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AS MULHERES NA CONSTITUINTE 1975-1976


Nas eleições realizadas a 25 de abril de 1975 para a Assembleia Constituinte, à qual competiria elaborar e aprovar a nova Constituição, foram eleitas 20 Deputadas, num total de 250 Deputados. Durante o período de funcionamento da Assembleia Constituinte 1, devido a renúncias ou substituições, 27 Deputadas assumiram funções, num universo total de 327 Deputados. Destas, 22 intervieram nas reuniões plenárias.


Mulheres festejam em Lisboa o 1.º de Maio de 1974, fotografia de Miranda Castela, Arquivo Fotográfico da Assembleia da República (AF-AR).

A existência de mulheres no Parlamento (Vai haver mulheres do Parlamento, como afirmou Cândida Parreira em 1934) não foi fruto da Revolução de 25 de Abril de 1974, mas tudo o mais foi, nomeadamente o número de eleitores e eleitoras recenseados e a forma como as eleições decorreram. Recorde-se que o recenseamento eleitoral de 1973 contava com cerca de 1 800 000 eleitores e para as eleições da Assembleia Constituinte, em 1975, recensearam-se mais de 6 230 000 pessoas, representando as mulheres 53% dos eleitores. De acordo com as leis eleitorais aprovadas, puderam votar os cidadãos portugueses de ambos os sexos, maiores de 18 anos e ser eleitos todos os cidadãos eleitores maiores de 21 anos. Foram as primeiras eleições livres e por sufrágio verdadeiramente universal. Contudo, a percentagem de mulheres eleitas alterou-se apenas ligeiramente, passando de 6% nas eleições realizadas em 1973 para a Assembleia Nacional para cerca de 8%.


Escrutínio das eleições para a Assembleia Constituinte na Fundação Calouste Gulbenkian, 25 de abril de 1975, fotografia de Miranda Castela, AF-AR.

A Comissão da Condição Feminina 2 chamou a atenção para esta situação 3, mencionando o facto de, nos quadros dos candidatos propostos por cada partido, as mulheres estarem em percentagem diminuta na concorrência com os homens, situação ainda agravada pela posição subalterna que ocupavam nas listas, sendo sistematicamente relegadas para os últimos lugares.

À subalternidade na representação, somou-se a subalternidade nas posições ocupadas nos órgãos parlamentares. Das 27 Deputadas que assumiram funções durante o período da Assembleia Constituinte, somente seis participaram em comissões e apenas Sophia de Mello Breyner Andresen presidiu a uma, a Comissão para a Redação do Preâmbulo da Constituição.



1. As Constituintes

As 27 mulheres que assumiram funções na Assembleia Constituinte de 1975-1976 foram eleitas pelos 4 maiores partidos políticos, com uma clara hegemonia da representação na esquerda política: 16 pelo PS, 5 pelo PCP, 5 pelo (atual PPD/PSD) e apenas 1 pelo CDS. As Deputadas eleitas candidataram-se em 11 dos 25 círculos eleitorais: 9 por Lisboa, 5 pelo Porto, 4 por Setúbal, 2 por Beja, tendo Aveiro, Braga, Évora, Funchal, Guarda, Viseu e Moçambique eleito 1 Deputada.


Deputadas da Constituinte: Alda Nogueira, Amélia Azevedo, Assunção Vitorino, Augusta Simões, Beatriz Cal Brandão, Carmelinda Pereira, Dália Ferreira, Emília de Melo, Etelvina Lopes de Almeida, Fernanda Peleja Patrocínio, Fernanda Seita Paulo, Georgette Ferreira, Helena Roseta, Hermenegilda Pereira, Laura Cardoso, Maria da Conceição Rocha dos Santos, Maria Helena Carvalho dos Santos, Maria Hélia Câmara, Maria José Sampaio, Maria Pilar Barata, Maria Rosa Gomes, Nívea Cruz, Raquel Franco, Rosa Rainho, Sophia de Mello Breyner Andresen, Teresa Vidigal e Virgínia Ferreira (AF-AR).

