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Na manhã de 1 de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, em Lisboa houve um sismo de enorme magnitude, sucedido de um tsunami e de uma colossal destruição de vidas e bens. Agora, 268 anos após o grande terramoto de Lisboa, e tendo presente os ainda recentes terramotos da Turquia e de Marrocos, nunca a questão da prevenção e proteção no caso de se dar este tipo de fenómeno natural esteve tão presente. Na atual Legislatura, e no âmbito da Comissão de Administração Pública, Ordenamento do Território e Poder Local, foi constituído o Grupo de Trabalho – Prevenção e Proteção Sísmica que solicitou pareceres a várias entidades e individualidades e tem estado a efetuar diversas audições.
Neste contexto, incluem-se nesta edição excertos de «O Pequeno Livro do Grande Terramoto» 1, escrito, em 2019, pelo Deputado Rui Tavares, com a descrição do terramoto de 1755.
«Ouviu-se um ruído cavo e grave - «rugido tao medonho como o de hum espantoso Trovão» - e em simultâneo a terra tremeu. De imediato sentiu-se uma vibração apenas suficiente para fazer dançar as folhas de papel em cima de uma mesa, mas de contínuo aumentou «com tão violento, e estranho movimento, que logo indicou não ser puramente tremor». Objetos maiores caíram das prateleiras, molduras e crucifixos pregados às paredes balançavam como se fossem barbatanas de um peixe fora de água (…). Os próprios edifícios começavam já a balançar para trás e para diante. A terra vibrava como se fosse atravessada por uma onda, disseram depois várias testemunhas - e muito corretamente, uma vez que o sismo é de facto uma onda de energia. (…)
Aparentemente os edifícios começaram a ruir a partir do segundo minuto de sismo. O vaivém das paredes tinha deixado os telhados sem sustentação. As telhas caíam, e depois delas os travejamentos e tudo o que neles estava suspenso, incluindo os candelabros acesos das igrejas. A queda dos telhados matou, feriu ou imobilizou imediatamente grande parte dos fiéis que se encontravam nas igrejas - além de por vezes lhes ter tapado as saídas - enquanto as chamas dos candelabros se propagavam rapidamente às madeiras. Nas ruas, as pessoas eram atingidas por pedaços de revestimento, telhas soltas, até varandas e paredes inteiras.
Diz-se que trinta segundos de abalo sísmico parecem, à pessoa que os vive, intermináveis. Mas vieram trinta segundos e passaram trinta segundos, e mais trinta e mais trinta. A determinada altura o abalo deteve-se por um pouco, permitindo uma certa respiração aos lisboetas. Mas esta interrupção, e mesmo uma segunda, duraram apenas alguns segundos. O regresso dos abalos era mais forte ainda e a reação das pessoas, que no primeiro embate parece ter sido mais de espanto, deve ter passado rapidamente ao pânico. O que se passava afinal? Os sismos fortes em Lisboa não eram tão comuns que permitissem a uma geração ter disso memória recente. Havia, evidentemente, uma reminiscência coletiva do terramoto de 1531 – o outro grande terramoto de Lisboa -, mas 1531 estava a uma distância quase tão grande como a que nos separa de 1755. O terramoto de 1531 tinha sido coisa do tempo dos avós dos avós dos avós dos lisboetas de 1755.
O terramoto durou mais de sete minutos, com duas curtas paragens. Esta é uma estimativa de compromisso: existem testemunhos que dão como duração do terramoto dez ou quinze minutos; a maioria aponta para abaixo de dez minutos. Há quem garanta apenas uma interrupção ou até quem não se refira a nenhuma; seja como for, as paragens devem ter sido muito breves, porque todos se referem a este sismo como tendo sido apenas um (ocorreram, contudo, réplicas durante o resto do dia e os abalos sísmicos passaram a fazer parte do quotidiano nos meses e até anos seguintes).
Já não há acordo, contudo, sobre o tempo por que se prolongou o ruído de trovão durante o sismo, mas testemunhos aparentemente fiáveis dizem que ele se fez sentir apenas durante o primeiro minuto, sendo depois substituído pelos estrondos das quedas de mobiliário, telhados, paredes e edifícios inteiros - sempre acompanhados pelos gritos da população. A derrocada dos edifícios levantava ondas de poeira em seu redor. Essas nuvens tapavam o sol, tornavam o ar irrespirável, e cobriam já uma grande parte do centro da cidade, «uma cerração tão forte que parecia querer sufocar todos os viventes».
