" />

Os regimentos das assembleias parlamentares, o primeiro ato deliberativo


Uma das primeiras preocupações logo que é constituído um órgão colegial é a elaboração e aprovação do seu regimento

Quem acompanhe os trabalhos parlamentares tem presente o facto de reiteradamente ser invocado o Regimento da Assembleia da República. A Constituição prevê que compete à Assembleia da República, ao Conselho de Estado e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas elaborar e aprovar os regimentos respetivos.

O regimento é um instrumento fundamental para o funcionamento de órgãos colegiais, que estabelece as regras, operacionaliza as competências e os poderes, a forma como se relacionam os respetivos membros e o exercício dos deveres e direitos. Não surpreende por isso que uma das primeiras preocupações, logo que é constituído um órgão colegial, seja a elaboração e aprovação do seu regimento. E sempre foi assim.

Na segunda reunião das Cortes Gerais e Extraordinárias reunidas a 27 de janeiro de 1821, os membros foram informados que «O Senhor Barão de Molellos ponderou que, sendo as Cortes a Assembleia Legislativa, mal poderia fazer leis sem que as houvesse para o seu governo interior: em consequência apresentou um Projeto de Regimento, oferecido pela Junta Preparatória das Cortes para regime e polícia das mesmas».

Capa de Projeto de Regimento de 1827

Regimento interno da Câmara dos Senhores Deputados - 1827, AHP

A 24 de dezembro de 1838, na Câmara dos Deputados, que permaneceu com esta designação de 1822 a 1910, ou seja, durante o período da monarquia constitucional, também se discutiu qual o regimento aplicável porque, apesar de o Parlamento ter mantido a mesma designação, os regimentos acompanharam as diferentes constituições. O Deputado Ferreira de Castro começou por referir que se perdeu tempo em consequência de não haver Regimento e depois de um esclarecimento do Presidente, prosseguiu:

«Jamais se viu no Mundo representativo um corpo como este sem um Regimento; nas Cortes de 1820, V. Exa. estará lembrado, houve uma Junta Preparatória que fez um Regimento; em 1826, aproveitaram esse tanto quanto possível; e além destes temos o de 1837. Sr. Presidente, nós temos Regimento e, por conseguinte, adotemos aquele enquanto não fazemos outro».

Esta questão voltou a ser debatida a 5 de junho de 1840, tendo o Deputado José Estevão declarado: «Andam n’esta casa espalhados e estão em cima d'estes bancos dois livretos, que são o regimento das Cortes Constituintes e o regimento da Carta: com estes dois livretos temos nós feito trezentas ou quatrocentas Sessões e mais de duas dúzias de leis, com eles temos andado nos nossos trabalhos; se pois se não quer gastar tempo inutilmente, sigamos esse regimento, que se adotou, trabalhe-se com ele, assim como tem trabalhado todos os outros».

Já na República, na segunda reunião da Assembleia Nacional Constituinte, realizada no dia 20 de junho de 1911, o Presidente propõe a adoção de um Regimento provisório e a recondução da Comissão que o elaborou para que prepare o definitivo. Na semana seguinte, é comunicado à Assembleia estarem concluídos os trabalhos da comissão do Regimento. Apesar do trabalho desta comissão, o Regimento chega a ser acusado de conservar «as marcas da fábrica monárquica».

Na Câmara dos Deputados a elaboração do Regimento levou bastante mais tempo. De facto, em 16 de janeiro de 1912, seis meses depois da primeira reunião, ainda se continuavam a discutir artigos do projeto de Regimento, tendo a sua discussão sido suspensa em março, dada a urgência de outros projetos mais importantes. Quer a Câmara dos Deputados, quer o Senado deliberaram observar provisoriamente o Regimento da Assembleia Nacional Constituinte.

No período do Estado Novo, no início da I Legislatura da Assembleia Nacional, a 14 de janeiro de 1935, o Presidente informou que a Câmara dispõe de um Regimento provisório, mas o que «está naturalmente indicado, é que a Assembleia comece por discutir e aprovar o seu Regimento», o que aconteceu logo no início de fevereiro.

Na 3.ª República, na primeira Sessão da Assembleia Constituinte, a 3 de junho de 1975, o Presidente Henrique de Barros informou que «nós temos, como é do vosso conhecimento, um regimento provisório. Esse regimento não foi aprovado por nós e por consequência não pode, evidentemente, constituir o nosso regimento definitivo, como é lógico. Esse regimento foi proposto pela Comissão Instaladora, com aprovação dos representantes dos principais partidos políticos, pelo menos, e foi aprovado pelo Conselho de Ministros». Um mês depois já tinha sido aprovado e publicado o Regimento da Assembleia Constituinte.

Este Regimento vigorou desde o início dos trabalhos da Assembleia da República, a 2 de junho de 1976, de acordo com o disposto no artigo 299.º da Constituição, que estipulava que «enquanto não aprovar o seu regimento, a primeira Assembleia da República reger-se-á pelas disposições aplicáveis do regimento da Assembleia Constituinte».

Foi constituída uma comissão, a quem foram entregues os projetos de Regimento apresentados pelo PS, PPD e pela UDP, que elaborou um texto de substituição submetido a discussão. A 25 de julho foi aprovado e publicado. Na sessão seguinte, a 27 de julho, o Deputado Carlos Brito (PCP) destaca o facto de estar a usar da palavra no primeiro período de antes da ordem do dia, de acordo com o Regimento já aprovado.

Nas legislaturas seguintes, houve necessidade de se criarem e sedimentarem regras procedimentais e metodologias de trabalho, pelo que entre 1976 e 2000 vigoraram 12 versões do Regimento, exatamente o dobro das que ocorreram nos 23 anos seguintes, de 2000 a 2023.

Apesar das inevitáveis diferenças entre regimentos, há elementos que se mantiveram e que são aliás comuns a regimentos de assembleias parlamentares existentes num mesmo período. O regimento tem de ser um instrumento suficientemente minucioso para não deixar dúvidas quanto à organização dos trabalhos, mas que simultaneamente permita a capacidade de adaptação às diversas realidades com que o parlamento se confronta após cada ato eleitoral.

Ana Vargas