Quem não conhece o toque de campainha de chamada para as aulas? No Parlamento a campainha também toca para a chamada.
Localizadas na Sala dos Passos Perdidos do Palácio de São Bento e nos corredores do Edifício Novo, onde estão instalados os gabinetes dos Deputados, as campainhas são acionadas por um botão na Mesa da Presidência, no Hemiciclo. O som ouve-se durante alguns minutos e nesse período as conversas tendem a diminuir. Os Deputados dirigem-se para a Sala das Sessões porque vão ter início as votações.
Atualmente a campainha toca apenas nesta situação - quando informa os Deputados de que o processo de votações vai começar -, mas nem sempre foi assim. Até ao final de 2022 a campainha tocava sempre duas vezes: para anunciar o início da Sessão Plenária e, tal como atualmente, para chamar os deputados para as votações. No entanto, inicialmente era utilizada para mais situações do que as duas referidas.
Mas desde quando existe a tradição de tocar a campainha no Parlamento?
A utilização da campainha, inicialmente sob a forma de sineta, é transversal a todas as épocas parlamentares, desde a Monarquia Constitucional ao Estado Democrático, passando pela Primeira República e pelo Estado Novo.
Os primeiros regimentos parlamentares instituem, desde logo, que a campainha toca para assinalar o início dos trabalhos e para a manutenção da ordem na sala.
Em 1837, na Monarquia Constitucional, o artigo 41.º do Regimento Interno das Cortes Constituintes da Nação Portuguesa refere que “Se a Assembleia tomar uma atitude tumultuária, o Presidente tocará três vezes a campainha e, se isso não bastar, cobrir-se-á interrompendo os trabalhos”.
Em 1876, o Regimento Interno da Câmara dos Senhores Deputados, no artigo 54.º, diz que “às doze horas da manhã se procederá à chamada e, estando reunidos os deputados em número suficiente, o Presidente, tocando a campainha, anunciará a abertura da sessão dizendo: «Está aberta a sessão»”. O mesmo documento, mantém, no artigo 101.º, que “se a discussão degenerar em desordem e o Presidente não poder reestabelecer a ordem, tendo tocado até três vezes a campainha, cobrir-se-á e dará os trabalhos por interrompidos ou por findos”.
A este propósito, em 1895, a revista O António Maria fazia uma paródia com a Presidência do Parlamento e vários sinos por ocasião da reconstrução da câmara dos deputados pelo arquiteto Ventura Terra, referindo que “demonstrada a inutilidade da campainha em tempo de trovoada parlamentar, virá o carrilhão de Mafra substituí-la”.
Apesar de não estar instituído no Regimento, inicialmente a campainha era utilizada também para sinalizar o final do tempo disponível para as intervenções, como mostram os registos das atas das sessões plenárias da Câmaras dos Deputados. “Como não tenho mais tempo, porque dizem que deu a hora antes de V. Exa. fazer soar o badalo fatal da campainha, por aqui me fico”, dizia o Deputado Hintze Ribeiro, a 18 de fevereiro de 1902. Já o Deputado Francisco José Machado terminava a sua intervenção na sessão de 24 de fevereiro de 1904, dizendo que “tinha ainda muito que dizer, mas não posso continuar, sinto-me fatigado. Além disso a hora regimental está a terminar e eu quando oiço a campainha presidencial, fico aterrado porque esse som produz-me um ataque nervos! (Risos). Portanto, para não ouvir cantar o badalo da campainha que é mais uma responsabilidade que eu atribuo ao Sr. Ministro da Fazenda, embora essa seja a menor, (Risos), vou terminar dizendo ao Governo que meta a mão na sua consciência”.
Na Primeira República, o Regimento da Assembleia Nacional Constituinte, aprovado em 1911, mantém a utilização da campainha para assinalar a abertura da sessão e para manter a ordem nos trabalhos parlamentares, nos artigos 21.º e 67.º, respetivamente.
Esta utilização continua a refletir-se em várias atas das sessões como a da sessão de 9 de dezembro de 1920, quando, perante o grande ruído e agitação na sala, o Deputado Eduardo Rosa se dirige ao Presidente: “melhor seria talvez, dado o ruído que há na Câmara, que V. Exa. em vez de agitar a campainha, empregasse uma buzina”.
Em 1926, no início do período do Estado Novo, o Parlamento é encerrado e só volta a reunir em sessão plenária da Assembleia Nacional nove anos depois. É então elaborado um novo Regimento que retira qualquer menção ao uso da campainha. No entanto, são várias as referências à sua utilização no Diário das Sessões da Assembleia Nacional.
