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A VIGÍLIA DA CAPELA DO RATO (1972)



Há 50 anos, a 30 de dezembro de 1972, um grupo de católicos, a que se associaram não católicos, organizou uma vigília de 48 horas, na Capela do Rato, em Lisboa, para meditar sobre a paz e a situação vivida nas guerras coloniais.

No dia seguinte, os participantes aprovam uma moção onde se repudia a política do Governo de “prosseguir uma guerra criminosa com a qual tenta aniquilar movimentos de libertação das colónias” e denuncia a “cumplicidade da hierarquia da Igreja Católica face a esta guerra”.

Ao final do dia, a vigília é interrompida pelas forças policiais e os participantes são conduzidos à esquadra local, sendo que 14 permanecem detidos durante duas semanas na prisão de Caxias. Os funcionários públicos presentes são alvo de processos de demissão, conforme decidido em Conselho de Ministros.


Ilustração de Sofia Cavaleiro.

Em janeiro de 1973, os acontecimentos da Capela do Rato têm repercussões na Assembleia Nacional, dando origem a um debate aceso entre o Deputado Casal-Ribeiro, a favor do regime, e o Deputado Miller Guerra da Ala Liberal, que, em defesa da liberdade de pensamento e de expressão, acabaria por renunciar ao cargo no mês seguinte.

A primeira referência ao assunto é de Casal-Ribeiro, na sessão de 15 de janeiro, que condena a organização da vigília, que considera uma ofensa às Forças Armadas, “cuja abnegada missão no Ultramar consiste em manter a integridade nacional”.

Um dia depois, o Deputado Sá Carneiro apresenta um requerimento ao Governo, onde pede esclarecimentos acerca do caso da Capela do Rato.

Na sessão de 17 de janeiro, o Deputado Castelino e Alvim apresenta a versão do Governo:

“1. A reunião na Capela do Rato iniciou-se após a missa vespertina das 19 horas e 30 minutos de sábado, 30 de dezembro, quando um grupo de indivíduos anunciou que ficava a ocupar o templo até ao dia 1 de janeiro, à tarde, "sem tomar qualquer alimento”, para refletir sobre a mensagem pontifícia acerca da paz, mas incluindo desde logo nessa reflexão a intenção de discutir a defesa da Guiné, de Angola e de Moçambique.

Tal intenção foi manifestada igualmente em panfletos sob o título "Tornar a paz possível", distribuídos nos dias 30 e 31 à porta de várias igrejas de Lisboa e do sul do Tejo, bem como naqueles que numerosos petardos, explodidos em vários pontos da cidade no dia 31 e ferindo três crianças gravemente, espalhavam. Nestes panfletos, intitulados "Greve da fome contra a guerra colonial", começava-se por anunciar: "Neste momento, na capela da comunidade do Rato, cristãos fazem a greve da fome, alertando as consciências contra a guerra colonial."

2. A intervenção policial na reunião processou-se pela forma mais correta, às 20 horas e 30 minutos de domingo, 31 de dezembro.

Quer dizer que, durante vinte e quatro horas, a reunião teve lugar (verdade seja que com escassa concorrência), discutindo os participantes, não espontaneamente, como dizem, mas sobre a base de um documento de dezoito páginas dactilografadas, editado por "Capela da JEC – Calçada de Bento da Rocha Cabral, 1-B, Lisboa", e que, além da mensagem de Paulo VI, contém outros textos, alguns de pura política interna, o último dos quais gravemente atentatório da dignidade de Portugal e incitando por vários meios à boicotagem da defesa do Ultramar.

Durante a reunião foram feitas afirmações políticas contrárias à integridade da Nação, votadas moções no mesmo sentido, aplaudidos documentos dimanados dos inimigos de Portugal, insultadas as forças armadas.

Não tendo havido durante esse longo espaço de tempo intervenção da autoridade eclesiástica e existindo justo receio, após a explosão das bombas e a larga difusão dos panfletos, de que a situação se agravasse, a Polícia de Segurança Pública tomou precauções, pelas 20 horas do dia 31, no exterior da capela, e meia hora depois mandou dissolver a reunião.

Estava no seu direito. Os templos são lugares sagrados na medida em que sejam consagrados ao culto divino. Mas desde que passem a ser utilizados como recintos de concertos, salas de espetáculo ou locais de debates políticos têm de ficar sujeitos às normas de policiamento dos lugares públicos para o caso de quem neles tenha jurisdição não ser capaz de fazer observar a legalidade.

