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AS LEIS DA SAÚDE MENTAL


«A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.» 

Artigo 1.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia


O tema da saúde mental sempre preocupou as comunidades humanas. O que foi evoluindo ao longo dos tempos foi a forma de entender e responder aos problemas das pessoas cujo comportamento não se enquadrava no que era entendido como «comum». A saúde mental foi sendo entendida de várias maneiras e foram apontadas várias razões para as doenças mentais 1, nomeadamente causas sobrenaturais, crenças de possessões demoníacas, maldições, maus espíritos, feitiçarias ou deuses vingativos e castigadores.

Só no final do séc. XIX, começam a ser explicadas pelas variações do sistema nervoso, levando o tema da psiquiatria para o campo da ciência. Nessa altura começam a surgir as primeiras instituições psiquiátricas que, rapidamente, se multiplicaram. 

A primeira resposta da sociedade para os problemas de saúde mental foi, assim, a institucionalização. Encontramos subjacentes à criação das instituições psiquiátricas várias motivações. Por um lado, tiveram como objetivo tirar das ruas as pessoas com algum tipo de distúrbio mental, muitas vezes votadas à mendicidade, porque abandonadas pelas famílias. Por outro lado, visaram prestar-lhes cuidados. No entanto, também pretenderam isolá-las e afastá-las da sociedade 2

Com o tempo, a sociedade começou a ter consciência das consequências da institucionalização, entre as quais se destacam a perda de autonomia e de individualidade, a consequente dependência e o desenraizamento sociocomunitário e familiar. 

Assim, após um período marcado pelo internamento integral e de longa duração, o paradigma da relação da sociedade com o doente mental mudou e a fase da desinstitucionalização começou a ganhar espaço.

Em Portugal, a Lei n.º 2118, 3 de abril de 1963 - Promulga as bases para a promoção da saúde mental, estabeleceu os princípios gerais relativos ao tratamento compulsivo dos afetados de doença ou anomalia mental ou toxicomania e consagrou os seus princípios orientadores. Criou os setores de serviços psiquiátricos e os Centros de Saúde Mental, com a finalidade de desinstitucionalização e integração na comunidade. Porém, a resposta para estas pessoas continuou a passar, maioritariamente, pelos hospitais psiquiátricos.

Em 1998,3 foi publicada a Lei n.º 36/98, de 24 de julho - Lei de Saúde Mental, que definiu os princípios gerais de saúde mental e, em especial, do regime do internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica. Esta lei traçou, também, um caminho para um modelo de referência comunitário. Porém esta lei revelou algumas fragilidades que foram evidenciando a necessidade de uma alteração legislativa.

Na verdade, há muito que a desinstitucionalização psiquiátrica 4 e a criação de novos serviços na comunidade estão entre as prioridades das políticas de saúde mental. Essa tendência é evidente, em Portugal, por exemplo, no Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 5

pormenor de uma escultura em ferro na sala do senado

Nova Lei da Saúde Mental

A proposta de lei – que deu origem à Lei n.º 35/2023, de 21 de julho - Aprova a Lei da Saúde Mental, altera legislação conexa, o Código Penal, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e o Código Civil e revoga a Lei n.º 36/98, de 24 de julho (doravante apenas nova Lei da Saúde Mental) – foi elaborada por um grupo de trabalho de especialistas nomeado pelo Ministério da Saúde especificamente para esse efeito, tendo sido a proposta de lei apresentada pelo Governo à Assembleia da República em 22 de julho de 2022. 

Esta lei tem subjacente, por um lado, a evolução científica e os novos modelos de prestação de cuidados de saúde, e, por outro, os compromissos internacionais a que o Estado Português se vinculou em matéria de reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas que vivem processos de doença mental 6.

A nova Lei da Saúde Mental dispõe sobre a definição, os fundamentos e os objetivos da política de saúde mental, consagra os direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e regula as restrições destes seus direitos e as garantias de proteção da sua liberdade e autonomia 7.

