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O DEBATE SOBRE AS VACINAS NO PARLAMENTO


Manuscrito

Vacinar, ou não vacinar? Os benefícios superam os riscos? Serão as vacinas eficazes ou as suas virtudes estão a ser empoladas, por motivos políticos e comerciais? A pandemia Covid-19 veio trazer de volta à primeira linha um debate antigo - tão antigo como as próprias vacinas. O Parlamento é um dos palcos deste debate, como o foi sempre desde a sua fundação. Recordemos as polémicas que se travaram ao longo de dois séculos, a propósito das vacinas e do processo de vacinação.

No princípio eram as vacas

Devemos a Edward Jenner a primeira vacina moderna. No final do século XVIII, o médico inglês descobre a forma mais eficaz de travar a varíola, doença que figurava entre as principais causas de morte na Europa e por todo o mundo.

Jenner parte de uma prática já existente, a de inocular pessoas saudáveis com o vírus da varíola. O método, designado como variolização, consiste em retirar uma porção de líquido de uma pústula de um infetado e inseri-lo num paciente sem sintomas através da pele da mão ou do braço. Trata-se de uma terapia perigosa, não só para o paciente – que poderia não resistir à infeção - como para todos os membros da sua comunidade, dado que o paciente se transformava num agente ativo de transmissão. A este propósito, ficou famoso um episódio que envolveu o médico inglês Thomas Dimsdale, autor do livro “O Método Atual de Inoculação Contra a Varíola”, de 1767. Convidado pela imperatriz Catarina a inocular a família real russa, consta que o médico, mesmo sendo muito experimentado na técnica da variolização, deixou à porta do palácio uma carroça pronta para partir a toda a velocidade, caso o trabalho não corresse tão bem como esperado. Felizmente para Dimsdale, não houve baixas a registar, mas nem sempre o desfecho do processo de variolização era tão benigno.

O médico inglês adota um método diferente. Parte da constatação de que as vacas desenvolvem formas mais suaves da varíola, sendo que a infeção dos humanos a partir do vírus animal não só é relativamente fácil de curar como dá aos infetados uma proteção duradoura contra a variante humana da doença. Assim, Jenner usa as pústulas animais para “infetar” os seus pacientes. Em 1796, administra a sua vacina (palavra que vem do latim vaccinae, que significa “da vaca”) a James Phipps, de 8 anos, filho do seu jardineiro. Inoculado, de seguida, com o temível vírus da varíola, o rapaz não manifesta qualquer sinal da doença. Começa uma nova era da medicina.

A novidade de Jenner chega a Portugal três anos depois. O tratamento profilático começa por ser administrado em Lisboa, por volta de 1799, mas de forma episódica e muito irregular. Em 1801, a profilaxia antivariólica começa a ser administrada em Coimbra, cidade onde foi fundada a primeira Instituição Vacínica do País, em 1804.

Com a corte instalada no Brasil, também ali chega a novidade de Jenner. O rei D. João VI, que tinha perdido o irmão (e herdeiro do trono) D. José para a varíola, empenha-se na defesa da vacina. Tanto que os seus filhos D. Miguel e D. Maria da Glória são vacinados em 1805, facto amplamente noticiado pela imprensa da época.

A lotaria das vacinas

Apesar do exemplo vindo da coroa, na primeira década do século XIX, a vacinação é um esforço privado, que vive da iniciativa individual de médicos que importam o material vacínico de Inglaterra. As invasões napoleónicas de 1807-11 comprometem ainda mais as primeiras tentativas de criação de uma rede de vacinadores capaz de cobrir todo o País. Neste período inicial, destacam-se duas figuras: Manuel Joaquim Henriques de Paiva, o primeiro em Portugal a escrever um artigo científico sobre os benefícios da vacina e Bernardino António Gomes, que viria a tornar-se o primeiro diretor da Instituição Vacínica de Lisboa. É este organismo, criado em 1812 sob a égide da Academia Real das Ciências de Lisboa, que faz um primeiro esforço de vacinação de grande escala. Tarefa que cedo se revela muito difícil de pôr em prática, desde logo pela falta de recursos humanos e financeiros. Os números da Academia de Ciências mostram um crescimento notável das vacinações entre 1813 e 1817, mas uma queda abrupta depois desta data. Com efeito, em 1822, administraram-se menos vacinas anti varíola do que em 1813.


