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O DEVER DE AUDIÇÃO DAS REGIÕES AUTÓNOMAS


estátua alusiva à lei na sala das sessões

«Os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional.»
Constituição da República Portuguesa, Artigo 229.º, n.º 2

«As regiões autónomas são pessoas coletivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respetivos estatutos: Pronunciar-se por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como, em matérias do seu interesse específico, na definição das posições do Estado Português no âmbito do processo de construção europeia.»
Constituição da República Portuguesa, Artigo 227.º, n.º 1, alínea v)


A Constituição da República Portuguesa (CRP)1 estabelece o dever de audição das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira em questões respeitantes às mesmas. Também a Lei n.º 40/96, de 31 de agosto, que regula a audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, e o artigo 142.º do Regimento da Assembleia da República preveem este dever de audição.

Os artigos em causa não especificam o momento em que as Regiões Autónomas devem ser ouvidas, pelo que as mesmas podem ser chamadas a enviar os seus pareceres e contributos no decorrer do processo legislativo. No entanto, é logo na fase de admissão que se analisa a necessidade ou não de audição das Regiões Autónomas, cabendo ao Presidente da Assembleia da República o dever de desencadear um processo de audição dos governos e assembleias legislativas regionais, aquando da admissão de iniciativas legislativas que versem sobre matéria respeitante às Regiões Autónomas.

A questão que não raras vezes se levanta é a de saber se a matéria em causa é ou não respeitante às Regiões Autónomas, na aceção do n.º 2 do artigo 229.º e da alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição. O dever de consulta revela-se de difícil interpretação especialmente nos casos em que não existe uma norma que refira expressamente as Regiões Autónomas.

Esta questão já foi, inclusive, objeto de diversas decisões do Tribunal Constitucional. Já em 1977 a Comissão Constitucional se havia pronunciado a este propósito, através do seu Parecer n.º 20/77:
«São questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às Regiões Autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios», sendo que indícios «capazes de revelarem, no caso concreto, a existência de uma questão respeitante às Regiões Autónomas» serão, por exemplo, «a circunstância de o órgão de soberania, na disciplina que se propõe editar para determinada questão, circunscrever tal disciplina no âmbito regional» ou a de, «na regulamentação de determinada questão, se propor adotar uma solução especial no que toca às Regiões Autónomas, por referência à regulamentação geral que nessa matéria prevê para o restante território nacional».

Também Gomes Canotilho e Vital Moreira se debruçaram sobre esta matéria concluindo que «sob pena de caírem aqui todas as leis gerais e demais atos de eficácia não territorialmente fixada, parece ser de exigir que se trate de atos especificamente respeitantes às Regiões Autónomas (uma lei para uma delas, a criação ou extinção de um serviço estadual em uma delas, etc.) ou que, pelo menos, as afetem de forma especial, não bastando que as toquem de forma genérica, nos mesmos termos que outras regiões do país».

Sala das Sessões vista a partir das galerias

Recentemente, e no contexto da atual problemática do consumo das novas substâncias psicotrópicas (NSP) / drogas sintéticas nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade, por eventual violação do dever de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, do Decreto da Assembleia da República n.º 77/XV, que posteriormente deu origem à Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, que clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade e estabelece os prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando os regimes jurídicos aplicáveis ao tráfico e ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

O Presidente da República, para além de invocar o facto de os órgãos de governo próprio terem sido ouvidos aquando da versão originária dos diplomas alterados, assinala no seu pedido que o dever de audição a estes órgãos se impõe «se a matéria objeto do Decreto em apreciação respeita a interesses predominantemente regionais ou merece, no plano regional, um tratamento específico». As especificidades regionais que motivaram o pedido incluíam o «reflexo na organização regional», uma vez que «em matéria de saúde, as Regiões Autónomas possuem competências próprias, designadamente no plano da Administração Regional» e a existência de «legislação regional em matéria contraordenacional».

Este pedido deu origem ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 524/2023, que considerou que as normas do Decreto da Assembleia da República n.º 77/XV, «não estabelecem, elas mesmas, qualquer especificidade relativamente às Regiões Autónomas, estando-se em presença de um ato que visa operar uma regulação normativa que respeita, por igual, a todo o território nacional, sem enunciação de um qualquer particularismo ou especificidade de âmbito territorial limitadora».

Isto porque a alteração «da definição e tipologia do crime de consumo de plantas, substâncias ou preparações (…), respetiva pena, bem como respetivo processo criminal» dizem respeito a todo o território da República. Trata-se de uma «clarificação do regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo com as decorrentes adequações normativas no e para o quadro do encaminhamento e tratamento das situações, mormente no seio das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, sem que estas e/ou mesmo os serviços de saúde regionais vejam seus regimes, atribuições, funcionamento e estruturas minimamente modificados».

É referido, ainda, que o «aumento das prevalências de consumo de NSP constitui uma tendência observável, não apenas nas Regiões Autónomas, como em todo o território nacional, pelo que daí não deriva, nem uma tal constatação nos habilita ou permite fundar a existência de interesses ou de específicas particularidades naquelas regiões ante uma incidência marcada ou predominantemente regional sentida nos seus territórios».

Assim, «se poderia ter sido oportuno proceder à audição das Regiões Autónomas durante o processo legislativo (…), isso não permite sustentar que existia, à luz do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea v) e 229.º, n.º 2, da Constituição, uma exigência constitucional nesse sentido.» Com efeito, a medida legislativa em apreço destina-se, «em primeira linha, a clarificar o direito já anteriormente vigente e aplicável a todo o território nacional, com vista a fornecer soluções para questões problemáticas assinaladas seja na jurisprudência, seja na doutrina. Os efeitos que esta alteração poderá ter não só não têm especial incidência sobre as Regiões Autónomas, como também não comportam – salvo na medida em que determinam a atualização imediata e periódica da Portaria a que se refere o artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, de resto há muito reivindicada pelas Regiões Autónomas – alterações relevantes ao quadro legal já anteriormente aplicável às NSP».

Neste acórdão é ainda resumida a jurisprudência produzida sobre a matéria, individualizando-se critérios relevantes para a verificação do requisito «questão respeitante às Regiões Autónomas»:
«i) O do âmbito territorial da medida regulatória de determinada questão ser de aplicação circunscrita apenas ao território de uma ou de ambas as Regiões Autónomas;
ii) O da medida regulatória que se propõe adotar para a questão corporizar uma solução especial para uma ou para ambas as Regiões Autónomas, e em função das particularidades / especificidades destas diversa da regulamentação geral que nessa matéria se prevê para o restante território nacional;
iii) A circunstância de estarem em causa interesses que não são comparáveis com os que se fazem sentir noutras regiões do país, consideradas as características geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões;
iv) O da medida regulatória gerar a imposição / injunção de deveres especiais de adoção, adaptação / revisão da legislação regional ou de atribuição de uma competência, no âmbito da atividade administrativa, a exercer nas Regiões Autónomas por entidades distintas das entidades que a exercem no restante território nacional ou que impliquem a criação / constituição e / ou a reestruturação dos serviços regionais».

A jurisprudência constitucional continua, através destes casos concretos, a concretizar a delimitação do dever de audição que deriva do princípio da autonomia regional, auxiliando os órgãos de soberania políticos a exercer as suas competências próprias no respeito pela Constituição.


Patrícia Pires, Rafael Silva



[1] CRP, no n.º 2 do artigo 229.º e na alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º