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Em 1977, três anos após a Revolução de 1974, realiza-se na Assembleia da República a primeira sessão solene comemorativa do 25 de Abril.
Três anos marcados por um clima de tensão e instabilidade políticas, que se traduziu na constituição de seis governos provisórios entre maio de 1974 e julho de 1976 e em tentativas de golpes políticos e militares 1. Tempo também de consolidação da democracia, com a realização das primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, em 1975, e, um ano depois, a aprovação da Constituição e as eleições legislativas, presidenciais e autárquicas.
A Assembleia da República inicia os seus trabalhos no dia 3 de junho de 1976, com a seguinte composição:
Partido Socialista (PS) – 107 deputados
Partido Social-Democrata (PSD) – 73 deputados
Centro Democrático Social (CDS) – 42 deputados
Partido Comunista Português (PCP) – 40 deputados
União Democrática Popular (UDP) – 1 deputado
As intervenções na sessão solene de 1977 refletem o período revolucionário do pós-25 de Abril, entre consensos quanto à celebração do fim da ditadura e da conquista de direitos políticos e sociais, e cisões no respeitante ao modelo de democracia a instaurar em Portugal.
Além dos representantes dos cinco partidos com assento parlamentar, discursam ainda o Presidente da Assembleia da República, Vasco da Gama Fernandes, e o Presidente da República, Ramalho Eanes.
Acácio Barreiros (UDP) é o primeiro a usar da palavra, apresentando os três pontos fundamentais da sua política:
“Os ricos que paguem a crise;
Para que o povo seja livre há que reprimir os fascistas;
Imperialistas fora de Portugal.”
O Deputado da UDP começa por saudar os “capitães de Abril” e os “mártires e heróis da luta antifascista” para, de seguida, criticar o ataque às “liberdades e conquistas revolucionárias” e o regresso ao capitalismo, consequência do 25 de Novembro de 1975, um “golpe sobre o movimento popular, desde há muito tentado pelo grande capital e pelo imperialismo”. Critica ainda a “imprensa fascista”, pois “os fascistas não têm direito à palavra”, a ausência de punição dos agentes da PIDE e a política do PCP, que “semeia o medo de lutar, a vacilação e a divisão” e “que se arrasta atrás das exigências da burguesia”.
Acácio Barreiros termina com um apelo para que todos os democratas vençam o sectarismo, para, “nos caminhos da unidade” levarem o 25 de Abril para diante nas mãos do povo”.
Em representação do PCP, Octávio Pato manifesta “profunda alegria e legítimo orgulho [na] libertação da nossa pátria da odiosa ditadura fascista. Saúda também “os valorosos militares do 25 de Abril”, os antifascistas que, mesmo enfrentando a tortura e a morte, lutaram pela conquista da liberdade, mas também aqueles que, após a Revolução, se juntaram na construção da democracia portuguesa.
O Deputado comunista faz um balanço positivo dos três anos da Revolução de Abril, com a conquista de “amplas liberdades democráticas”, desde logo, na constituição de partidos políticos e de organizações populares e de trabalhadores. Destaca ainda as nacionalizações e a intervenção estatal nas empresas, assim como o processo da Reforma Agrária, o fim da guerra colonial, a melhoria das condições de vida e a democratização da educação e da cultura.
Octávio Pato aponta ainda “os perigos que ameaçam a democracia portuguesa”, como a readmissão de “fascistas notórios no aparelho do Estado e na magistratura”, as “perseguições e saneamentos de trabalhadores e técnicos progressistas”, a “entrega de empresas e terras a capitalistas e agrários sabotadores”.
Apesar das dificuldades, o PCP encara o futuro com confiança, pois “o 25 de Abril não se rende” e “em Portugal haverá 25 de Abril sempre”.
A terceira intervenção é do Deputado Sá Machado do CDS, que celebra o 25 de Abril, salientando o “projeto incómodo” do seu partido, por ser “divergente das várias mitologias que sucessivamente dominaram a Revolução”. Considera que a proposta do CDS, uma “alternativa não socialista, europeia e cristã-democrata”, contribui para consolidar a dimensão democrática da Revolução, alcançada no 25 de Novembro.
Sobre as conquistas da Revolução, o Deputado centrista destaca a devolução da soberania ao povo, a elaboração da Constituição por representantes eleitos, a consagração de direitos e liberdades, as eleições para a Assembleia da República e para Presidente da República e a abertura de Portugal “a todas as nações do mundo”.
Sá Machado considera que só a democracia dá sentido à Revolução, uma “forma de sermos (…) os herdeiros dignos e dignificados de uma língua e de uma cultura que são vínculos de fraternidade, de tolerância e convivência”.
Barbosa de Melo (PSD) começa por destacar a presença na sessão do Presidente da República, Ramalho Eanes, considerando que a reunião no mesmo “rito parlamentar” do Chefe de Estado e da Assembleia da República é um “sinal inequívoco de que à firme determinação coletiva do povo português para viver em democracia corresponde do lado dos seus representantes diretamente eleitos a decisão inabalável de em democracia enfrentarem e resolverem as dificuldades e problemas”.
O Deputado social-democrata avança três lições que se retiram da Revolução de 25 de Abril: “(…) A primeira tem a ver com o merecimento e o êxito da luta pela liberdade política. Gerações e gerações de resistentes e inconformados, sem deitar conta a renúncias e provações, a torturas e à morte, mantiveram o ânimo e a decisão de restituir a uma pátria oprimida a sua liberdade perdida. (…) O 25 de Abril foi o coroar desse calvário de coragem e de esperanças. (…)
A segunda lição tem a ver com a necessidade do funcionamento e eficiência dos sistemas políticos. (…) Foi quando se tornou clara a incapacidade do sistema para vencer uma crise nacional centrada numa economia bloqueada e numa guerra absurda e sem saída que o conjunto das forças armadas ganhou consciência e alento para o derrube. O braço armado da Nação pôde ser assim acionado eficazmente quando o regime se revelou incapacitado para resolver os problemas vitais do povo.