Fonte: A Academia Real das Ciências de Lisboa (1779-1834): Ciências e Hibridismo numa Periferia Europeia, José Alberto Teixeira Rebelo da Silva, p. 290. Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências, Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências, 2015. Tese de Doutoramento.

As Cortes Constituintes de 1821-22 são chamadas a pronunciar-se sobre o problema. Em fevereiro de 1821, a Instituição Vacínica de Lisboa envia uma representação às Cortes, a dar conta das dificuldades logísticas e financeiras do processo. Financiada por uma lotaria que rendia 50 contos de réis por ano – a que se soma, a partir de 1818, um subsídio estatal de 1 conto de reis, a aplicação da vacina da varíola é muito limitada. A Academia reclama um reforço da verba concedida pelo governo.

Na Câmara dos Deputados, o assunto não é pacífico, ainda que a maioria dos parlamentares defenda a pretensão do Instituto. Na sessão de 20 de março, Soares Franco toma a palavra para falar dos benefícios da vacina jeneriana e defender a pretensão da Instituição Vacínica: “Quanto a pôr-se dúvida sobre a utilidade, ou não utilidade deste estabelecimento, o que sei dizer é que os homens mais instruídos têm convindo em que é o maior descobrimento do século XVIII e se algumas vezes falha é, ou por falta dos vacinadores, ou por outras causas estranhas à mesma vacina. Basta saber que as Bexigas destruíam a espécie humana, e que a vacina é reputada como um dos melhores preservativos. Nestas circunstâncias, e porque a Academia se prestou gratuitamente a este serviço útil à humanidade, fazendo conhecer o seu zelo, foi que a Comissão julgou que se deviam dar agradecimentos à mesma Academia”.


Parecer da Comissão sobre o requerimento da Instituição Vacínica. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

Mas há quem se oponha. O Diário das Sessões regista a oposição de Francisco Margiochi, que intervém “inculcando a sua nenhuma confiança nas virtudes da vacina, e expondo alguns factos”, lê-se no resumo da sessão. Infelizmente, não ficou registada a argumentação do ilustre parlamentar - uma posição um tanto ou quanto surpreendente, vinda de um matemático ilustre, ele próprio membro da Academia de Ciências e que passaria à história por ter sido o principal responsável pela formalização do fim da Inquisição em Portugal.

As vozes a favor são mais fortes e vinga o apoio à Instituição Vacínica. É aprovado o parecer da Comissão de Saúde de 16 de março de 1821, que remete para a prometida reforma do sistema de saúde a integração dos serviços de vacinação num esforço mais amplo de melhoria das condições sanitárias do país. Malgrado as promessas, a Instituição Vacínica tem de se contentar com a manutenção do subsídio governamental de um conto de réis. A grande maioria das crianças (e adultos) continua a não estar protegida, apesar da criação do regulamento geral de saúde pública, que prevê a vacinação em todas as vilas e cidades do reino.

Descoberta “portentosa” ou “erro da ciência médica”?

Se a vacinação contra a varíola vai fazendo o seu (lento) caminho, novos desafios se abrem com as descobertas do ilustre médico e cientista francês Louis Pasteur. A primeira grande inovação que apresenta é a vacina da raiva. A academia lusa, convicta do valor do feito de Pasteur, insta o governo a trazer a novidade para Portugal.


Projeto do Regimento de Saúde Pública de 1821. AHP.

A 12 de março de 1886, o deputado Pereira Leite faz um pedido ao governo: “Rogo ao governo que, a exemplo das demais nações, mande a Paris um homem de provada ciência médica estudar o sistema descoberto por aquele eminente sábio, que em breve será apelidado - o benfeitor da humanidade. Quando se trata de poder salvar algumas vidas não deve haver hesitações; é preciso que sem demora se possa estabelecer um instituto de vacina contra a raiva, e creia o governo que a criação de um tal estabelecimento há de ser o seu maior título de glória quando abandonar essas cadeiras”.

