" />
TRAVESSIA AÉREA DO ATLÂNTICO SUL
No dia 30 de março de 1922, pelas 7h00 da manhã, Portugal dava, com o início da viagem de travessia aérea do Atlântico Sul, um passo que ficaria registado na história da aviação internacional. A ligação Lisboa-Rio de Janeiro foi levada a cabo por dois oficiais da Marinha Portuguesa, Artur de Sacadura Freire Cabral (1881-1924), como piloto, e Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959), como navegador. A bordo, seguia também um exemplar d’Os Lusíadas, para oferta ao Presidente da República do Brasil.
O projeto teve a sua génese em 1919, numa proposta apresentada por Sacadura Cabral, por ocasião da visita do Presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, a Lisboa. O percurso, de mais de 4500 milhas marítimas, oferecia dificuldades técnicas a que era necessário dar resposta, desde logo a orientação nas extensões vastas de oceano, mas também o peso do combustível, que condicionou a escolha das etapas do itinerário. Tal justificava uma preparação da viagem com bastante antecedência.
A ligação dos dois homens, que se haviam conhecido nas campanhas de Moçambique, funcionou como uma associação de competências. Gago Coutinho sempre desenvolveu estudos ao nível da cartografia e pesquisa náutica e para esta empresa em concreto foi decisiva a iniciativa de adaptar instrumentos de orientação usados na navegação marítima – o sextante – à navegação aérea. O “sextante de horizonte artificial”, ou “sextante de bolha”, foi a descoberta técnica essencial associada a esta empresa (e usada na indústria aeronáutica nas décadas seguintes), mostrando ser possível sobrevoar grandes superfícies marítimas recorrendo apenas à orientação pelos astros. Complementou-o com o corretor de rumos, que permitia calcular graficamente o ângulo entre o eixo longitudinal da aeronave e o rumo a seguir, considerando a intensidade e direção do vento. Sacadura Cabral havia integrado o grupo de oficiais que, durante a I Guerra Mundial, se deslocaram a França para frequentar um curso de aviação. Na posse do brevete, assumiu-se como comandante da arrojada operação e, fazendo uso da sua mestria de pilotagem e conhecimento das potencialidades mecânicas dos engenhos aéreos, ficou a seu cargo a escolha do modelo de avião adequado.
A aeronave escolhida foi o hidroavião monomotor Fairey III, um modelo britânico em produção desde 1917. Foi batizado “Lusitânia”, mas as vicissitudes da viagem implicariam a utilização de 2 outros engenhos de características semelhantes: o “Pátria” e o “Santa Cruz”, sendo este último o que amarou no Rio de Janeiro, recebido em apoteose, a 17 de junho, 79 dias depois. O tempo efetivo de voo totalizou 62 horas e 26 minutos.
A viagem deve ser perspetivada no seu contexto. Por um lado, associada às comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil, e de alguma forma preparatória da visita de estado do Presidente da República Portuguesa, António José de Almeida, a esse país, em setembro de 1922. Pode também ser interpretada como uma superação do episódio traumático da participação de Portugal na I Guerra Mundial – onde o momento mais trágico foi a Batalha de La Lys –, através da conquista do ar, numa espécie de recriação patriótica e de celebração das viagens marítimas dos Descobrimentos, que teria o seu eco na forma calorosa com que foi acolhida pela população – portuguesa, mas também brasileira –, que promoveu Sacadura Cabral e Gago Coutinho ao estatuto de heróis. Não terá sido inocente, neste aspeto, a adoção simbólica da cruz de Cristo, a mesma utilizada pelas naus quinhentistas. Por fim, há que entender esta empresa num movimento internacional de verdadeira corrida às travessias do Atlântico, inaugurada com a travessia do Atlântico Norte, em 31 de maio de 1919, por pilotos norte americanos, com destino ao Reino Unido.
A aeronáutica portuguesa manteve essa dinâmica de conquista dos “ares nunca antes voados” nos anos seguintes, competindo diretamente com outras potências europeias, Estados Unidos e Japão. Assinalem-se, em 1924, o Raid Aéreo Lisboa-Macau, protagonizado por Sarmento de Beires e Brito Pais ou, em 1927, a travessia noturna do Atlântico Sul, também por Sarmento de Beires, desta vez na companhia de Jorge Castilho e Manuel Gouveia.
A viagem pioneira de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ficou inscrita nos anais da aviação internacional. Da coleção da Biblioteca Passos Manuel selecionámos 4 títulos coevos da travessia e que ficam agora disponíveis também em formato digital:
Portugal Brasil : a hora gloriosa da raça : a travessia aerea do Atlantico : a visita de S. Excia. o Snr. Presidente da República Portugueza. São Paulo : Off. Graphicas Monteiro Lobato & Cia, 1922.
Oferecida pelos próprios à Biblioteca das Cortes, constitui o registo mais detalhado da travessia e de todos os trabalhos preparatórios. A Biblioteca Passos Manuel possui dois exemplares, ambos autografados pelos autores, com dedicatória à Câmara dos Deputados e ao Senado.
CABRAL, Artur Freire de Sacadura ; COUTINHO, Gago – Relatório da viagem aérea Lisboa-Rio de Janeiro efectuada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Lisboa : Imprensa Libânio da Silva, 1923.
Oferecida pelos próprios à Biblioteca das Cortes, constitui o registo mais detalhado da travessia e de todos os trabalhos preparatórios. A Biblioteca Passos Manuel possui dois exemplares, ambos autografados pelos autores, com dedicatória à Câmara dos Deputados e ao Senado.
OOM, Frederico – Discurso de homenagem aos insignes aviadores Carlos Viegas Gago Coutinho e Artur de Sacadura Freire Cabral. Coimbra : Imprensa da Universidade, 1923.
O discurso foi proferido na Academia das Ciências de Lisboa em 23 de dezembro de 1922. Frederico Oom era, então, diretor do Observatório Astronómico de Lisboa.
LIMA, João Maria de Almeida [et al.] – Sessão solene de homenagem aos insignes aviadores, sócios correspondentes desta Academia, Carlos Viegas Gago Coutinho e Artur de Sacadura Freire Cabral : discursos pronunciados na sessão de 23 de Dezembro de 1922. Coimbra : Imprensa da Universidade, 1923.
Neste volume, além do discurso de Frederico Oom, encontramos os testemunhos do físico e militar João Maria de Almeida Lima, do geógrafo Pedro José da Cunha, do escritor e militar Henrique Lopes de Mendonça (autor da letra do Hino Nacional) e do próprio Gago Coutinho.
João Carlos Oliveira
A Biblioteca Passos Manuel tem vindo a digitalizar títulos que se encontram em domínio público, quer provenientes da coleção da Biblioteca das Cortes, quer pertencentes a espólios à sua guarda. Os exemplares digitalizados ficam disponíveis em acesso público, universal e gratuito a partir do catálogo bibliográfico, do Registo Nacional de Objetos Digitais e da Europeana. Nesta secção destacam-se alguns desses títulos.