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Só com a primeira revisão constitucional, em 1982, é criado o Tribunal Constitucional.
Assinalando-se, em 2023, os 40 anos da criação do Tribunal Constitucional, convém recordar que, embora atualmente a existência de um órgão com as suas funções e características possa parecer natural e indiscutível, nem sempre, ao longo da história constitucional portuguesa, foi assim, tal como não é, atualmente, assim em vários outros países.
Antes de 25 de Abril de 1974, se a Constituição de 1911 atribuía pela primeira vez ao poder judicial a obrigação de verificar a conformidade constitucional de normas, desde que invocada por qualquer das partes, a Constituição de 1933 determinava que os tribunais não poderiam aplicar leis, decretos ou quaisquer outros diplomas que infringissem o disposto na Constituição. Além disso, atribuía à Assembleia Nacional a competência de apreciação da constitucionalidade das normas legais e de definição dos efeitos dessa eventual inconstitucionalidade, tendo, a partir de 1971, passado a prever-se a possibilidade de, em casos específicos não reservados à Assembleia Nacional, a lei poder conferir aos tribunais a capacidade de apreciar a constitucionalidade de normas. Naturalmente, este instituto teve uma aplicação residual.
Por outro lado, na sua versão originária, a Constituição de 1976 também não contemplava a existência de um tribunal com estas características, embora previsse um órgão com competências específicas no âmbito da fiscalização da constitucionalidade – a Comissão Constitucional. Esta tinha, no entanto, aspetos que levam a que a generalidade da doutrina considere que não se tratava de um verdadeiro tribunal constitucional. Na verdade, embora tivesse funções jurisdicionais – já que lhe competia decidir em última instância sobre os recursos das decisões dos tribunais que recusassem a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade ou que aplicassem normas anteriormente julgadas inconstitucionais –, era também um órgão de consulta do Conselho da Revolução, junto do qual funcionava 1. Assim, cabia à Comissão Constitucional emitir parecer sobre a eventual inconstitucionalidade de diplomas já em vigor e dos decretos enviados ao Presidente da República para promulgação, bem como sobre a inconstitucionalidade por omissão. Mas a declaração da inconstitucionalidade era, em qualquer caso, sempre da competência do Conselho da Revolução.
Só com a primeira revisão constitucional, em 1982, a Lei Fundamental passa a prever a existência do Tribunal Constitucional. Os seus contornos exatos foram amplamente discutidos, sendo algumas das questões mais controversas as que se prendiam com a existência (manutenção) ou não da fiscalização preventiva e da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, com o regime de intervenção do Tribunal Constitucional na fiscalização concreta e com a própria composição deste órgão. No entanto, o Tribunal Constitucional só foi efetivamente criado com a aprovação da respetiva lei orgânica, ficando o processo concluído com a tomada de posse dos juízes, a 6 de abril de 1983.
A lei orgânica do Tribunal Constitucional 2 teve origem na Proposta de Lei n.º 130/II, baseada no projeto elaborado por dois professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Barbosa de Melo – que viria a ser Presidente da Assembleia da República – e Cardoso da Costa. Foi discutida na generalidade na sessão plenária de 7 de outubro de 1982, apresentada pelo então Ministro dos Assuntos Parlamentares, Marcelo Rebelo de Sousa, tendo o debate prosseguido na sessão plenária de 13 de outubro. Teve, portanto – até porque a própria lei de revisão constitucional assim o determinava –, um processo de discussão e aprovação muito célere, ainda que merecesse dois longos debates parlamentares, o último dos quais com intervenções dos Deputados António Vitorino (UEDS), José Manuel Mendes e Odete Santos (PCP), Jorge Miranda (ASDI), Almeida Santos (PS), Narana Coissoró (CDS), Mário Tomé (UDP) e Costa Andrade (PSD), para além do já citado Ministro dos Assuntos Parlamentares. Muito debatida, a proposta de lei foi aprovada com «profundas e significativas» alterações introduzidas na especialidade, como pode ler-se no relatório da comissão eventual criada para o efeito, presidida por António Almeida Santos – que viria também a ser Presidente da Assembleia da República –, e que teve apenas cerca de 10 dias para levar a cabo a discussão e votação. “No princípio era o caos legislativo. No fim é uma boa lei.”, diria Almeida Santos, em declaração de voto escrita apresentada aquando da votação final global.