Responde-lhe o Ministro da Fazenda, Mariano de Carvalho: “Tenho a dizer ao ilustre deputado que tomarei na melhor consideração o pedido de S. Exa., e que esse negócio já está sendo estudado para se tomar uma resolução conforme com os interesses do comércio e da agricultura”. O deputado Alfredo Peixoto completa a resposta do governante, lembrando que já partira para Paris “um talentoso médico, o sr. Martins de Carvalho, para estudar esse processo”.

Poucos dias depois, parte uma outra expedição para Paris. Por iniciativa do próprio Presidente do Conselho de Ministros, José Luciano de Castro, segue de comboio para a capital francesa um grupo de doentes portugueses, acompanhados por dois médicos, para serem tratados e para que os clínicos estudassem a novidade científica no Instituto Pasteur.

A comitiva é liderada por Eduardo Abreu, médico e membro da Câmara dos Deputados. Abreu passa dois meses entre Pasteur e os seus discípulos, mas as conclusões a que chega são desconcertantes. Considera que o instituto francês descura o rigor no diagnóstico dos pacientes, chegando a questionar se estes sofrem mesmo de raiva. Das experiências que, posteriormente, faz com a vacina em Portugal (que incluem ensaios com um coelho inoculado com a vacina que o próprio Pasteur lhe entregou em mãos - e que Eduardo Abreu deixa morrer de septicemia) conclui pela inutilidade da profilaxia. Recomenda que se mantenham os métodos tradicionais - açaimes para os cães e a rápida cauterização das feridas dos que sejam mordidos por um animal contaminado.

É a forte reação da academia às conclusões de Eduardo Abreu que permite reverter os “estragos” do relatório apresentado pelo deputado. Na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, médicos ilustres, como Miguel Bombarda ou Sousa Martins, refutam as conclusões de Abreu e aprovam, em abril de 1887, um relatório que recomenda vivamente que o governo promova a aplicação geral da vacina antirrábica. Apesar do vexame público, Eduardo Abreu – que se afasta voluntariamente do processo de validação científica da vacina contra a varíola – mantém-se muito relutante acerca da sua eficácia.

Na sessão da Câmara dos Deputados de 20 de junho de 1887, o médico e deputado apela a que sejam enviados delegados portugueses a três congressos internacionais onde se ia debater a vacina de Pasteur. "Vai discutir-se em todos os congressos a questão da profilaxia da raiva canina; vai saber-se refletidamente se a descoberta de que tanto se tem falado ultimamente é na verdade a descoberta mais portentosa deste século, ou se não passa de um dos muitos erros que se têm praticado em ciência médica".

O governo decide, numa primeira fase, enviar para tratamento em Paris os doentes com raiva. Só com a criação do Instituto Bacteriológico de Lisboa, entre 1892 e 1893, a questão ficaria resolvida, com o tratamento a ser assegurado no País. Em 1894, é lido na câmara um relatório da Comissão de Saúde que faz o balanço do primeiro ano de funcionamento do Instituto: “Desde a instalação, 1 de janeiro de 1893, até hoje, receberam o tratamento antirrábico no instituto bacteriológico 744 indivíduos, 34 dos quais apenas o pagaram”.

Vacina obrigatória ou liberdade pessoal?

Paralelamente a esta discussão sobre a vacina contra a raiva, no ano de 1882 inicia-se o que viria a ser um longo debate na Câmara dos Deputados. A 14 de fevereiro, o médico e deputado Cunha Leal propõe que se torne obrigatória a vacinação contra as bexigas (designação popular da varíola), o que então só se aplicava aos recrutas do Exército e da Armada. Leal explica o seu raciocínio: “Ora eu quero conceder que cada um tenha a liberdade de ter bexigas, mas não quero que vá até ao ponto de ter a liberdade de as comunicar aos outros; quem quiser tê-las, esteja em sua casa sozinho e tenha-as, muito embora; mas não vá pôr-se em sucessivo contacto oficial e oficioso com os outros”.