As parlamentares tinham entre os 24 e os 61 anos, registando-se uma média de idades de 39. Apenas 9 das Deputadas eleitas detinham o grau de licenciatura (3 em Filologia Germânica e as restantes em Filologia Românica, Direito, Ciências Físico-Químicas, Arquitetura, Ciências Geológicas e Ciências Matemáticas), 8 Deputadas tinham cursos médios ou frequência universitária, 4 o ensino secundário e as restantes outras habilitações (frequência do liceu, ensino preparatório ou ensino primário).

Relativamente às profissões, regista-se uma predominância do setor da educação e da cultura: 4 professoras do ensino secundário, 2 professoras do ensino primário, 1 regente escolar da primária, 1 professora do ensino superior, 2 escritoras, 1 conservadora de museu, 1 tradutora e 1 bibliotecária. A par de 2 domésticas, 2 funcionárias públicas e de 2 operárias, a Assembleia Constituinte contou ainda com 1 arquiteta, 1 geóloga, 1 informática, 1 engenheira técnica, 1 promotora de vendas, 1 empregada de escritório, 1 funcionária de partido político e 1 estudante 4.

Num conjunto heterogéneo de mulheres, de diferentes classes sociais, com habilitações e profissões distintas e comprometidas com os seus partidos políticos, não será surpreendente que as Deputadas tenham falado “de quase tudo”.

Falaram de si próprias, naturalmente, da condição da mulher, espelhada desde logo na composição do primeiro Parlamento eleito em democracia. Mas falaram também da política nacional, dos problemas que afetavam os círculos eleitorais que as elegeram, das suas atividades laborais ou das suas áreas de especialidade.

Estiveram presentes nos debates em Plenário sobre o articulado da Constituição, na discussão de direitos sociais, laborais e culturais, pronunciando-se também nas matérias relativas à organização económica, à organização do poder político, ao ordenamento do território ou à autonomia dos Açores e da Madeira.

núvem

"Nuvem de palavras” com os temas abordados pelas Constituintes.



2. A igualdade no trabalho parlamentar

“Tenha a bondade, minha senhora.”

Vasco da Gama Fernandes, Presidente da Assembleia Constituinte.




Se a emancipação da mulher era uma longa luta que não cabia na Constituição, como dizia a Deputada Rosa Rainho, também não coube no Hemiciclo da Assembleia Constituinte.

As mulheres, em clara minoria, estavam no mundo dos homens.

Exemplo disso foi a dificuldade de a praxis parlamentar se adaptar a uma participação feminina em termos igualitários.

Desde logo, na diferença de tratamento frequente: para os homens “Sr. Deputado”, para as mulheres “Minha senhora”. Nas atas da 1.ª Comissão, os Deputados são indicados pelo nome, a única Deputada que integra esta Comissão, Alda Nogueira, licenciada em Físico-Químicas, aparece com o nome precedido de um D. (Dona? Deputada?).


Sessão inaugural da Assembleia Constituinte, 2 de junho de 1975, fotografia de Miranda Castela, AF-AR.

O Presidente Vasco da Gama Fernandes protagoniza algumas situações de quase embaraço. Ao dar a palavra à Deputada Emília de Melo, hesita entre “A Sra. Deputada ou o Sr. Deputado”, provocando risos na Assembleia. E justifica-se:

“É que não sei bem como hei de dizer. Não se pode chamar poetisa, agora chama-se a poeta.”

Na sessão de 8 de outubro de 1975, ocorre o melhor exemplo desta desadequação, num diálogo travado entre o Presidente Vasco da Gama Fernandes e a Deputada Helena Roseta, em que intervém ainda o Deputado Vital Moreira.

