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Apesar da invisibilidade de parte do trabalho feminino, nos finais do século XIX e princípio do século XX, a proporção de mulheres na população ativa em Portugal entre 1900 e 1930 era de 27,9% 1.
O Decreto n.º 4676, de 19 de julho de 1918, que reconheceu às mulheres licenciadas em direito o exercício da profissão de advogado, ajudante de notário e ajudante de conservador, mencionava o seguinte no preâmbulo:
«Exercem já agora a clínica, são professoras em escolas primárias, secundárias e superiores, entram nos serviços públicos telégrafo-postais, e no quadro dalgumas repartições públicas, reconhecido assim pelo Estado o direito das mulheres a serem consideradas como seus funcionários. (…) Tão só se não deverá perder de vista que, iguais embora em capacidade de inteligência e de trabalho, há, contudo, funções de direção e de iniciativa que naturalmente estão reservadas para o homem».
Seis anos depois, a 15 de janeiro de 1924 no Senado da República, é anunciado um projeto de lei, da iniciativa do Senador Ribeiro de Melo, que propõe a demissão de todos os empregados do sexo feminino dos serviços dos Ministérios.
No mês seguinte, o autor desta iniciativa intervém sobre esta matéria, mencionando um artigo publicado no jornal A Tarde, sobre a reforma do Instituto de Seguros Sociais, em que é referido que foram colocados na situação de adidos funcionários do sexo masculino, ficando nas secretarias desse Instituto empregados do sexo feminino. Concordando com a medida, dado que era público que havia um número excessivo de funcionários públicos, defende que sejam colocados na situação de adidos, embora com vencimento, os empregados do sexo feminino, deixando nas Secretarias de Estado os funcionários do sexo masculino. Isto porque considera que há conveniência em dar preferência aos empregados do sexo masculino, dado que «as mulheres, em geral, desde que não tenham uma ocupação em serviços do Estado têm a sua casa para tratar, ao passo que os homens, não há forças humanas capazes de os conservar em casa, a não ser por doença».
Na legislatura seguinte, em março de 1926, o mesmo Senador renova a iniciativa, considerando que ainda se justificava mais a sua apresentação e aprovação do que na legislatura anterior. No projeto de lei propõe a «demissão de todos os empregados do sexo feminino que não provassem ter as habilitações literárias exigidas para os concursos de terceiro oficial dos Ministérios onde estão empregados, bem como os empregados do sexo feminino contratados como datilógrafos, sendo os lugares suprimidos». O mesmo projeto prevê ainda o abono de uma verba a atribuir uma única vez, a título de compensação.
As razões para o elevado número de mulheres contratadas resultavam, segundo refere, da mobilização dos homens para combaterem na Grande Guerra e depois, da necessidade de assegurar a subsistência de viúvas e filhos de combatentes mortos.
No debate então realizado, o Senador Fernando de Sousa do partido monárquico, manifesta discordância do projeto por não parecer justa a demissão em massa de muitas funcionárias dignas (de notar que é o único a designar o cargo no feminino), parecendo-lhe mais adequado remodelar os quadros dos serviços públicos. Na intervenção, não deixa, contudo, de contar um episódio a que assistiu e que designa de «picante»:
«Em 1919, tendo de tratar de um assunto no Ministério dos Abastecimentos, fui ali. O Ministro ainda não estava. Aguardei a sua chegada no gabinete dos secretários.
A folhas tantas vi entrar um grupo de três ou quatro meninas de saia curta e corpete decotado, enigmas pitorescos que pouco deixavam para adivinhar. Abancaram para concertar os termos em que deviam fazer uma representação pedindo que fosse levantada a suspensão de um empregado. Concertados no meio de grande galhofa os termos da representação, entraram para o gabinete do Ministro para escrever à máquina e era tal a risota lá dentro que parecia que havia ali um viveiro de canários, tal a alegria e desafogo joviais dessas meninas. Isto e muitos outros casos análogos são realmente escandalosos!
Querer de uma penada suprimir todos esses lugares, além de injustiça, parece--me violência. Não esqueçamos que nessa legião de dactilógrafas, se algumas há por cuja seriedade não se poderão pôr as mãos no fogo, outras merecem todo o respeito, pois são excelentes funcionárias e têm anos de bons serviços.
Sr. Presidente: o que importa é rever os quadros e diplomas relativos à admissão de funcionários. Hoje parece que os do sexo masculino quase não têm de fazer; tantas dactilógrafas se admitem que dir-se-ia terem eles apenas que se limitar a ler o que elas escrevem».
Apesar de alguns Senadores concordarem com o excesso de funcionários públicos e com a necessidade de moralização dos serviços públicos, rejeitaram o projeto de lei, bem como uma moção apresentada pelo Senador Querubim Guimarães, que recomendava ao Governo que remodelasse os serviços públicos, por entenderem que já o estava a fazer.
Ana Vargas
[1] Fonte: Recenseamentos Gerais da População, citado no artigo «As Mulheres trabalhadoras em Portugal (1890-1970): as representações sobre o trabalho remunerado e o trabalho não remunerado numa perspetiva feminista», Virgínia Baptista e Paulo Marques Alves, XIV Jornadas Nacionais da História das Mulheres – IX Congresso Iberoamericano de Estudios de Genero, 29 de julho a 1 de agosto de 2019.