Apesar dos muitos apoios à sua intervenção, só quase duas décadas depois seria, finalmente, aprovada a vacinação obrigatória e à custa de repetidas tentativas e de vários debates inflamados. A dicotomia entre direitos e obrigações individuais dividia os deputados.

Em julho de 1891, Adriano Monteiro apresenta na Câmara um Projeto de Lei “determinando que seja obrigatória a vacinação de todas as crianças, durante o primeiro ano da sua existência, nascidas em Portugal e ilhas adjacentes, e que seja igualmente obrigatória a vacinação e revacinação para os indivíduos a quem a vacina não pegasse”. O diploma não reúne os votos suficientes para ser aprovado na Câmara dos Deputados.

A mesma sorte tem a iniciativa legislativa do deputado Moraes Carvalho Sobrinho, que propõe a obrigatoriedade da vacinação antivariólica em março de 1896. E também a tentativa de Estêvão António Tormenta Pinheiro, conde da Serra Tourega, apresentada em janeiro de 1898, não consegue mais do que provocar uma curiosa oposição do deputado Ferreira da Fonseca: “Eu não desejo descrever aqui o lastimoso quadro de miséria psicológica a que poderão chegar os povos, as famílias e as gerações futuras de um país, onde se imponha a obrigação de inocular e reinocular nos organismos uma linfa vacínica sem garantia da sua proveniência e pureza”.

É em março de 1899 que, finalmente, a Assembleia aprova o Projeto de Lei n.º 81, consagrando a obrigatoriedade da vacinação antivaríola. No parecer da Comissão de Saúde que sustenta o Projeto de Lei, o deputado António Egípico Quaresma, redator, argumenta: “São tão óbvios e tão conhecidos de todos os horrores do morbo variólico, pela sua extrema gravidade, pelas consequências que dele muitas vezes derivam e pelos sofrimentos que o acompanham, que a vulgarização e a obrigação da sua vacina preventiva, com os salutares efeitos que todos lhe reconhecem, constituem um ato humanitário do mais subido quilate”. A aprovação da lei é impulsionada pela reforma do sistema de saúde, liderada pelo médico Ricardo Jorge, que se tinha distinguido pela reação enérgica ao surto de peste bubónica que assolara o Porto. Em 1899, é criada a Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública, facto que permite um salto em frente no controlo de epidemias e surtos de doenças.

No entanto, a epopeia da vacinação obrigatória não termina aqui. Em fevereiro de 1900, o Par do Reino Oliveira Monteiro aborda a epidemia de varíola que se vive no País e faz um apelo ao Presidente do Conselho de Ministros: “Peço a S. Exa. que se digne regulamentar a lei que aqui se votou o ano passado sobre a vacinação e revacinação obrigatórias que é um remédio eficaz contra o terrível flagelo." José Luciano de Castro responde com uma promessa: “Pedi a palavra simplesmente para dizer ao digno par que já recomendei à direção-geral de saúde pública a elaboração do regulamento da lei sobre a vacinação e revacinação a que se referiu o digno par e espero que dentro em pouco será publicado”.

O compromisso acaba por não se cumprir. Em abril de 1903, o deputado Moraes Carvalho Sobrinho, que sete anos antes tinha proposto a vacinação obrigatória, denuncia a não regulamentação da lei da vacinação obrigatória, o que a torna inútil. E lamenta as mortes por varíola que ocorreram por via dos surtos de varíola que acometeram Lisboa e Porto, no ano de 1902. A lei acabaria por ser regulamentada e a vacinação passa a ser obrigatória, prática que o novo regime republicano viria a confirmar em 1911.

Uma das maiores charlatanices do mundo

Instaurado o regime republicano, a 5 de outubro de 1910, não tarda muito que o assunto da vacinação obrigatória regresse ao Parlamento. Os deputados do Congresso recebem, em novembro de 1911, uma incisiva representação da Sociedade Vegetariana de Portugal, com sede no Porto, que se manifesta ferozmente contra a vacinação obrigatória das crianças, que tinha sido reforçada com o regulamento de saúde aprovado semanas antes.


Representação da Sociedade Vegetariana de Portugal. AHP.

