" />
A abertura da Assembleia Nacional, cuja sessão inaugural decorreu a 11 de janeiro de 1935 com grande solenidade e cerimonial, esteve na origem de uma vasta e generalizada renovação do edifício do Parlamento que adquiriu então o aspeto exterior palaciano, enobrecido por uma varanda de aparato na fachada principal. Idêntico princípio de renovação foi adotado no interior, com intervenção de um diversificado leque de arquitetos e artistas nacionais, abrangendo todas as áreas, desde as de serviço a gabinetes de trabalho, às salas das antigas Câmaras dos Pares e dos Deputados.
Os arquitetos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade receberam a encomenda para os projetos dos novos gabinetes dos presidentes da Assembleia Nacional, da Câmara Corporativa e do Conselho de Ministros, isto é, do chefe do governo. António de Oliveira Salazar tinha o seu gabinete de trabalho no Palácio de S. Bento, que manteve mesmo após ter sido adquirido em 1937 o Palacete Cayres (construído na antiga cerca do Mosteiro de S. Bento da Saúde, no jardim posterior ao Palácio) para sua residência oficial, onde viveu até ao seu falecimento em 1970.
Estes arquitetos solicitaram ao pintor António Soares (1894-1978) a realização de obras a integrar no programa decorativo dos novos gabinetes do Presidente do Conselho de Ministros e do Presidente da Câmara Corporativa, projetados, respetivamente, por Guilherme e Carlos Rebelo de Andrade. As pinturas Os Ofícios e As Artes, as Letras e as Ciências realizadas a óleo sobre tela para a presidência da Câmara Corporativa ainda hoje permanecem no edifício, num corredor do piso térreo. Foram retiradas da localização original aquando da remodelação desse gabinete que implicou o rebaixamento do teto e consequente redução do pé direito da sala. Para este mesmo gabinete, António Soares terá concebido, em 1935, com Jorge Barradas, um baixo-relevo em terracota com o emblema das quinas ladeado por dois putti, mas que foi igualmente daí retirado, até por ser uma obra iconográfica assumidamente do Estado Novo. No arquivo da família do pintor existe o desenho a carvão para a figura do lado direito (Inv.º 245) e documentação que menciona a colaboração com Jorge Barradas.
Para o gabinete do Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, foram também encomendadas em 1934 quatro pinturas, através de contacto direto entre o arquiteto Guilherme Rebelo de Andrade e o pintor. Para estas obras, António Soares apresentou um orçamento no valor de 90 000$00 com pagamento faseado, sendo as mesmas colocadas logo no ano seguinte. Este gabinete, no entanto, foi objeto de uma remodelação, em cerca de 1960, e todas as pinturas foram retiradas, sendo desde então desconhecido o destino que lhes foi dado.
A investigação sistemática no arquivo da antiga Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais permitiu a descoberta de um conjunto de fotografias do gabinete realizadas em 1957, a preto e branco, em que são claramente visíveis as três sobreportas pintadas por António Soares, para além do quadro A Família, que enquadrava o recanto de trabalho de Oliveira Salazar e do qual já era conhecida uma fotografia. As três sobreportas tinham características e dimensões idênticas com representações alusivas ao Ensino, em frente da secretária, e a Trabalhos do Mar e Trabalhos da Terra, sobre as portas laterais. O posterior contacto com a família do pintor trouxe a informação dos temas de cada uma das pinturas encomendadas e ainda que duas delas se encontrariam nas Escolas Manuel da Maia e Francisco Arruda, em Lisboa.
A Família, a única em policromia, simboliza a conceção que dela tinha o Estado Novo e a visão que pretendia transmitir - a figura tutelar da Mãe, ao centro e em primeiro plano, que educa os filhos, e a do Pai, trabalhador responsável pelo seu sustento, em plano secundário, num país eminentemente rural. Na pintura plenamente inserida na obra do pintor nessa época, sobre um fundo geometrizante, destacam-se os volumes das figuras, estilizadas, com forte sentido decorativo e bem integradas nas grandes dimensões da tela, numa composição adaptada ao local para onde foi concebida.
O Ensino, Trabalhos do Mar e Trabalhos da Terra são pintados quase em monocromia a sépia, de forma mais esquemática, com os volumes definidos pelo claro-escuro numa pintura rápida, dominando a técnica com pinceladas largas, soltas, com carácter acentuadamente cenográfico e decorativo, sobretudo os dois últimos. O Ensino é representado por uma figura feminina de costas, a Mãe, descalça e com trajo de mulher do povo, segurando ao alto um livro, figura cuja proteção acolhe uma criança desnuda, também de costas, brincando com uma esfera armilar, um dos símbolos eleitos pela iconografia nacionalista do Estado Novo.
Os Trabalhos do Mar e Trabalhos da Terra, que se afrontavam nas portas laterais, são idênticos na composição: uma figura masculina nua, de pé, em posição frontal ocupa o centro da tela. Na primeira, a figura dirige o olhar para baixo à direita, segura com a mão direita um longo par de remos, que acentua a verticalidade da tela, e com a esquerda um cesto de pesca. A representação dos Trabalhos da Terra tem maior dinamismo, conferido pelo longo cajado que a figura transporta com a mão esquerda, apoiado no ombro e, em diagonal, ocupa a largura da tela. O olhar dirige-se também para baixo, mas à esquerda, tem o braço direito soerguido e na mão uma grossa chave de ferro, com cordão enrolado, cuja forma evoca uma ampulheta, que nos parece ser um evidente simbolismo da chave do conhecimento, associado à vida simples dos homens no seu trabalho quotidiano.
