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O SERVIÇO MILITAR E OS CIDADÃOS PORTUGUESES DO SEXO FEMININO (1968)


A Lei do Serviço Militar, publicada a 11 de julho de 1968, previa no artigo 2.º que os cidadãos portugueses do sexo feminino podiam ser admitidos a prestar serviço militar voluntário. Se nesta formulação, o que chama logo a atenção é a forma como são identificadas as mulheres, não deixa de ser surpreendente que, enquanto o regime do Estado Novo mantinha as mulheres numa posição de subalternidade em termos de direitos, designadamente no domínio laboral, as tenha admitido a prestar serviço militar, ainda que em regime de voluntariado.

A iniciativa legislativa que deu origem a esta lei foi elaborada por especialistas dos três estados-maiores das forças armadas e, antes de ser debatida na Assembleia Nacional, foi apreciada na Câmara Corporativa. A discussão na generalidade desta proposta de lei na Assembleia Nacional, inicia-se no dia 9 de janeiro de 1968. O deputado Pinto de Mesquita é o primeiro a intervir e considera que esta disposição permite superar “mais um complexo feminino na aspiração da mulher de se equiparar ao homem no exercício de funções públicas.” O deputado Barbieri Cardoso intervém também sobre esta disposição, referindo que se trata de uma inovação que “embora se afigure trazer incontestáveis vantagens, ou, talvez melhor, comece a ser necessária, não deixa de nos causar hesitação e nos levar a ponderar como e até onde o serviço militar prestado pelas mulheres possa ser conduzido. A Câmara Corporativa, ao apreciar essa inovação no nosso serviço militar, deixou nitidamente transparecer o melindre que nela encontra, emitindo opinião de que certamente não se pretenderá levar a mulher portuguesa a tomar parte em ações militares de campanha, em paridade com os homens. Evidentemente que o pensamento dos autores deste projeto nunca terá sido este, não nos resta a menor dúvida de que nunca lhes passou pela mente levar a mulher portuguesa, ainda que voluntariamente, a um serviço nas forças armadas, tal como na China, em Israel ou no Vietname.”

Poderiam assim as mulheres assumir os serviços que, “por oferecerem nenhuns ou quase nenhuns riscos, colocam os homens que os desempenham em situação moral de grande inferioridade perante aqueles que lutam na frente de batalha, sempre sujeitos às traiçoeiras surpresas das emboscadas, das minas ou das armadilhas.”

Na Legislatura em que se produz este debate, a IX, a Assembleia Nacional conta com quatro deputadas: Custódia Lopes, eleita por Moçambique, Maria Ester Guerne Garcia de Lemos, por Lisboa, Maria de Lourdes Albuquerque, pela Índia, e Sinclética Soares Santos Torres, por Angola. Duas delas intervêm no debate relativo a esta questão, evidenciando posições tão ou mais conservadoras que os oradores que as antecederam, chegando a deputada Maria de Lourdes Albuquerque a referir, no debate realizado a 23 de janeiro de 1968, que “a mulher saiu do lar mais por necessidades materiais do que por um desejo de emancipação ou de distração.” Manifesta discordância com o deputado António Santos da Cunha, que, na sessão de 11 de janeiro, admite a possibilidade do serviço obrigatório para o que designa de “sexo fraco”, depois de ter referido que a mulher “disputa aos homens todos os lugares e posições, abandonou o lar e concorre com os homens na vida pública”. Maria de Lourdes Albuquerque conclui referindo que “nem sou partidária de que ela abandone o lar, mas sou com certeza extremamente favorável a que, sem prejudicar a vida do lar, ela contribua voluntariamente para a defesa e o engrandecimento da Nação.”

A deputada Custódia Lopes intervém, na mesma sessão:

“Não somos feministas a ponto de aceitar o exagerado conceito de que a mulher é igual ao homem e que, portanto, lhe cabem os mesmos direitos e idênticos deveres. (…) Não faltam às mulheres as qualidades que se requerem para os serviços auxiliares das forças armadas, e tarefas há mesmo que mais se adaptam propriamente à índole e psicologia femininas. Estão perfeitamente de acordo com a natureza da mulher os trabalhos de secretaria, dactilografia, os serviços de arquivistas, bibliotecárias, telefonistas, radiotelefonistas, mecanógrafas, contabilistas, os serviços em estabelecimentos fabris, os serviços da manutenção militar, de cozinha, de messes, dos abastecimentos, os trabalhos nas oficinas gerais de fardamento, os serviços de administração de pessoal e outros serviços especializados, dos quais destacamos os serviços de saúde, como médicas, farmacêuticas, analistas, enfermeiras e tantos outros.”

Na realidade, o que pode parecer um passo no caminho da igualdade, não é senão a resposta a uma necessidade de reforço dos meios ao serviço da defesa numa situação de guerra que se prolongava desde 1961, daí que se tenha alargado o serviço militar aos inaptos e às mulheres, porque, como é referido pelo deputado Santos Bessa, na sessão de 16 de janeiro, “muitas são as atividades em que muitos indivíduos podem dar valioso contributo para a defesa da Nação, de harmonia com as necessidades desta e com as aptidões, a idade e o sexo de cada qual.”

Evita-se assim, segundo o mesmo deputado, que se desviem das funções específicas do combate homens válidos para assegurar o funcionamento de serviços que podem ser assegurados por pessoal feminino voluntário. Refere ainda que “embora o sexo feminino venha dia a dia exuberantemente demonstrando quão desajustada lhe está a designação de «fraco», nem por isso nos agradaria vê-lo a envergar fardas e a empunhar armas, como já acontece em alguns países. O arremedo varonil destrói-lhe a graça e a feminilidade que lhe são peculiares.”

 


08/08/1961 - As cinco primeiras enfermeiras paraquedistas portuguesas da Força Aérea Portuguesa. © Arquivo DN.

Nem sequer a existência de enfermeiras paraquedistas desde 1961, várias vezes mencionadas durante o debate, altera a forma como são percecionadas a mulher e as funções que pode exercer durante a prestação do serviço militar. O Deputado Cutileiro Ferreiro refere-se a elas, dizendo o seguinte:

Só quem já as viu partir, na fragilidade de um helicóptero, rumo ao desconhecido, poderá compreender o que existe de grande e nobre na sua missão. Custa-me a compreendê-las, mas admiro-as. Não as entendo, mas respeito-as.”

A proposta de lei sofre poucas alterações, tendo o artigo 2.º sido aprovado com a redação proposta.