Em 1949, o Deputado Mário de Figueiredo, na última sessão da legislatura, dirige-se ao Presidente da Assembleia Nacional: “não sei se V. Exa. acha que todos nesta Casa foram disciplinados à voz de V. Exa. e à sua campainha. Eu tenho a consciência de que nunca deixei de obedecer, mesmo quando V. Exa., guiado pelos ditames da função e sem consideração de pessoas nem de situações, algumas vezes, não direi me retirou, mas me suspendeu a palavra”.
Ainda na Assembleia Nacional, a 31 de março de 1955, o Deputado Rui de Andrade sobe à tribuna do orador para assinalar o centenário do nascimento do ditador João Franco, aludindo ao período parlamentar da Monarquia Constitucional:
“El-rei D. Carlos e João Franco atuaram numa época eivada daquelas ideias liberais, filhas das teorias da Revolução Francesa, consequentemente, num meio que os não podia compreender. Tentaram livrar-se delas valendo-se das modernas conceções filosóficas e políticas de onde surgiram depois os governos autocráticos de Mussolini e de Hitler. (…) Incompreendidos, todos se lhes puseram contra, os acoimaram de tiranos e os fizeram soçobrar. (…) Ao Parlamento vinham os Ministros, que eram constantemente interpelados e atacados a todo o momento. Sem trégua, o presidente Pizarro protestava, agitando a sua campainha, e as coisas chegaram a ponto que um mau dia teve de intervir a Guarda Municipal para expulsar os Deputados republicanos, que tinham insultado o rei”.
Em 1972, e apesar de continuar a não ser mencionada nos vários regimentos da Assembleia Nacional (1938, alterações em 1941 e 1975), a sineta manual foi substituída pela atual campainha de chamada, que se mantém há 50 anos. Instalada na Sala dos Passos Perdidos, a campainha passa a tocar apenas para chamar os Deputados para a sessão plenária. Alguns minutos antes do início da sessão, um dos Secretários da Mesa aciona a campainha através de um botão instalado na mesa da Presidência da Sala das Sessões, seguindo-se a verificação das presenças dos Deputados.
No atual período do Estado Democrático, quer o Regimento da Assembleia Constituinte, em 1975, quer os subsequentes regimentos da Assembleia da República (1977 e 1979) também não fazem referência à utilização da campainha.
No entanto, a tradição do toque de chamada para o início da sessão mantém-se, como mostra o Diário da Assembleia da República de 24 de novembro de 1977, em que o Presidente da Assembleia da República, António Arnaut, responde ao pedido do Deputado Carlos Brito para aguardar que os restantes deputados cheguem à sala, dizendo que “esperaremos mais alguns momentos. De resto, a campainha está já a tocar há cinco minutos.”
Mas o toque da campainha colmata também outra necessidade, a de chamar os deputados que se encontrassem fora do Hemiciclo aquando do início do processo de votações.
A importância deste procedimento é explicada na sessão de 27 de julho de 1979, pelo Deputado Carlos Lage, esclarecendo que “independentemente do resultado desta votação, o PS queria acentuar que em qualquer parlamento do mundo, quando se faz uma votação, toca-se a campainha e chamam-se os Deputados que por vezes não se encontram dentro da sala. Sucede que muitos dos Deputados que não se encontram presentes na sala estão a trabalhar em comissões. De qualquer maneira queremos também acentuar que estas sessões longas, que começam de manhã e terminam às 20 horas, conduzem a que alguns Deputados vão desentorpecer também muitas vezes as pernas para os corredores e toda a gente sabe que eles estão ali. Não custa nada tocar a campainha e convocar os Deputados, para que, por questões meramente circunstanciais, não se desvirtue a vontade política da Câmara”.
A 15 de janeiro de 1982, são aprovadas alterações ao Regimento da Assembleia da República, entre as quais a inclusão do ponto 3, no artigo 86.º, referindo que “Imediatamente antes da votação, salvo em questões de regularidade processual e de disciplina da reunião, o Presidente fará acionar a campainha de chamada.”
A partir daí, apesar de ser mencionada no Regimento apenas para assinalar o processo de votações, a campainha toca sempre duas vezes, porque continua a ser utilizada para chamar os deputados para o início da sessão.
Em 1986, a antiga Deputada Celeste Correia, Secretária da Mesa que habitualmente acionava a campainha, dizia em entrevista que “toda a gente se queixa que ela [a campainha] é muito agressiva, mas enquanto não houver outra é esta que eu tenho de utilizar”.
Ainda assim, a tradição de a campainha tocar duas vezes manteve-se durante 40 anos. A 4 de janeiro de 2023, a Conferência de Líderes delibera consensualmente “no sentido de eliminar o toque da campainha de chamada para assinalar o início das sessões plenárias”, mantendo-se a campainha “apenas para o efeito de chamada para o início de votações em Plenário, tal como referido no Regimento” (art.º 95, n.º 4).
Ana Óscar