3. O oficial da PSP, que entrou sozinho na capela, ordenou a dissolução da reunião e deu prazo de dez minutos para a sua ordem ser executada. Não o foi. Nessas condições houve que deter os dirigentes da reunião, por desobediência. Os presentes quiseram acompanhar os detidos. Todos foram identificados na vizinha esquadra do Rato, com a rapidez possível, mantendo-se a captura dos dirigentes e de mais algumas pessoas que desacataram ou insultaram as autoridades, dos quais, pouco depois, foram libertados uns poucos pela sua menor idade e irresponsabilidade.

A detenção manteve-se, quanto aos considerados dirigentes e promotores da reunião, em virtude de serem suspeitos de autoria moral ou de cumplicidade na colocação e rebentamento das bombas que no dia 31 alarmaram a população e causaram graves ofensas corporais a três crianças.

4. Os funcionários públicos têm especiais deveres de lealdade para com o Estado que servem, donde resulta uma particular relação de dependência dos seus órgãos administrativos. No caso presente, o Conselho de Ministros considerou dever aplicar o decreto-lei n.º 25 317, de 13 de maio de 1935, que lhe permite, independentemente de processo disciplinar, demitir ou aposentar os funcionários, por se tratar aqui de pessoas surpreendidas em flagrante delito.

Na verdade, a reunião em que tomaram parte está perfeitamente averiguada e caracterizada, estando no dia 31 à tarde as paredes da capela cobertas de cartazes subversivos e encontrando-se sobre os seus bancos os panfletos atrás mencionados. A identificação das pessoas presentes foi feita ato contínuo à dissolução da reunião.

Os funcionários assim surpreendidos em flagrante delito, numa ação gravíssima contra os interesses da Nação e atentatória dos princípios constitucionais, tinham de ser rapidamente punidos. A lei, aliás, faculta-lhes recurso gracioso para o próprio Conselho de Ministros.”


Miller Guerra, Arquivo Fotográfico da Assembleia da República (AF-AR).




Casal-Ribeiro, AF-AR.

Na sessão de 23 de janeiro, Miller Guerra afronta Casal-Ribeiro:

“Como pode a Igreja ser livre num Estado que coarta a liberdade de pensamento e de expressão?

Os acontecimentos da Capela do Rato, que fizeram estremecer a consciência de numerosos católicos e não católicos, responderam à pergunta.

(…)

É aqui, nesta terra glorificada pela fidelidade à Igreja, que, no dia 31 de dezembro, os católicos reunidos numa capela para discutirem a justiça, a paz e a guerra são expulsos do templo…

O Sr. Casal-Ribeiro: – Eu estava a perguntar a V. Ex.ª se acha bem e se concorda que na Igreja, ou em qualquer outro sítio, se discutisse ou se discuta a legitimidade da presença de Portugal no Ultramar.

O Orador: – Ora aí está uma pergunta objetiva e concreta e a que eu respondo também objetiva e concretamente: Acho, sim senhor. Não só na Igreja, como em qualquer outra parte.”

Na sessão seguinte, já sem a presença de Miller Guerra, o Deputado Agostinho Cardoso manifesta o seu “profundo pesar” pelas posições do Deputado da Ala Liberal e classifica a vigília da Capela do Rato como “uma reunião política anticonstitucional e antinacional proibida pelas leis do país.”

Após a renúncia de mandato de Sá Carneiro, Miller Guerra, a 7 de fevereiro, anuncia idêntica decisão, “desesperançado que a [sua] voz seja ouvida” contra “os abusos da censura prévia” de um regime que considera “autocrático e reacionário”.

O último discurso de Miller Guerra na Assembleia Nacional, pela sua crítica aberta ao sistema político, é marcado por interrupções, apartes e advertências do Presidente do Parlamento.

“No dia 23 de janeiro último fiz uma intervenção subordinada ao título "Os acontecimentos da capela do Rato", de que provavelmente VV. Exas. não se esqueceram.

O Sr. Henrique Tenreiro: – Muito tristemente!

O Orador: – Os jornais e a rádio foram obrigados a dar a notícia de tal modo que o público ficou com curiosidade de saber o que verdadeiramente se passara.

O Governo quis que o País fosse mal informado. E foi.

