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A 23 de setembro de 1822, é aprovada a primeira Constituição portuguesa, que consagra os princípios ligados aos ideais liberais da época: representação, separação de poderes, igualdade jurídica e respeito pelos direitos pessoais.
A Constituição compõe-se de 240 artigos e divide-se em seis Títulos, sendo os dois primeiros quase idênticos às secções constantes das Bases da Constituição. Segue-se o Título III “Do Poder Legislativo ou das Cortes”, que é o mais extenso, ocupando 88 artigos, o Título IV “Do Poder Executivo ou do Rei”, que se ocupa do Rei, da sucessão, dos Secretários e do Conselho de Estado, o Título V “Do Poder Judicial” e, finalmente, o Título VI “Do Governo Administrativo e Económico”.
Distintamente de outras constituições europeias anteriores, como as francesas ou a de Cádis, que, respetivamente, não incluíram os direitos humanos no texto constitucional ou fizeram-no de forma dispersa ao longo do articulado, a Constituição de 1822 consagra um amplo conjunto de direitos no Título I – “Dos Direitos e Deveres Individuais dos Portugueses”, muito próximo do disposto na Seção I das Bases da Constituição. Imbuído do espírito liberal, o artigo 1.º estatui que “a Constituição política da Nação Portuguesa tem por objeto manter a liberdade, segurança e propriedade de todos os Portugueses”.
O artigo 2.º dispõe que “A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exata observância das leis”, numa redação mais ampla da que constava nas Bases da Constituição que, na primeira parte, se limitava a afirmar que “A liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei não proíbe”. Mais à frente, a livre comunicação dos pensamentos é reconhecida como um dos mais preciosos direitos do homem (artigo 7.º) e as Cortes são incumbidas de nomear um Tribunal Especial para proteger a liberdade de imprensa (artigo 8.º).
O artigo 5.º determina que “a casa de todo o Português é para ele um asilo. Nenhum oficial poderá entrar nela sem ordem escrita da competente Autoridade (…)”, seguindo-se a fixação de outros princípios, como o da igualdade perante a lei (artigo 9.º) e a proporcionalidade entre a pena e o delito (artigo 11.º), sendo abolida a “tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis ou infamantes.”
O artigo 16.º institui o direito de todos os portugueses poderem apresentar às Cortes e ao poder executivo reclamações, queixas ou petições "que deverão ser examinadas".
Apesar de incluir de forma inovadora um amplo elenco de direitos, cuja enumeração não se restringe ao título inicial, a Constituição aceita a escravatura, não reconhecendo aos escravos a cidadania portuguesa (artigo 21.º, IV).
O Título II – “Da Nação Portuguesa, seu Território, Religião, Governo e Dinastia”, começa por definir a nação portuguesa como a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios. Mantém a Religião Católica Apostólica Romana como religião da nação portuguesa e a casa de Bragança como a dinastia reinante.
Dispõe que a “soberania reside essencialmente na Nação. Não pode, porém, ser exercitada senão pelos seus representantes legalmente eleitos" (artigo 26.º), ou seja, pelos deputados das Cortes. Os três poderes políticos, legislativo, executivo e judicial, residem, respetivamente, nas Cortes, com dependência da sanção do Rei, no Rei e nos Secretários de Estado e nos Juízes e são “de tal maneira independentes, que um não poderá arrogar a si as atribuições do outro” (artigo 30.º).
O Título III – “Do Poder Legislativo ou das Cortes” é o mais extenso, porque regula em pormenor o sistema e o processo eleitoral.
Determina a Constituição que não podem votar para as Cortes, os filhos-famílias que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem cargos públicos, os criados de servir, os vadios, os membros de ordens religiosas e os que, tendo menos de 17 anos quando se publicou a Constituição, não saibam ler e escrever quando chegarem aos 25 anos. Entre os inelegíveis, incluem-se os que não têm renda suficiente para se sustentar, procedida de bens de raiz, de comércio ou de emprego, os falidos e os libertos em país estrangeiro.
Não foi necessário mencionar as mulheres como não podendo votar ou ser eleitas, porque nem sequer entre elas havia essa reivindicação ou expetativa. Ainda em 1822, na Câmara dos Deputados, o Deputado Castelo Branco dirá que “seria uma coisa nova que a nossa Constituição definisse os casos em que as mulheres devem ser consideradas cidadãs; quando é uma regra sabida que elas, não tendo acesso aos cargos e empregos, seguem sempre a condição do homem a que pertencem, ou pai ou marido, e que a mulher se reputa sempre cidadã do país de que é o homem a que vive sujeita”.