Os vegetarianos, que advogam “um regime de vida que tende a prevenir e curar as doenças humanas, a regenerar os corpos e as almas, a encaminhar a humanidade para a saúde física, moral e mental”, não podem consentir “na prática obrigatória de um processo pseudocientífico que é um verdadeiro envenenamento sifilítico, que é uma das maiores charlatanices do mundo”.

A representação enviada aos deputados assume a forma de um folheto. Inclui um editorial assinado pela direção da Sociedade Vegetariana e um extenso artigo de Ângelo Jorge, que se apresenta como “Naturista, propagandista-prático da Nova Ciência de curar pela Natureza, de Louis Kuhne [médico alemão que defendia ferozmente o vegetarianismo e que desenvolveu vários tratamentos baseadas na hidroterapia]. Sob o título “Contra a Vacina! Protesto de um Pai. Grito de uma Consciência Livre.”, Jorge alinha dados estatísticos que supostamente provam a incapacidade da vacina em travar as mortes por varíola, acrescentando citações de médicos (todos estrangeiros e quase todos identificados com um só nome ou apelido) que repudiam a vacina, qualificando a criação do “barbeiro Jenner” como “veneno”, “farsa”, “charlatanice”, “horror”, “cruel atentado” ou “uma prática médica digna dos tempos bárbaros, mas indigna da nossa civilização”.

A resposta à representação da Sociedade Vegetariana surge em janeiro de 1912, na forma de um parecer da Comissão de Saúde e Assistência Pública, que tem como primeiro signatário o ilustre médico e cirurgião Egas Moniz, parlamentar que viria a tornar-se no primeiro prémio Nobel português.


Parecer da Comissão de Saúde e Assistência Pública. AHP.

Os deputados da comissão põem o interesse público no cerne da discussão, desmontando a ideia de que a vacinação obrigatória atente contra os direitos dos indivíduos: “A aceitarmos semelhante maneira de ver, não teríamos de fazer tábua rasa de quase toda a legislação sanitária, que mais ou menos são limites à liberdade individual em benefício da coletividade”. A comissão rebate, um a um, os argumentos contra a vacina e cita o exemplo da Alemanha, onde há muito a vacina se tornou obrigatória: “Pode dizer-se que, na Alemanha, a varíola morreu, pois que as estatísticas apenas nos dão um caso de morte pela varíola para um milhão de habitantes”.

Em suma, a comissão – e depois a Câmara dos Deputados, que aprova o parecer – decidem pela continuação em vigor da lei de 1899 que consagra a vacinação e revacinação obrigatórias, deitando por terra as pretensões dos vegetarianos.

Do combate à poliomielite ao Programa Nacional de Vacinação

O notório efeito das vacinas na melhoria das condições sanitárias da população acaba por calar as vozes mais iradas contra a vacinação. Durante as primeiras décadas do século XX, vão-se sucedendo as descobertas científicas que permitem alargar o leque de vacinas disponíveis. Uma breve cronologia mostra as datas da descoberta das principais vacinas, as quais, com maior ou menor atraso, acabaram por ser administradas em Portugal. 

1798 – Varíola;

1885 – Raiva;

1896 – Febre tifoide e cólera;

1897 – Peste;

1923 – Difteria;

1926 – Tétano e Tosse convulsa;

1927 – BCG;

1935 – Febre amarela;

1938 – Tifo;

1941 – Encefalite da carraça;

1945 - Gripe bivalente.

Em 1964, a Câmara Corporativa faz um balanço da década anterior: “A atividade de vacinação levada a cabo por intermédio do Ministério da Saúde e Assistência nos anos de 1953 a 1962 pode avaliar-se pelo facto de se terem realizado mais de 11 milhões de inoculações, dos quais mais de 7,5 milhões correspondem a vacinações antivariólicas”. Incluíam-se ainda a aplicação de vacinas contra a cólera, tétano, difteria, tifo e outras doenças.

