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Há acontecimentos da nossa história recente que, para quem os viveu ou deles ouviu falar, se cristalizam em dois ou três episódios ou imagens. É o que acontece com o cerco à Assembleia Constituinte em 1975. Falar dele evoca imediatamente a imagem dos manifestantes, de Deputados a dormir nos Passos Perdidos ou no Hemiciclo ou, ainda, as palavras do Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo, proferidas da varanda do Palácio de S. Bento.
Mas há mais para recordar sobre o cerco à Assembleia Constituinte e que podemos encontrar detalhadamente reportado nos jornais da época.
De 12 para 13 de novembro de 1975, o Palácio de S. Bento, onde decorrem os trabalhos da Assembleia Constituinte eleita a 25 de abril de 1975, é cercado por manifestantes maioritariamente trabalhadores da construção civil, que exigem a assinatura do contrato coletivo de trabalho.
Na sessão do dia 12 de novembro, que é encerrada às 20 horas, não há qualquer referência à manifestação que já então cercava o Palácio
Os manifestantes, calculados em cerca de 100 000, impedem os Deputados e os trabalhadores de sair do Palácio de S. Bento durante cerca de 36 horas. Também a residência oficial do Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo, se encontra cercada.
Os manifestantes declaram não querer derrubar o Governo, mas exigem a demissão do Ministro e do Secretário de Estado do Trabalho, Tomás Rosa e Marcelo Curto, e da equipa respetiva.
No dia 13 de novembro, quinta-feira, por volta do meio-dia, após conversações, «alguns deputados (só os do PCP e os do MDP/CDE estariam autorizados) começam a sair do Palácio.» O Primeiro-Ministro aceita diversas reivindicações dos trabalhadores, mantendo-se por resolver a questão salarial que, segundo o Governo, teria um custo de 12 milhões de contos para o País, enquanto a comissão negociadora fala em 6 milhões de contos. As negociações prosseguem com o Primeiro-Ministro, sendo dado um ultimato pelos manifestantes, para que estejam concluídas até às 22 horas. Contudo, a essa hora, mantém-se o impasse. Só mais tarde os trabalhadores alcançam a vitória, fazendo o percurso inverso ao que antes tinham feito, de regresso à sua sede.
Como é referido no Diário de Lisboa, de 14 de novembro, relativamente aos acontecimentos da véspera, «fora há pão, mas os mantimentos começam a faltar. (…) Dentro, o ambiente na expressão de um camarada jornalista assume semelhanças (algumas) com o Palácio de Inverno. Dorme-se nos sofás, chegaram mantimentos, em enormes vasilhas é servido café. (…) As pessoas estão marcadas pela dura passagem das longas horas. Mas mantêm-se. De pé. Deitadas. Encostadas às paredes. Mas mantêm-se. Três ambulâncias ao lado, junto aos semáforos da Avenida Carlos I permanecem em vigilância. Para o cansaço que venceu. Para o que possa acontecer».
Durante o cerco, um helicóptero pousa no jardim interior do Palácio de S. Bento. Segundo aquele vespertino, trazia «rações n.º 20, modelo 4. E um pequeno pipo de vinho. Para a GNR. O Chefe de gabinete de Pinheiro de Azevedo, Neves Pires, tenta que o Presidente da Assembleia, Henrique de Barros e João Gomes, Deputado do PS e chefe de redação do jornal “A Luta”, partam no helicóptero.
Só que os manifestantes saltam os muros do jardim. «Ultrapassam as barreiras dos portões fechados e impedem que a mecânica ave levante voo, que os dois deputados abandonem o Palácio. (…) O helicóptero é agarrado, custa a abandonar o solo. (…) Finalmente, no meio do alarido, asas em fúria e punhos ao alto com gritos à mistura, o helicóptero toma o caminho de base. (…) Os dois deputados socialistas acabariam por sair um pouco depois das 20 horas, acompanhados por um único elemento do serviço de ordem dos trabalhadores da construção civil. Saíram pela porta principal. E foram a pé, em silêncio, até ao Príncipe Real».
No dia 14 de novembro, sexta-feira, o Presidente da Assembleia faz a chamada e, dado que apenas respondem 47 Deputados, declara que não há quórum e informa que a próxima sessão será na terça-feira, às 15 horas.
Os trabalhos da Assembleia Constituinte são retomados no dia 18 de novembro. A sessão é muito agitada, podendo ler-se no Diário da Assembleia Constituinte desse dia, que «tendo-se verificado diversas manifestações das galerias e consequente agitação na Sala, o Sr. Presidente mandou evacuar duas galerias e suspendeu a sessão», que foi retomada mais tarde. No dia 21 de novembro, o grupo parlamentar do Partido Socialista apresenta uma proposta com o seguinte teor:
«A Assembleia Constituinte declara:
Ser sua intenção reunir, nos termos regimentais, em qualquer momento e em qualquer lugar, se tanto for necessário, para o integral cumprimento do seu mandato nacional».
A declaração é aprovada com um voto contra (UDP), mas não houve necessidade de reunir noutro local, que não no Palácio de S. Bento, até à conclusão dos seus trabalhos, a 2 de abril de 1976.
Ana Vargas
As citações são extraídas de notícias publicadas no Diário de Lisboa, de 14 de novembro de 1975, cujas imagens foram cedidas pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT).