Na reunião plenária da Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa de 3 de março de 1884 discute-se na generalidade o projeto n.º 9, apresentado pelo Governo, que procede à reforma eleitoral.
Manuel de Arriaga, do Partido Republicano Português, intervém considerando que se o sistema da representação nacional se baseia no sufrágio «hoje no nosso país mais ou menos universal, a conclusão única, coerente e singela a tirar do princípio é que as multidões, aquelas que constituem a maioria do país, se tivessem aqui entrada franca e leal em nome da lei, como a deveriam ter, só elas representariam a maioria da câmara e que nesse dia, que há de vir e porventura não está longe, se elas vos aplicassem a mesma lei que haveis mantido para interesse vosso exclusivo, vós, que representais a minoria do país, não teríeis aqui lugar. (…) Mas como se explicará o enigma, que, estando as classes privilegiadas em menor número e baseando-se o sistema em que elas preponderam, no sufrágio popular, seja a minoria quem subjugue e governe as maiorias?».
Para o orador, a explicação residia no recenseamento e também no sistema de listas e de desdobramento das listas. Por isso, apresenta uma proposta de eleição dos Deputados por lista uninominal nos círculos de um, quatro e seis Deputados. Acredita que só este sistema permite a representação de todos os partidos de forma proporcional, o que considera a «tradução senão exatíssima ao menos aproximada do estado da opinião pública», ao invés do que acontece com a representação obtida com o escrutínio de listas.
Na sessão seguinte, a 6 de março, o Deputado Augusto Fuschini, relator desta iniciativa, discursa longamente, respondendo às diversas questões que lhe foram postas na sessão anterior, com particular ênfase nas questões suscitadas por Manuel de Arriaga.
Quanto aos círculos uninominais, manifesta discordância por entender que não davam garantia às oposições porque «no círculo plurinominal, com a lista incompleta, ao menos atende-se a um grupo da minoria».
Questiona depois qual o princípio que fundamenta a restrição do direito de voto e defende que, para não correr o risco de uma reação ou revolução, é indispensável avançar para o sufrágio universal. Destaca o facto de «todas as nações europeias que caminham à testa do progresso alargam sucessivamente o seu eleitorado. Em regra, as nações parlamentares tendem a alargar o seu eleitorado».
Cita a lei em vigor, de 1878, que define «como tendo capacidade os chefes de família e os que sabem ler e escrever, consente crescimento continuo do eleitorado; não sendo muito natural que um homem case para ser eleitor, mas sendo perfeitamente razoável que aprenda a ler e a escrever para conseguir o direito eleitoral, está na mão de cada um obter esse direito com um pequeno esforço e com grande vantagem própria».
Considera assim o orador que a lei de 1878 permitiu o crescimento contínuo dos eleitores e, apesar de considerar que o sufrágio é um direito de todo o cidadão, defende que é necessário reformar as instituições, os costumes, educar as massas e esclarecê-las, o que não se consegue com saltos, nem precipitações.
«Eu não me revolto contra as massas porque saí do povo; mas há povo e povo. Se S. Exa. me fala do povo que trabalha, de cujo seio nasceram os maiores homens, porque das massas populares têm saído n'este século os grandes talentos; se S. Exa. me fala do povo que se resigna com a sua situação, porque enfim em todos é indispensável que a religião ou a filosofia nos forneçam essa mansuetude de espirito; do povo que não inveja, do povo que sustenta os seus direitos sem invadir os de outrem, do povo que solicita e pede, não com o chapéu na cabeça e altivo, mas com hombridade e delicadeza, dir-lhe-ei que, vendo esse povo, sinto-me filho dele e de lá vieram os que me deram o ser. Quando vejo, porém, homens obscuros, invejosos, ignorantes e selvagens levantarem-se apenas em nome da sua força bruta e quererem destruir tudo e destruir-me a mim, porque à custa do meu trabalho me elevei um pouco acima do seu baixo nível, desprezo-os, e quando essa massa bater a esta porta, encontrar-me-á aqui para reagir contra ela».
Ouvem-se vozes de apoio.
Nas sessões seguintes prossegue o debate deste projeto. A 8 de março, o Deputado Dias Ferreira defende também os círculos uninominais, concluindo que «o escrutínio de lista serve de armar os governos contra os povos e nós do que precisamos é de armar os povos contra os governos. (…) Dar quase tudo ao partido mais forte, o resto ao imediato e arrancar aos partidos menos numerosos o direito de representação proporcional, não é garantir a liberdade, é afirmar o despotismo».
A concessão do direito de voto às mulheres não esteve arredada do debate. No início deste debate, na sessão de 19 de fevereiro, o Deputado António Maria de Carvalho havia afirmado: «A minha proposta compreende ainda outra classe de eleitores. Eu digo que deve ser eleitor todo o individuo que contribuir para as despesas do estado e por isso mesmo não excluo a mulher industrial, proprietária ou comerciante; entendo que a mulher em tais casos deve ter o pleníssimo direito de votar».
Dias depois, na sessão de 6 de março, o Deputado Augusto Fuschini cita Stuart Mill, de quem se considera discípulo, e que merece a concordância de Manuel de Arriaga:
«Todos os seres humanos têm igual interesse em ser bem governados e igual necessidade de um voto para assegurarem a sua parte nos benefícios de um bom governo. Ninguém se atreve a afirmar que as mulheres haviam de fazer mau uso do sufrágio. Chega-se quando muito a dizer que votariam como simples máquinas, segundo a ordem dos seus parentes do sexo masculino. Se assim for, assim seja. Se por si próprias pensarem será isso um grande bem, aliás o mal resultante será nulo».
A 21 de maio de 1884, depois de ter sido também apreciado na Câmara dos Pares, o projeto de reforma da lei eleitoral é aprovado. O sufrágio é feito de forma mista coexistindo círculos plurinominais de lista incompleta e círculos uninominais. O sufrágio é alargado a todos os que saibam ler e escrever ou sejam chefes de família. Não previam os legisladores que esta formulação equívoca «chefes de família», que permaneceu na legislação eleitoral, permitiria que 27 anos depois, por ocasião das eleições para a Assembleia Constituinte de 1911, uma mulher, Carolina Beatriz Ângelo, exigisse e pudesse exercer o direito de voto.
Ana Vargas