conflitos, transformar a participação numa expectativa natural, pacificando tensões e divergências e construindo novas soluções partilhadas. 

Este é um caminho que vem sendo trilhado e reforçado a cada nova revisão do Regimento, através de uma crescente valorização do papel das comissões parlamentares que, reitera-se, são o palco privilegiado para o reforço da democracia participativa e para o fortalecimento de um Parlamento próximo dos cidadãos, de crucial importância em tempos de crise das instituições representativas.


Cristina Correia e Inês Mota


[1] Para consulta do elenco genérico de poderes e competências das comissões, consultar artigos 35.º e 103.º do Regimento.

[2] No que concerne à legislação laboral, essa participação enquadra-se no artigo 54.º, n.º 5, alínea d), e no artigo 56.º, n.º 2, alínea a) da Constituição, e no artigo 132.º do Regimento. Porém, desde a revisão de 2023, o artigo 134.º do Regimento prevê que todas as iniciativas legislativas sejam sujeitas a consulta pública no sítio da Assembleia da República na internet durante toda a tramitação da iniciativa, até ao termo da sua votação na especialidade.

[3] Em 2007, o regime jurídico do direito de petição foi objeto de revisão, da qual podemos sublinhar o intuito de dotar a apreciação das petições de maior relevo e atenção nos trabalhos parlamentares, bem como o de reforçar os mecanismos de participação dos peticionários, robustecendo o direito de audição dos peticionários perante a comissão parlamentar competente, tornando-a obrigatória em alguns casos.

[4] O histórico pode ser consultado aqui.