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O que acontece depois do termo de uma Comissão de Inquérito?
«Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: É com a sensação de dever cumprido que, hoje, aqui chegamos e que me apresento a esta Câmara. Não venho dizer que esta Comissão Parlamentar de Inquérito resolveu todos os problemas da TAP… Esta Comissão, a que tive a honra de presidir, contrariou expectativas e desmentiu vaticínios, silenciou quem a pretendia reduzir a um mero instrumento de luta político-partidária. O preço da liberdade é a eterna vigilância, como nos ensinaram tantos líderes políticos. Esta Comissão, com as suas dificuldades, limitações e vicissitudes, honrou o Parlamento e valorizou a democracia. Foi vigilante.»
As palavras do Deputado António Lacerda Sales, então Presidente da Comissão Eventual de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP (CPI -TAP), inauguraram o debate sobre o Relatório da mencionada Comissão, ocorrido a 19 de julho de 2023, que constituiu o corolário de quase cinco meses de trabalho.
A CPI-TAP tomou posse a 22 de fevereiro e os seus trabalhos geraram um amplo interesse quanto à matéria em análise e quanto às eventuais consequências do apuramento dos factos para os diversos interlocutores neles envolvidos. Tal como anteriores CPI, também esta atingiu recordes de audiências, sendo as suas reuniões transmitidas, não só pelo Canal Parlamento como, igualmente, pelos principais canais noticiosos que, à hora dos telejornais, garantiam também os «diretos» a partir do átrio de acesso às salas das comissões parlamentares.
A Comissão esteve em funcionamento ao longo de 141 dias1 e nesse período o plenário da Comissão realizou 39 reuniões, cuja duração média foi de mais de quatro horas e meia, num total de quase duzentas horas. Nestas reuniões tiveram lugar 46 audições a depoentes com uma duração média de 3 horas e 24 minutos. A estes trabalhos, mais visíveis para o grande público, acresceram cerca de 17 horas de reuniões de mesa e coordenadores dos grupos parlamentares.
Mas o que aconteceu quando a CPI-TAP, como as restantes comissões de inquérito, chegou ao seu termo? Desligados que foram os holofotes, qual a sequência e consequência dos trabalhos de uma CPI?
A resposta a esta questão passa pela execução do relatório da Comissão, em particular das recomendações que, desde a revisão do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP) de 2019, podem ser incluídas no documento, sem necessidade da aprovação de um projeto de resolução que as materialize. De sublinhar, igualmente, que existe uma prática reiterada de comunicação à Procuradoria-Geral da República/Ministério Público dos eventuais factos apurados que possam indiciar a prática de crime.
Tomando o relatório da CPI-TAP como exemplo – composto por 289 páginas (190 páginas mais anexos)2 e do qual foi Relatora a Deputada Ana Bernardo –, nele podemos encontrar, no Capítulo IV, recomendações dirigidas às empresas, «independentemente da sua natureza pública ou privada», ao Governo e ao trabalho das Comissões de Inquérito. O Capítulo V inclui os indícios de eventual responsabilidade criminal apurada, para efeitos de transmissão ao Ministério Público. Mais se acrescenta, que o acervo documental da Comissão «ficará à inteira disposição, nos termos da lei, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e da Inspeção Geral de Finanças». Refira-se, a este propósito, que frequentemente a Assembleia da República é contactada por diversas instâncias, nomeadamente judiciais, solicitando documentação referente às extintas CPI.
Destacamos, das várias recomendações deste relatório, as que versam sobre os trabalhos das Comissões de Inquérito, na medida em que estas terão impacto, quer no trabalho ainda em curso de organização do arquivo da mencionada Comissão, quer no funcionamento de futuras CPI, em particular no que respeita ao tratamento e acesso de informação classificada. Com efeito, o relatório sublinha a necessidade de «dar continuidade ao trabalho já encetado por esta Comissão de Inquérito no que concerne à classificação, desclassificação, tratamento e utilização das informações consideradas sensíveis, sigilosas ou reservadas, garantindo o adequado equilíbrio entre a proteção segurança documental e o acesso ágil por parte de todos os que estão credenciados para a ela aceder, de modo a assegurar uma maior eficácia aos trabalhos dos membros da Comissão».