Estas duas telas representam tipologias, mais do que retratos, corpos masculinos apolíneos numa perfeição mítica, cuja representação causa espanto pela ousadia do tratamento das figuras, nus frontais em ambas. Ousadia para a época e, sobretudo, pelo programa decorativo em que se inseriam - o gabinete do Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar -, para cuja aceitação terá, provavelmente, contribuído o círculo de artistas em que o pintor se incluía, o qual desfrutava do apoio e das encomendas oficiais inseridas na Política do Espírito, patrocinada por António Ferro.
Não é de estranhar, por isso, que tenham surgido propostas de alterações decorativas do gabinete que contemplavam expressamente a retirada das pinturas, uma do arquiteto Nuno Beirão que não se concretizou, de 6 de novembro de 1957, mas que seria retomada a 18 de junho de 1960, com a abertura de concurso para obras, remodelação que lhe conferiu um ambiente mais classicizante. As quatro telas foram então removidas e transferidas para escolas recentemente criadas, facto comunicado ao pintor pelo Professor Calvet de Magalhães através do envio de uma fotografia da tela A Família com a anotação de ter sido oferecido à Escola Técnica Elementar Francisco Arruda em 9 de fevereiro de 19631. A visita a esta escola revelou-nos que, além desta pintura, amputada da metade superior, também aí se encontram duas outras obras com idêntica proveniência - O Ensino e Trabalhos da Terra. A quarta pintura proveniente do gabinete do Presidente do Conselho de Ministros, Trabalhos do Mar, foi enviada para a Escola Manuel da Maia, tendo sido repintada para alterar o que anteriormente era um nu frontal, considerado inapropriado para exposição no átrio desta escola.
Os projetos arquitetónicos, de cujo programa faziam parte as obras de António Soares, introduziram o Modernismo no novo Palácio da Assembleia Nacional, juntamente com os projetos do gabinete para reuniões do Conselho de Ministros e do gabinete do Presidente da Assembleia Nacional, da autoria de, respetivamente, Raul Lino e António Lino, com pinturas murais de Sousa Lopes, a primeira, e um friso a óleo sobre tela por Lino António, para a última. O mobiliário para estes gabinetes, em estilo art-déco, foi executado pela firma Móveis Olaio, tal como o dos gabinetes do Presidente da Câmara Corporativa e da presidência do Conselho de Ministros, nos quais António Soares colaborou, revelando a existência de um programa global e coerente nestas intervenções. Estes quatro espaços destacavam-se claramente da restante decoração do Palácio, na generalidade pobre e esparsa, e da opção predominante nas áreas públicas e outros gabinetes de menor hierarquia: paredes revestidas de damasco e réplicas de mobiliário português dos séculos XVII e XVIII. A colaboração do pintor na renovação do Palácio de S. Bento permaneceu quase esquecida e em grande parte ignorada, bem como a profunda marca de modernidade que conferiu, através das intervenções realizadas num período em que a arte e a arquitetura públicas tiveram um significativo incremento, ainda que associado a fins propagandísticos.
Joaquim de Oliveira Soares e Teresa Parra da Silva
Bibliografia
A.A.V.V., “Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Roteiro da coleção”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004.
A.A.V.V., “Dicionário de Pintura Universal. Pintura Portuguesa”, vol. III, Estúdios Cor, Lisboa, 1973.
A.A.V.V., “Modernismo Feliz: Art Déco em Portugal 1912-1960”, Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado, Lisboa, 2012.
Arquivo da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
Arquivo António Soares (propriedade dos sobrinhos do pintor)
Augusto, Artur, “Modernos Artistas Portugueses. António Soares”, Momento, s.l., s.d..
França, José Augusto, “A Arte em Portugal no século XX 1911-1961”, 2.ª ed., Bertrand, Lisboa, 1985.
- “100 Quadros Portugueses no século XX”, Quetzal, Lisboa, 2001.
Gonçalves, Rui Mário, “A Arte Portuguesa no século XX”, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010.
- “História da Arte em Portugal”, vol. 12, “Pioneiros da Modernidade”, Alfa, Lisboa, 1988
Pamplona, Fernando, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, vol. V, 2ª ed, Livª Civilização,1988.
Parra da Silva, Teresa, “A obra de António Soares no Parlamento”, in “Olhares: os estudos e os desenhos de António Soares”, exposição no 120.º aniversário do nascimento, Fundação Escultor José Rodrigues, Porto, 2014.
Pereira, Paulo (dir.), “História da Arte em Portugal”, vol. III, “Do Barroco à Contemporaneidade”, Temas e Debates, Lisboa, 1995.
[1] Manuel Maria de Sousa Calvet de Magalhães (1913-1974), importante pedagogo, dedicou grande parte da sua vida ao ensino artístico, com métodos inovadores de integração dos alunos, professores e da comunidade em que a escola se inseria. A Escola Francisco Arruda fora então transferida para um novo edifício, construído de raiz, na Calçada da Tapada em Lisboa.