Nessa previsão inicial, a Constituição dedicava ao Tribunal Constitucional apenas um artigo, relativo à sua composição, que, no essencial, se manteve inalterada: 13 juízes, sendo 10 eleitos pela Assembleia da República e 3 cooptados por aqueles, todos juristas de formação e devendo 6 ser juízes de carreira 3. Os mandatos eram então de 6 anos, só passando para a atual duração de 9 anos com a revisão constitucional de 1997, que simultaneamente introduziu a regra da não renovação, assim reforçando, no entender de muitos, as garantias de independência dos juízes constitucionais.
Mas antes disso, com a revisão constitucional de 1989, a Constituição passa a regular de forma mais extensa o Tribunal Constitucional, em título próprio, definindo-o como «o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional». Saliente-se que, neste ano, pela primeira vez, uma mulher – Maria da Assunção Esteves, que viria a ser também a primeira mulher Presidente da Assembleia da República – toma assento, como juíza, no Tribunal Constitucional 4.
A par das alterações do texto constitucional (embora não apenas em consequência destas), a lei orgânica do Tribunal Constitucional foi também sendo objeto de alterações – 10, até à data, a última das quais em 2022.
Esta Lei, de importância fundamental para o exercício de competências do Tribunal, estabelece os aspetos fundamentais da sua organização, estrutura e funcionamento, designadamente as relativas à forma de votação e designação dos juízes cooptados.
Muitas vezes designado como o “guardião da Constituição”, o Tribunal Constitucional tem visto o seu papel crescer, não se limitando à fiscalização da constitucionalidade (e da legalidade) das normas. De facto, tem também importantes competências relativamente ao Presidente da República (cabe-lhe, por exemplo, verificar o impedimento deste, seja a título definitivo ou temporário), em matéria eleitoral (designadamente julgando em última instância a regularidade e validade dos atos nesse processo), em relação aos partidos políticos (podendo inclusive determinar a sua extinção) e aos referendos. Além disso, é junto do Tribunal Constitucional que funcionam a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos e a recentemente criada Entidade para a Transparência.
Desde a sua criação, o Tribunal Constitucional proferiu milhares de decisões, muitas das quais no âmbito dos direitos fundamentais tutelados pela Constituição portuguesa, os quais têm adquirido uma crescente centralidade na sua jurisprudência.
Por outro lado, algumas das suas decisões são, naturalmente, alvo de elevada atenção mediática, uma vez que acabam por desempenhar um papel decisivo na relação jurídico-constitucional existente entre o Presidente da República e as maiorias responsáveis pela aprovação de legislação na Assembleia da República.
É interessante ainda atentar no caminho que está a ser trilhado por órgãos congéneres de outros países, como o Tribunal Constitucional federal alemão, que, numa decisão de 6 de novembro de 2019 (que ficou conhecida como “direito ao esquecimento II”), se considera (pela primeira vez) competente para julgar uma questão de direitos fundamentais exclusivamente à luz do direito da União Europeia, assim reconfigurando o seu papel na arquitetura jurídica europeia 5.
Maria João Godinho
[1] Aliás, na sequência da celebração do Primeiro e Segundo Pactos Constitucionais – celebrados entre o MFA e partidos com representação parlamentar após o 25 de Abril e antes da aprovação da Constituição –, a competência de fiscalização da constitucionalidade das normas cabia ao Conselho da Revolução, surgindo, no Segundo Pacto, a primeira referência à Comissão Constitucional.
[2] Aqui na sua versão consolidada atualmente em vigor.
[3] Exigia-se então que fossem juízes os 3 membros cooptados e 3 dos 10 eleitos pela Assembleia; atualmente, e desde a revisão constitucional de 1989, a Constituição exige apenas que 6 do total de 10 sejam juízes.
[4] Embora tivesse já havido uma mulher com funções jurisdicionais neste âmbito – Isabel de Magalhães Colaço foi membro da Comissão Constitucional.
[5] O Tribunal Constitucional Federal alemão fundamentou esta decisão no facto de estarem em causa normas plenamente harmonizadas e os cidadãos não poderem acionar diretamente o Tribunal de Justiça da União Europeia para fazer valer os direitos fundamentais previstos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, considerando ter também responsabilidade na integração europeia, prevista no artigo 23.º da Constituição federal.