Perante um pedido de Helena Roseta para usar da palavra, o Presidente responde:

O Sr. Presidente: – Minha senhora, tenho muita pena. Eu pelo menos não considero como um pedido de esclarecimento a intervenção do Sr. Deputado Vital Moreira.”

Helena Roseta insiste no direito a usar da palavra, ao que Henrique de Barros responde:

O Sr. Presidente: – Custa-me tanto dizer que não a uma senhora! Mas a verdade, minha senhora, desculpar-me-á, eu não considerei a intervenção do Sr. Deputado Vital Moreira como um pedido de esclarecimento.”

Vital Moreira entra no debate, defendendo que qualquer Deputado tem direito a fazer um pedido de esclarecimento. De seguida, o Presidente reconsidera e dá a palavra à Deputada: “Tenha a bondade, minha senhora, desculpe.”

Depois de agradecer, Helena Roseta diz que não se trata de ser Deputada ou Deputado, mas sim de cumprir o Regimento.

O Presidente pede então desculpa pela sua atitude, perante os risos do Hemiciclo:

O Sr. Presidente: – Minha senhora, só tenho a pedir desculpa deste gesto de marialva, que não tem nada...

Risos.

... que não tem outra intenção senão prestar a minha homenagem, a mais sentida e a mais respeitosa, a todas as mulheres portuguesas.

Tenha a bondade de continuar, minha senhora.”

Marialvismo, ou talvez antes cavalheirismo próprio de uma geração, patente também no relato que o Presidente Vasco da Gama Fernandes faz da sua visita ao Parlamento da República Federal da Alemanha. Após referir a sua surpresa em encontrar mulheres em altos cargos do Estado, nomeadamente no Parlamento, em que a Presidente e duas Vice-Presidentes eram senhoras, relata o cumprimento que fez à Presidente do Bundestag na despedida:

“Quero terminar dizendo que entre as coisas que mais me surpreenderam na Alemanha foi a posição da mulher nos altos cargos do Estado. Posso dizer simplesmente que a presidente do Bundestag é uma senhora, dois vice-presidentes são duas senhoras, que as mulheres ocupam um lugar da maior importância na política alemã. Digo isto com um bom cumprimento às minhas ilustres colegas presentes nesta Assembleia.


E já agora, para terminar, posso dizer-vos para se irem habituando à ideia – os que forem à Alemanha – de que a pergunta sacramental que fazem no fim de qualquer encontro, seja ele qual for, por mais formal que seja, é: «Com que impressão fica você deste encontro que acabamos de ter?» Isso aconteceu com a Sr.ª Presidente do Bundestag, e eu disse:

Minha senhora, além de agradecer as gentilezas que teve para com o meu país, quero assegurar-lhe uma coisa: é que se a Presidência e a Assembleia Nacional de Portugal fosse presidida por uma mulher tão bonita, em vez de 250 Deputados teríamos 500.”

Como já referido anteriormente, a temática feminina provocava risos, como aqueles denunciados pela Deputada Alda Nogueira (PCP) no debate sobre a introdução do artigo “Igualdade da mulher” no texto constitucional. Segundo a parlamentar, esses risos justificavam, por si só, a necessidade de consagrar esse princípio da igualdade na Lei Fundamental.

Também Maria Rosa Gomes (PS) denuncia o conservadorismo demonstrado pelo seu companheiro de bancada José Luís Nunes, ao classificar a sensibilidade de Francisco Sá Carneiro como “quase feminina” 5:

Maria Rosa Gomes (PS): – Mas veja-se, pelo exemplo seguinte, como necessitam de permanente atenção todos os militantes dos partidos democráticos de esquerda. Repare-se como até o nosso camarada José Luís Nunes – de cujo autêntico companheirismo temos vastas provas – cedeu à facilidade atávica, reflexo do meio conservador e puritano em que quase todos fomos educados, ao confessar-se tentado a comparar, numa sua recente intervenção, a sensibilidade do Dr. Sá Carneiro à sensibilidade feminina.