A terceira lição tem a ver com o sentimento de liberdade inerente ao Povo português. Os acontecimentos do 25 de Abril, na verdade, revelaram também que a opressão, sobre ser contra a natureza moral do homem, fere um sentimento espontâneo hoje muito caro aos Portugueses. (…)”
Salgado Zenha, em representação do PS, recorda o 25 de Abril como um movimento antifascista, que nunca, na sua visão, poderá ser “um fascismo ao contrário”. Rejeita a unanimidade imposta ditatorialmente, pois esta “está para a unidade tal como a opressão está para a democracia” e defende a construção de um “projeto comum realizado em liberdade e emergente da vontade popular”.
O modelo de democracia que advoga é o do “socialismo em liberdade”, com tolerância, sem tirania, sem despotismo, e tendo por base o sistema político aprovado pela Constituição de 1976:
“A esperança para nós, socialistas, é o socialismo em liberdade. Em liberdade porque não consentiremos que ela jamais desapareça da terra portuguesa. Liberdade é, antes de tudo, tolerância. Não há liberdade sem tolerância. (…) A liberdade só se instaura pelo exercício da liberdade. É um atentado à inteligência humana pretender-se que de um qualquer despotismo, mesmo que supostamente iluminado ou progressista, poderá um dia desabrochar a liberdade – espontânea e anestesicamente. A liberdade gera liberdade. A ditadura reproduz a ditadura.”
O discurso do Presidente da Assembleia da República, Vasco da Gama Fernandes, descreve os seus passos e as suas emoções na manhã do 25 de Abril:
“Na madrugada do dia 25 de Abril acordei estremunhado com a notícia de que o Exército se revoltara contra a ditadura e se propunha reintegrar Portugal na senda da civilização. Vesti-me à pressa e no fim da madrugada estava no único posto que me era acessível: a redação do jornal A República, velho baluarte indomável e indomado, que, verticalmente, se batera sempre pela dignidade cívica deste país.
Ao subir a minha rua íngreme até atingir a Escola Politécnica quase que me ia faltando o ar.
Sentia sobre o peito o peso de quase cinquenta anos de arbítrio, recordava-me, comovido, da minha vida e dos que eram como eu: uma mocidade sacrificada, muita dela frustrada, o rosário infinito das amarguras e das desilusões passadas pelos seus mortos e pelos que envelheceram na dura caminhada. Lembrei-me das cadeias, minhas e dos outros, as nossas deportações, os longos exílios, a odisseia das famílias, a dor dos amigos. Ao atingir o cimo da calçada, as lágrimas corriam-me pela cara e com elas as lágrimas dos que a mim se juntaram, conhecidos e desconhecidos, como se se tivessem aberto de par em par os gonzos das catacumbas. Seria possível? Teria chegado a hora? O que era aquilo? (…)
Irreversível vitória da liberdade (…)”.
Vasco da Gama Fernandes exalta ainda os feitos do país saído de quase 50 anos de ditadura e numa situação de fragilidade económica e geopolítica. Refere a descolonização, as eleições livres, a aprovação da Constituição e a instalação do I Governo Constitucional.
Deixa, finalmente, uma mensagem de esperança, desvalorizando os erros como “uma consequência natural de um crescimento impetuoso, partindo do zero e pesquisando as alturas”.
O Presidente da República, Ramalho Eanes, considera a sessão solene como “o ponto mais alto” das celebrações do 25 de Abril, referindo que a Assembleia da República “recebeu do povo o encargo de traduzir os ideais da Revolução na realidade concreta do dia a dia dos cidadãos”.
Eanes fala também no desencanto sentido por muitos ao fim de três anos de “hesitações e erros”, lembrando que é necessário retomar os compromissos firmados para renovar os “ideais de Abril”. Apesar dos conflitos políticos entre “forças empenhadas na democracia pluralista” e “forças interessadas em novas ditaduras”, Eanes valoriza o percurso dos últimos três anos e aponta o 25 de Novembro e a aprovação da Constituição como os motores para a construção do país “mais rico e mais igual”.
O Presidente da República, com aplausos gerais e com toda a Assembleia e toda a assistência de pé, termina o discurso com um apelo ao esforço de todos na consolidação da democracia:
“Vivemos a primeira oportunidade democrática em meio século. O esforço consciente de cada um fará desta oportunidade uma vitória do povo português e de Portugal.”
Com algumas exceções, desde 1977, a Assembleia da República realiza anualmente uma sessão solene comemorativa do 25 de Abril de 1974 2.
Teresa Fonseca
[1] A 28 de setembro de 1974, o confronto entre a designada “maioria silenciosa” de direita e a esquerda, apoiada pela Comissão Coordenadora do MFA, resulta na demissão do general Spínola do cargo de Presidente da República e no reforço do domínio político dos militares e da esquerda, que seria confirmado com o fracasso do golpe de 11 de março de 1975.
A vitória dos militares moderados na sublevação dos oficiais da extrema-esquerda no dia 25 de novembro de 1975 marca a derrota da “ala revolucionária” do MFA e reconduz os partidos políticos ao centro da vida política. Ramalho Eanes é uma figura central neste processo e viria a ser eleito Presidente da República no ano seguinte.
[2] Ver Folha informativa “Sessão Solene do 25 de Abril de 1974”.