O primeiro choque - de entre dois a três minutos? - teria sido suficiente por si só para provocar danos excecionais. Através da poeira, os sobreviventes puderam observar durante a breve interrupção que ruas inteiras tinham deixado de existir: todos os edifícios de determinadas áreas estavam por terra. A pausa não deu para mais do que tentar encontrar os sobreviventes mais à mão. Não houve tempo para começar a procurar haveres ou verificar o estado em que tinham ficado as habitações das vítimas. O segundo e o terceiro choques provocaram um tal pânico que muitas pessoas deixaram sequer de prestar atenção aos efeitos físicos do terramoto. Muitos acreditavam, certamente, que era chegado o fim do mundo - e há disso testemunhos incontáveis. (…)
Quando o abalo se suspendeu, os lisboetas ficaram atarantados pela cidade, perdidos uns dos outros. Alguns procuravam os seus parentes ou haveres, outros ainda não tinham compreendido completamente o que havia sucedido. As nuvens de poeira continuavam a dificultar a visibilidade. De uma parte da cidade não se via a outra, do próprio alto do Castelo não se conseguia distinguir os detalhes de destruição na Baixa. É possível, também, que alguns incêndios estivessem já ateados, embora não houvesse ainda informação sobre eles. O grande pânico dos incêndios ocorreria umas horas depois. Para já, os lisboetas parecem ter pensado que o pior tinha passado - se é que conseguiam pensar em alguma coisa. Muitos desceram até à ribeira, ao Tejo e às suas praias. O nível do mar estava abaixo do normal na maré baixa. Houve até quem escrevesse, mais tarde, que se tinha visto o fundo do rio.
Estas condições não ajudam a ter grandes certezas sobre o maremoto e as ondas tsunami que atingiram Lisboa. Nem toda a gente se encontrava junto ao rio, e os que não se encontravam parecem não ter tido contacto visual com as ondas, embora tenham por vezes participado de correrias coletivas, em fuga das ondas reais ou de simples rumores. (…)
Sabemos certamente que o maremoto provocado pelo deslocamento do fundo marinho no epicentro foi sentido inequivocamente pelos navios em alto-mar. Meia hora depois do sismo já um tsunami de cerca de 15 metros de altura fizera enormes estragos nas costas marroquina, andaluza, algarvia e alentejana. Certas cidades algarvias, como Lagos, Portimão e Faro, foram mais danificadas pelo tsunami do que pelo terramoto, embora se encontrassem também perto do epicentro. Em Albufeira, parte da população foi arrastada para o mar. Em Lagos, as ondas destruíram muralhas e partes de fortalezas, mas foi na cidade andaluza de Cádis que os efeitos das ondas foram mais notados, uma vez que a cidade se encontra ligada ao continente por um istmo que foi completamente varrido pelas águas.
A parte central de Lisboa encontra-se semi-resguardada de fenómenos deste tipo pelo formato da embocadura do Tejo. Apesar de tudo, quando a onda gigante chegou à capital do reino tinha ainda seis metros de altura, o que foi suficiente para causar estragos consideráveis. Arrastou consigo um grande número de embarcações. Recordemos que num dia comum o porto de Lisboa contava com entre a meia centena e a centena de navios de grande porte, aos quais se deveriam juntar embarcações menores, botes, etc. Toda essa madeira, inteira ou despedaçada, deve ter entrado pelas ruas da cidade, principalmente nas freguesias de São Paulo, mais baixas e expostas ao rio, rangendo e estalando à passagem.
Quando a onda regrediu deixou estes desperdícios que mais tarde serviriam de combustível para as chamas. E quem se encontrava por perto não teve tempo para recobrar o fôlego. Passado um par de minutos, outra onda chegou e se abateu sobre a parte ribeirinha da cidade. Desta vez não só trouxe destroços de navios e destroços de destroços provenientes da própria ruína da cidade, como levou consigo embarcações que se encontravam ancoradas ou mesmo em terra firme e que desapareceram quando esta onda regrediu.
Segundo alguns testemunhos, a maré subiu e desceu por três vezes em pouco mais de cinco minutos, e o mar continuou alterado depois disso (o termo maré é utilizado para descrever a visão rara de uma parede de água avançando sobre a cidade). Não se sabe quanta gente morreu, em Lisboa, por ação das ondas tsunami, nem até que ponto da cidade penetraram as águas. (…)
Até ao megatsunami de 2004 seria difícil acreditar em alegações exageradas sobre a força destas ondas. Hoje sabemos que uma onda de seis metros avança até encontrar oposição ou altitude superior. No caso de Lisboa, o maremoto e as ondas tsunami que dele resultaram fizeram os seus estragos principais na margem que vem desde Belém até à Rocha do Conde de Óbidos, em Santos-o-Velho, e daqui até à freguesia de São Paulo. Pereira de Figueiredo afirma que as ondas penetraram até 5 estádios (ca. 1 km) no interior da cidade. Nesta face da cidade, menos resguardada no estuário - e que, como vimos, era bem mais próxima do rio do que hoje em dia - a onda terá varrido toda a zona ribeirinha, arrastando com ela pessoas, embarcações e detritos. Só escapou quem correu para lugares altos e especialmente quem, por se encontrar a cavalo, pôde galopar para longe da onda gigante.
Ao fim da manhã os incêndios tornaram-se a preocupação principal. (…)
Muitos edifícios arderam completamente. Praticamente toda a Baixa de Lisboa foi afetada.»
[1] Tavares, Rui (2009). O Pequeno Livro do Grande Terramoto. Ed. Tinta-da-China