(…)

A minha intervenção focava um ponto nevrálgico da vida nacional: a liberdade de palavra e de reunião sobre uma matéria que preocupa justificadamente o povo português – a paz. Defendi, e continuo a defender, que qualquer assunto deve ser apreciado e discutido por todos aqueles a quem diz respeito.

Vozes: – Não apoiado! Não apoiado!

O Orador: – Levantei a questão a propósito dos católicos, mas pode e deve levantar-se para os adeptos de todas as crenças religiosas, ideologias políticas ou correntes de opinião.

A paz, a verdadeira paz é fruto da liberdade dos cidadãos, e de forma nenhuma o resultado da política imposta pelo grupo que está no Poder.

(Muitas vozes discordantes interrompendo o orador.)

O Sr. Presidente: – Srs. Deputados: Quantas vezes será preciso a Mesa pedir-lhes o favor de deixarem o orador concluir as suas considerações com serenidade?

A matéria é grave, não ganha com interrupções sucessivas, as posições de muitos de VV. Exas. são conhecidas, não aumentam nem se acrescentam com novas interrupções, e a Mesa deseja que a intervenção vá até ao fim com serenidade.

O Orador: – Então, Srs. Deputados, eu continuo: A paz, a verdadeira paz...

Vozes: – Não apoiado!

O Sr. Casal-Ribeiro: – Protesto...

O Sr. Presidente: – Sr. Deputado Casal-Ribeiro: Em que termos há de a Mesa explicar-se?

O Orador: – A paz, a verdadeira paz é fruto da liberdade dos cidadãos, e de forma nenhuma o resultado da política imposta pelo grupo que está no Poder.

(…)

Suprimido o direito ao desacordo e à oposição, a repressão torna-se sempre necessária porque sem ela o Regime sente-se constantemente ameaçado. O Poder monopoliza a política, reservando-a ao partido único, outrora a União Nacional, hoje a sua sucessora, a Ação Nacional Popular.

Vozes: – Não apoiado!

O Orador: – Entrega a vigilância da pureza intelectual da doutrina ao aparelho de censura, agora chamado exame prévio, e a vigilância da ordem política a um corpo especial de polícia, antigamente denominada PIDE e hoje DGS.

Vozes: – Não apoiado!

O Sr. Casal-Ribeiro: – V. Exa. esquece que o País está em guerra!

O Orador: – Coordenando e justificando este complexo de meios e métodos, está a ideologia que impregna todas as facetas da vida social e individual – uma conceção totalitária imperativa fora da qual não há vida cívica nem verdade.

Discutir a doutrina do Estado equivale a abrir uma brecha por onde penetram os princípios dissolventes do sistema inteiro.

O Sr. Casal-Ribeiro: – Por onde V. Exa. penetrou.

O Orador: – À medida que o tempo avança, os fatores de desagregação acumulam-se, porque cada vez se torna mais clara a singularidade de um regime autocrático-reacionário num mundo que se transforma, adotando outras formas de relações sociais.

Vozes: – Não apoiado, não apoiado!

(Várias vozes expressando desacordo interrompem o orador.)

O Sr. Presidente: – Sr. Deputado Miller Guerra: peço a atenção de V. Exa. Um dos direitos e deveres da Presidência é advertir os Deputados quando os seus discursos se tornarem ofensivos.

V. Exa. está usando de termos ofensivos para com o Governo deste País.

Não posso permitir que continue.

O Orador: – A intolerância atinge o auge...

O Sr. Presidente: – Sr. Deputado, V. Exa. deseja que eu lhe retire a palavra?

O Orador: –... Quando se toca, mesmo de longe, nos pontos centrais: a natureza do Regime, a estrutura política ou o poderio económico.

(Vozes diversas interrompem o orador)

O Orador: – Estamos vendo a liberdade que existe...

O Sr. Casal-Ribeiro: – Se não houvesse liberdade, V. Exa. não estaria aqui.

O Sr. Henrique Tenreiro: – Nem teria a liberdade de proferir as palavras que está proferindo.

O Orador: – (…) O espírito liberal está provisoriamente subjugado; mas um dia renascerá. Entretanto, é preciso manter a atitude inquebrantável de protesto. Como diria Hegel, as derrotas da razão agem como triunfos na dialética da História.

E, com isto, Sr. Presidente e Srs. Deputados, despeço-me de VV. Exas. Peço a renúncia do mandato.”

Após a Revolução de 25 de Abril, Miller Guerra voltaria ao Parlamento, na sequência das eleições de 1975 para a Assembleia Constituinte.