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A forma como programas de rádio conseguiram contornar a censura que era exercida sobre parte dos trabalhos parlamentares
Por estranho que possa parecer, antes do 25 de Abril, as intervenções de alguns Deputados e os debates que se lhes sucediam eram objeto de exame prévio e censura antes de serem publicados nos jornais ou transmitidos radiofonicamente.
Esta censura ocorreu durante o período em que, mercê de uma aparente abertura prometida pelo Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, foram eleitos em 1969, na lista da União Nacional, um conjunto de Deputados que ficariam conhecidos como sendo da Ala Liberal.
Segundo o Deputado Pinto Machado, numa intervenção proferida a 2 de julho de 1971, «ala liberal não é um partido, nem sequer um grupo com um mínimo de organização e disciplina. Não tem estrutura, não tem chefe, não impõe orientações rígidas decorrentes de parecer maioritário ou do poder de um líder. Não é mais - nem pretende ser mais do que isso - do que a representação de um movimento a favor de uma sociedade portuguesa mais progressiva, mais justa, mais feliz, numa palavra, mais humana (…)».
E esta censura foi mesmo denunciada na Assembleia Nacional. A 2 de fevereiro de 1973, o Deputado Francisco Pinto Balsemão, no quadro de um debate iniciado pelo Deputado Magalhães Mota sobre os problemas de informação em Portugal, intervém referindo que a imprensa está «amordaçada ao ponto de não poder reproduzir discursos nesta sala proferidos». Poucos dias depois, a 7 de fevereiro de 1973, o Deputado Miller Guerra intervém sobre o mesmo assunto:
«Várias vezes chamei a atenção da Assembleia e, por consequência, do Governo e do País, para os abusos da censura prévia.
Volto ao assunto pela última vez, já desesperançado de que a minha voz seja ouvida. As desilusões repetidas fazem-nos céticos.
Na sessão da Assembleia do dia 15 do passado mês de janeiro fiz uma intervenção sobre a Faculdade de Medicina de Lisboa e a crise universitária. A Comissão do Exame prévio, ou seja, a antiga Comissão de Censura com outro nome, cortou largas passagens da oração parlamentar, e na imprensa saíram trechos tão habilmente escolhidos que alguns leitores me perguntaram se eu tinha mudado de ideias.
O Sr. Henrique Tenreiro: - Era uma felicidade!
O Orador: - Mas há pior: Numa publicação, pelo menos, a intervenção foi toda cortada, embora o texto original transcrevesse escrupulosamente o do Diário das Sessões. À margem das páginas fiscalizadas, carimbaram estas palavras que causam arrepios às pessoas independentes e livres: "Exame prévio. Proibido"».
Como esclareceu Sá Carneiro, em depoimento publicado em 1973 no livro «Ser ou não ser Deputado»1, o público não podia estar bem informado do que se passava na Assembleia. O Diário das Sessões tinha então de ser comprado nos depositários da Imprensa Nacional, mas era caro. A televisão não fazia praticamente qualquer cobertura dos trabalhos parlamentares. Restavam por isso alguns jornais e programas de rádio, mas em que também existia censura.
Uma dessas situações aconteceu com o programa «Página 1», realizado por José Manuel Nunes e Luís Paixão Martins, e emitido todos os dias úteis pela Rádio Renascença. O programa contava com a colaboração de Viriato Dias que escrevia uma crónica diária e cobria a atividade da Assembleia Nacional. Não era fácil gravar as reuniões plenárias de forma a poderem ser transmitidas radiofonicamente, pelo que Viriato Dias falou com um «senhor das relações-públicas da Assembleia» que, no final de cada reunião, emprestava as bobines que ou eram parcialmente transcritas ou, quando autorizadas, transmitidas e depois devolvidas. Uma dessas gravações incluía o debate havido na reunião de 24 de janeiro de 1973, na sequência de uma intervenção do Deputado Miller Guerra sobre a Capela do Rato. Como conta José Manuel Nunes, levou a gravação ao gerente da Rádio Renascença e sugeriu-lhe que telefonasse para a Secretaria de Estado de Informação e Turismo, que era então o centro da censura em Portugal, informando que iria transmitir parte da sessão da Assembleia porque «os deputados não podem ser censurados». Foi depois chamado ao administrador que lhe disse «você não se vai atrever a transmitir nada disto!» e a gravação do debate não foi transmitida. O funcionário foi, entretanto, diretamente interpelado pelo Presidente do Conselho, Marcello Caetano, nos Passos Perdidos, que lhe perguntou como é que havia «jornalistas que transmitiam coisas da Assembleia». Terá respondido que não sabia e continuou a emprestar as bobines.
Importa referir que, com a saída de parte significativa dos membros da Ala Liberal, os debates na Assembleia Nacional foram perdendo o interesse e os trabalhos parlamentares a substância.
Quando li a história2, não tive qualquer dúvida quem era o «senhor das relações-públicas da Assembleia Nacional» que, em segredo, emprestava as fitas das gravações aos jornalistas do programa “Página 1”. Tratava-se seguramente do Sr. Pires3. Quando o conheci, 20 anos mais tarde, tinha cabelos brancos e o cachimbo sempre ao canto da boca. Ainda se fumava na Assembleia da República. Era um funcionário respeitado por todos com quem trabalhava e convivia. 50 anos passados sobre o 25 de Abril é bom lembrar quem de forma anónima teve a coragem de colaborar para contornar a censura.
Ana Vargas
[1] Ser ou não Ser Deputado, depõem Sá Carneiro, Casal Ribeiro, Aguiar e Silva, Magalhães Mota, Reboredo e Silva, ed. Arcádia, 1973
[2] Em «Censura o lápis azul do silêncio», Organização Ana Aranha, entrevista a José Manuel Nunes. Aproveito para agradecer à SPA, a Ana Aranha e em especial a José Manuel Nunes que teve a gentileza de contar com mais pormenores o episódio que relatava no seu testemunho e confirmar que «o senhor das relações-públicas da Assembleia» era o Sr. Pires, como era conhecido.
[3] José Alberto Pires (nasceu a 9 de maio de 1925 e faleceu a 1 de junho de 2017) iniciou funções públicas como terceiro-oficial da Junta de Emigração, em julho de 1951. Em novembro de 1957, ingressou no quadro de pessoal da Secretaria-Geral da Assembleia Nacional e Câmara Corporativa, tendo, a partir de 1962, passado a exercer funções de encarregado dos Serviços Legislativos, os quais davam apoio aos trabalhos do Plenário e das Comissões da Assembleia Nacional e às secções e subsecções da Câmara Corporativa, e sido nomeado, em 1969, Chefe de Secção dos referidos Serviços. Entre 1962 e 1970, para além destas funções, ficou ainda, sucessivamente, responsável pelos serviços de Expediente, de Pessoal e de Publicações, bem como pela edição do Diário das Sessões da Assembleia Nacional. Em julho de 1972, foi nomeado Diretor do recém-criado Gabinete de Relações Públicas e Informação. Na Assembleia Constituinte, acumulou as funções de chefe dos Serviços de Relações Públicas e Informação com as de Chefe dos Serviços de Redação do Diário da Assembleia Constituinte. Em maio de 1976, foi nomeado Chefe dos Serviços de Informação e de Relações Públicas da Assembleia da República, e, em 1977, com a entrada em vigor da Lei Orgânica da Assembleia da República, foi nomeado Chefe da Divisão de Relações Públicas e Apoio às Missões Internacionais, cargo em que se manteve até passar à situação de aposentado, em janeiro de 1993. Após a aposentação, passou a exercer funções de assessoria no Grupo Parlamentar do PCP.