Risos.

Uma voz: – É elogioso. Para o Sá Carneiro é elogioso.

A Oradora: – O que não foi, certamente, um elogio à nossa sensibilidade!

Risos.”



3. As mulheres no texto constitucional aprovado

A Constituição da República Portuguesa de 1976, cujo articulado no essencial ainda se mantém hoje, foi fruto do debate aceso e inflamado que decorreu na Assembleia Constituinte. Apesar dos protagonistas parlamentares, da qualidade e da importância do trabalho e dos debates que decorriam nas comissões parlamentares e sobretudo no Hemiciclo, o palco noticioso era ocupado pelos acontecimentos que se sucediam vertiginosamente no exterior, podendo parecer a quem tenta ler o país à distância dos anos e através dos jornais da época, que o que se passava dentro das paredes do Palácio de São Bento 6 era secundário ou pouco relevante.

Contudo, lá dentro, os trabalhos prosseguiam, tendo sido concluídos a 2 de abril de 1976 com a aprovação da Constituição. No texto constitucional, dois artigos falam expressamente em mulheres, a propósito da proteção do trabalho das mulheres durante a gravidez e após o parto (artigo 54.º) incluindo a previsão específica do direito a um período de dispensa do trabalho antes e depois do parto (artigo 68.º). O princípio da igualdade prevê que ninguém possa ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão do sexo (artigo 13.º) e outros dois artigos (52.º e 53.º) proíbem discriminações em matéria de direito ao trabalho e dos trabalhadores em função do sexo.

Um resultado a meio caminho entre a ambição maior de alguns projetos de Constituição apresentados e a contenção de outros, mas para o qual foram fundamentais o debate realizado e a participação das mulheres eleitas.

Adaptado de:

Ana Vargas e Teresa Fonseca – “De que falam as mulheres? As intervenções das Constituintes de 1975-1976”, in Ana Paula Pires, Fátima Mariano e Ivo Veiga (coord.) – Mulheres e eleições, Coimbra, Almedina, 2019, p. 109-139.

[1] Os trabalhos da Assembleia Constituinte tiveram a duração de dez meses, entre 2 de junho de 1975 e 2 de abril de 1976.

[2] A Comissão da Condição Feminina, criada em 1975, sucedeu à Comissão para a Política Social Relativa à Mulher, que havia sido criada em 1973, e tinha como competência a elaboração de estudos e o apoio técnico para o problema do trabalho das mulheres. A institucionalização e estruturação orgânica da Comissão da Condição Feminina só ocorreram em 1976, após a aprovação da Constituição.

[3] Referia o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 621-A/74, de 15 de novembro, o seguinte: “A elaboração de um recenseamento, em tão curto prazo, onde deverão ser inscritos mais de 5 500 000 eleitores - enquanto o de 1973 tinha cerca de 1 800 000 - somente será viável, porém, se se transformar, sob o impulso dos partidos políticos, como o espera e deseja o Governo Provisório, numa jornada cívica à escala nacional”.

[4] Duas Deputadas do PPD passaram a Independentes.

[5] “Em questões de social-democracia, o nosso inefável Dr. Sá Carneiro possui uma sensibilidade que, se não fosse o período de libertação que atravessamos, diríamos ser, pelo menos, quase feminina.” DAC, n.º 119, 13 de março de 1976, p. 3928.

[6] Também em sede dos direitos das mulheres, várias alterações foram ocorrendo através de leis ordinárias: abertura às mulheres das carreiras da magistratura judicial e do ministério público e dos quadros de funcionários da justiça, carreira diplomática, a todos os cargos da carreira administrativa local; alteração do artigo XXIV da Concordata, passando os casamentos católicos a poder obter o divórcio civil; abolição do direito do marido abrir a correspondência da mulher; revogação de disposições penais que reduziam penas ou isentavam de crimes os homens, em virtude das vítimas desses delitos serem as suas mulheres ou filhas.