Destacam-se, da nova Lei da Saúde Mental, os seguintes aspetos:

O internamento compulsivo foi substituído pela figura do tratamento involuntário, que ocorrerá preferencialmente em ambulatório e apenas excecionalmente em regime de internamento.

O tratamento tem finalidade terapêutica e é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e psicossocial. Visa, ainda, a restituição da autonomia de quem recusa o tratamento medicamente indicado, como modo de evitar consequências irreversíveis para a sua saúde mental, bem como prevenir a prática de crimes. 

Nos termos da nova lei, as pessoas com doença mental só poderão ser sujeitas a tratamento involuntário em caso de recusa do tratamento medicamente prescrito que seja necessário para prevenir ou eliminar o perigo para bens jurídicos do próprio ou de terceiros 8

Porém, essa via apenas poderá ter lugar, se for a única forma de garantir aquele tratamento, se for adequado para prevenir ou eliminar o mencionado perigo e se for proporcional à gravidade da doença mental, ao grau de perigo e à relevância dos bens jurídicos em perigo 9.

Em harmonia com os princípios que norteiam esta lei, a pessoa em tratamento involuntário participa ativamente, na medida da sua capacidade, na elaboração e execução do seu plano de cuidados. É também chamada a participar nas decisões relativas à evolução do seu processo terapêutico e tem de ser informada dos direitos que lhe assistem.

A decisão de decretar o tratamento involuntário é uma decisão judicial, obrigatoriamente fundamentada e baseada em avaliação clínico-psiquiátrica.

O tratamento involuntário cessa logo que cessem os pressupostos que o motivaram. Por sua vez, o tratamento involuntário em regime de internamento é substituído por tratamento em ambulatório assim que este seja possível. 

Com a nova Lei da Saúde Mental deixou de ser possível que as medidas de internamento tenham uma duração ilimitada ou perpétua. Privilegiou-se o princípio segundo o qual ninguém, mesmo que seja inimputável 11, pode ser privado de liberdade perpetuamente, ilimitadamente ou indefinidamente 12

Agora, a medida de segurança de internamento cessa quando cessar a situação de perigo e o seu limite máximo temporal corresponde ao limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável. 

O período de revisão obrigatória da situação do internado e do reexame da medida de internamento passaram de dois para um ano. Esta alteração teve em consideração as recomendações do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes.

A vontade e preferências de quem tem necessidade de cuidados de saúde mental podem ser expressas antecipadamente sob a forma de diretivas antecipadas de vontade. Estas diretivas devem exprimir a vontade de forma clara e inequívoca em matéria de cuidados de saúde mental e devem ser respeitadas.

Em tratamento involuntário, só pode haver recurso a eletroconvulsivoterapia ou a estimulação magnética transcraniana quando estas técnicas sejam medicamente prescritas e confirmadas por dois médicos psiquiatras, além do médico prescritor, e se se revelarem a melhor alternativa terapêutica.

A pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental pode ser assistida e representada, no exercício dos seus direitos, consoante os casos, pelo acompanhante (ao abrigo do regime do maior acompanhado 13), pelo procurador de cuidados de saúde 14, pelo mandatário, pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, a tutela ou a quem a pessoa tenha sido confiada.

A «pessoa de confiança» é uma pessoa escolhida por quem tem necessidade de cuidados de saúde mental e por si expressamente indicada para, com a sua concordância, a apoiar no seu percurso de cuidados e no exercício dos seus direitos. A «pessoa de confiança» pode aceder à informação de saúde e ao processo de tratamento involuntário no âmbito da sua missão.

Com a nova Lei da Saúde Mental, as pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental passam a poder exercer o seu direito de voto.

Foram substituídas expressões como «anomalia psíquica grave» e «pessoa com doença mental» por «doença mental» e «pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental». Apesar da alteração terminológica poder, à primeira vista, parecer de somenos, a verdade é que não é uma mera operação de semântica. Esta opção visa contribuir para o fim do estigma que estas pessoas continuam a ser alvo 15.