Durante o funcionamento de uma CPI a maioria das diligências, incluindo as encetadas junto de entidades externas, é assegurada pelo respetivo Presidente. No entanto, após a votação do relatório em Comissão e da sua discussão em Plenário, a CPI, cumprida que se encontra a sua missão, extingue-se, cabendo as ulteriores comunicações ao Presidente da Assembleia da República, habitualmente a solicitação do Deputado ex-Presidente da extinta CPI.
Após o termo de uma CPI, os elementos públicos, como as atas e restantes documentos na sua posse, podem ser consultados após a aprovação do relatório final, salvo se corresponderem a reuniões ou diligências não públicas3, sendo então disponibilizados na página da Comissão.
E o que acontece se houver documentação classificada?
Esta situação ocorre com frequência, não sendo a CPI-TAP uma exceção. Com efeito, conforme consta do relatório, «o facto de a Comissão ter recebido diversa documentação com a marca de Segurança Nacional, cuja informação está classificada com o grau de segurança confidencial (…) obrigou a Comissão a adotar medidas para assegurar a execução das políticas e diretrizes de segurança aplicáveis em conformidade com o seu regime jurídico. Para o efeito foi instalada uma Sala de Segurança dotada de Sistemas de Informação e Comunicações acreditados e autorizados pela Autoridade Nacional de Segurança (ANS)». Mais adiante, podemos ler que «houve uma excessiva classificação de documentos como confidenciais, secretos ou de acesso restrito. Essa classificação incluiu documentos que por lei deveriam estar publicados na Internet».
É por isso necessário fazer um escrutínio cuidado de toda a documentação de forma a assegurar que a transmissão do acervo documental na posse da já extinta CPI seja efetuada em cumprimento de todas as regras de circulação e acesso aos documentos, em conformidade com a sua classificação. Este trabalho, praticamente invisível e no qual estão envolvidos diversos serviços da Assembleia, é essencial para a preservação da memória institucional, com respeito pelas normas de segurança de informação em vigor.
Apesar de as comissões parlamentares de inquérito gozarem dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados, as CPI não são tribunais. São, isso sim, órgãos que contribuem para um Parlamento fiscalizador. Ora, a função de fiscalização, exercida em condições de publicidade dos trabalhos, não termina quando os holofotes se apagam. Pelo contrário: diligenciar para que seja dada sequência às recomendações, fazendo-as chegar aos seus destinatários e zelar pela preservação e acesso à memória institucional, faz também parte dessa função, contribuindo para que o Parlamento «seja vigilante», mesmo quando os holofotes se apagam.
Cristina Correia
[1] A previsão inicial era de 90 dias, até dia 22 de maio, tendo sido solicitada uma prorrogação de 60 dias, até dia 21 de julho. A CPI viria a aprovar o seu relatório a 13 de julho. Refira-se que o tempo máximo para a realização de um inquérito é de 180 dias, findo o qual a comissão se extingue, sem prejuízo do disposto nos números seguintes. A requerimento fundamentado da comissão, o Plenário pode conceder ainda um prazo adicional de 90 dias.
[2] Elaborado nos termos previstos no artigo 20.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP). Nos termos do n.º 6 do artigo 11.º do RJIP, quando a comissão não tiver aprovado um relatório conclusivo das investigações efetuadas, o presidente da comissão envia ao Presidente da Assembleia da República uma informação relatando as diligências realizadas e as razões da inconclusividade dos trabalhos. Aconteceu na primeira CPI à Caixa Geral de Depósitos, na XIII Legislatura. Relatório, incluindo anexos e versões anteriores, bem como os sentidos de voto disponíveis aqui: Relatório da Comissão (parlamento.pt)
[3] «As reuniões e diligências efetuadas pelas comissões parlamentares de inquérito são em regra públicas, salvo se a comissão, em deliberação tomada em reunião pública e devidamente fundamentada num dos seguintes motivos, assim o não entender: a) As reuniões e diligências tiverem por objeto matéria sujeita a segredo de Estado, a segredo de justiça ou a sigilo por razões de reserva da intimidade das pessoas; b) Os depoentes se opuserem à publicidade da reunião, com fundamento na salvaguarda de direitos fundamentais; c) As reuniões e diligências colocarem em perigo o segredo das fontes de informação, salvo autorização dos interessados».