Só anos mais tarde, no início do século XX, surgirão em Portugal os movimentos sufragistas.
Durante a discussão houve quem propusesse que também os jornaleiros e oficiais de ofícios que não têm lojas, entre outros, não tivessem direito de voto tendo esta proposta sido objeto de aceso debate, que se concluiu, com a rejeição, no dia 19 de abril de 1822.
“O Sr. Borges Carneiro: - Eu à vista desta indicação não posso deixar de pasmar, porque cuidava até agora que queríamos fazer uma Constituição liberal, mas por esta indicação vejo que se quer fazer o contrário; pois que se ela se adotar não hão de vir às Cortes senão áulicos, fidalgos, toda esta qualidade de gente. Pois nós depois de termos excluído tanta gente, criados de servir, e menores de vinte e cinco anos, ainda depois de todos estes havemos de excluir a melhor parte da Nação?”
“O Sr. Fernandes Tomás: - (…) O Congresso privando os trabalhadores de votarem nas eleições, ia pôr a Nação Portuguesa em pior estado do que estava antes de se estabelecerem as eleições diretas; por este modo qualquer cidadão português não gozará do direito mais preciso que o homem pode ter na sociedade, que é o de escolher aquele que o há de representar. Se se admite o rico a votar porque há de ser excluído o que não tem nada?”
Além da competência legislativa e de controlo dos membros do executivo, as Cortes dispõem de poderes relativamente ao rei e à família real, bem como às forças armadas.
De acordo com o artigo 94.º, "cada Deputado é procurador e representante de toda a Nação, e não o é somente da divisão que o elegeu".
A iniciativa de lei pertence em exclusivo aos deputados, através de projetos de lei, podendo, no entanto, os Secretários de Estado apresentar propostas de lei que, depois de examinadas por uma comissão das Cortes, podem ser convertidas em projetos de lei. Os Secretários de Estado não podem assistir aos debates em nome do Rei e se, chamados pelas Cortes, podem falar, mas não podem estar presentes nas votações.
O Título IV - “Do Poder Executivo ou do Rei” dispõe que o poder executivo pertence ao Rei, assistido pelos Secretários de Estado. O Rei dispõe de veto suspensivo, podendo devolver às Cortes determinada lei, contudo, basta uma nova aprovação para haver obrigatoriedade de promulgação, estando previsto um processo de promulgação tácita para os casos de decurso dos prazos ou de recusa de assinatura. Nas suas relações com o poder legislativo, o Rei não tem o poder de dissolver as Cortes, não podendo sequer assistir às suas reuniões, com exceção da abertura e conclusão dos trabalhos.
De acordo com Título V - “Do Poder Judicial”, este poder pertence exclusivamente aos juízes. Nem as Cortes nem o Rei o poderão exercitar em caso algum (artigo 176.º).
A Constituição encerra com Título VI - “Do Governo Administrativo e Económico”, que dispõe sobre os Administradores Gerais, as Câmaras, a Fazenda Nacional e os estabelecimentos de instrução pública e de caridade.
Depois de aprovada a Lei Fundamental a 23 de setembro de 1822, o Rei foi recebido nas Cortes para aceitar e jurar, guardar e fazer guardar a Constituição, no dia 1 de outubro, referindo que:
“Sendo pois o novo pacto social a expressão da vontade geral, e o produto das vossas sábias meditações, acomodado à ilustração do século, e cimentado sobre a reciprocidade de interesses, e sentimentos, que tornam a minha causa inseparável da causa da Nação, eu venho hoje ao seio da Representação nacional aceitar a Constituição, que acabais de fazer, e firmar com o mais solene juramento a inviolável promessa de a guardar, e fazer guardar.”
A Constituição de 1822 vigorou menos de um ano, entre 23 de setembro de 1822 e 3 de junho de 1823, tendo sido revogada por D. João VI em consequência da revolta da Vilafrancada.
Após a Revolução de Setembro, em 1836, teria uma curta e quase simbólica segunda vigência, de 10 de setembro de 1836 a 4 de abril de 1838, data do juramento da Constituição de 1838.
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