Assim, volvidos 25 anos de vigência da lei aprovada em 1998, a nova Lei da Saúde Mental, que entrou em vigor no dia 20 de agosto de 2023, veio continuar o caminho há muito traçado em Portugal: o modelo comunitário em cuidados de saúde mental e a integração ao invés da institucionalização, que a presente lei consolidou com carácter excecionalíssimo.

Como foi sendo referido, esta lei teve por princípio orientador a dignidade da pessoa humana, assegurando mais direitos e garantias às pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental, modernizando o quadro legal nacional em linha com a evolução internacional e o conhecimento científico.

Inês Mota e Josefina Gomes



[1] Neste sentido mágico-religioso de «loucura», quem sofria de doença psiquiátrica ou era tratado como divindade ou, pelo contrário, enjeitado pelas famílias por ser motivo de vergonha ou desonra.

[2] A institucionalização era entendida com uma via de proteção da sociedade em relação a quem padecia de doença mental. Infelizmente, nunca foi possível falar de saúde mental sem falar da exclusão, do preconceito e do estigma, lembrando a este respeito a imagem da «nau dos loucos» a que Foucault alude na sua obra «História da Loucura na Idade Clássica».

[3] A lei só foi publicada após a quarta revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro) que aditou a alínea h) ao no n.º 3, do artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP): «Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes: (…) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente». Desta forma, dissiparam-se as dúvidas sobre eventuais conflitos entre os procedimentos relativos ao internamento compulsivo sem consentimento, constantes em lei ordinária, e os direitos e garantias dos portadores de anomalia psíquica constitucionalmente consagrados.

[4] Esta via há muito que é proposta e defendida por várias organizações internacionais, nomeadamente pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

[5] «Toda a evidência científica disponível veio mostrar que a transição de hospitais psiquiátricos para uma rede de serviços com base na comunidade é a estratégia de desenvolvimento de serviços que melhor garante a melhoria da qualidade de cuidados de saúde mental.», in Resumo Executivo do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016, aprovado na Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2008, 22.

[6] Nomeadamente, no âmbito da OMS, do Conselho da Europa, da União Europeia e de outras instâncias internacionais.

[7] No que concerne aos princípios gerais e às regras de organização e funcionamento dos serviços de saúde mental dispõe o Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro.

[8] Como por exemplo a vida, a integridade física, a propriedade, etc

[9] Em conclusão, o tratamento involuntário só poderá ocorrer se se verificarem, cumulativamente, as três vertentes do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º da CRP: necessidade, adequação e racionalidade. 

[10] Estas situações ocorrem no caso de crimes praticados por inimputável em que lhe seja aplicada medida de segurança de internamento em estabelecimento adequado.

[11] Nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, «é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação».

[12] Até à entrada em vigor da nova lei, era possível prorrogar sucessivamente o internamento, mesmo que se ultrapassasse o limite máximo da pena correspondente ao crime praticado. Refira-se que, de acordo com o levantamento feito pelas unidades de saúde mental, em Portugal Continental e na Região Autónoma da Madeira, foram identificadas 46 pessoas nesta situação, cabendo aos tribunais a decisão de cessar o internamento e, consequentemente, as restituir à liberdade.

[13] Cf. o Regime do Maior Acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.

[14] Cf. a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, que regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital.

[15] Na verdade, são vários os estudos que demonstram que a opção por uma linguagem adequada reduz o estigma em relação às doenças mentais. A título de exemplo, veja-se a publicação da American Psychological Association, que alterou o nome de Journal of Abnormal Psychology para Journal of Psychopathology and Clinical Science, por força de uma consciência crescente na comunidade de apoiar e não estigmatizar estas pessoas. Diga-se, ainda, que um dos objetivos da política de saúde mental, constantes no artigo 5.º da nova Lei da Saúde Mental, é precisamente «combater o estigma face à doença mental».