O ano de 1955 marca um momento na história da vacinação, com as descobertas de Salk e Sabin sobre a prevenção da poliomielite. A 29 de abril desse mesmo ano, o deputado Cortês Pinto pede, na Assembleia Nacional, que o governo de Salazar tome medidas rápidas para travar a paralisia infantil: “É justamente a comercialização ou fornecimento desta vacina que eu tenho estado a visar ao expor estas considerações preambulares tendentes a justificar o meu voto por uma aquisição breve em larga escala para o nosso país. É que essa larga escrita só pode ser atingida com uma comercialização que a ponha ao alcance, de todas as bolsas, inclusivamente com uma participação do Estado no pagamento de uma parte das ampolas destinadas à venda ao público. Esta participação do Estado poderá ainda tornar-se mais valiosa se for reforçada por uma larga campanha tendente à maior divulgação do seu uso”.

As palavras de Pinto não surtem efeito, mas o debate prossegue nos anos seguintes. Em 1961, num debate na Assembleia Nacional sobre o estado da Saúde discute-se a Proposta de lei n.° 5, relativa ao Estatuto da Saúde e Assistência. Um dos pontos do articulado menciona a poliomielite e a situação de risco que o país vive: “Ainda que os números de morbilidade e mortalidade, com exceção do ano de 1958, não sejam extraordinariamente elevados, requerem, em todo o caso, a maior atenção, porquanto de um ano para o outro pode assistir-se a um surto epidémico que venha a constituir grave problema sanitário. Não se pode esperar pelo aparecimento de uma epidemia de certa gravidade para iniciar campanha adequada de defesa das crianças que podem ser suas vítimas”.

O deputado referir-se-ia ao surto grave de poliomielite que assolara a região do Porto em 1958, e que leva, finalmente, as autoridades de saúde a agir. A vacina tipo Salk é introduzida no país, mas, num primeiro momento, a campanha de vacinação não surte os efeitos desejados. A Direção-Geral de Saúde adota então um plano mais arrojado e é assim, que em outubro de 1965, se inicia o Programa Nacional de Vacinação, de aplicação geral a todas as crianças.

No ano seguinte, o deputado Santos Bessa faz um balanço muito positivo da campanha em curso: “Essa campanha de vacinações visa a imunizar a quase totalidade da população infantil contra a tuberculose, a tosse convulsa, a difteria, o tétano e a poliomielite. A campanha iniciou-se já com a aplicação da vacina viva, atenuada, contra a paralisia infantil, doença grave de que temos sofrido alguns surtos epidémicos. Andam por cerca de 250 os casos de poliomielite paralítica que todos os anos são comunicados aos serviços de saúde. Muitas destas crianças ficaram com défice motor mais ou menos acentuado, e algumas delas grandemente inferiorizadas. Algumas vezes não só crianças, mas adolescentes, e até adultos têm sido atingidos. A campanha em curso propôs-se imunizar 75 por cento da nossa população infantil com menos de 9 anos, que anda por 1 800 000 crianças. O plano foi bem concebido, bem estruturado e muito bem executado. O público acorreu à chamada, com uma frequência inesperada. Em vez dos 75 por cento, mais de 82 por cento das crianças dessa idade foram apresentadas para a primeira dose de vacina. No meu distrito, todos os concelhos tiveram uma frequência superior a 75 por cento e alguns houve em que se atingiram os 89 por cento (Lousã), os 96 por cento (Mira) e os 99 por cento (Poiares)”.

Fator crítico para este sucesso é a criação do Boletim Individual de Saúde, onde são registadas todas as vacinas administradas às crianças e cuja apresentação se torna obrigatória tanto em atos médicos como nas matrículas escolares. A queda abrupta da taxa de mortalidade infantil mostra o grande sucesso que representou o PNV e ajuda a explicar porque, ainda hoje, a população portuguesa adere com tanta facilidade à introdução de novas vacinas.

O fim da vacina obrigatória

É já no tempo da democracia que a varíola é dada como erradicada. A declaração da OMS é de 1979, mas Portugal antecipa-se. Em dezembro de 1976, o governo liderado por Mário Soares decreta o fim da obrigatoriedade da vacina antivariólica, revogando a legislação tantas vezes discutida na Monarquia e na I República: “Ficam suspensas, no que respeita à obrigatoriedade da vacinação antivariólica, as normas contidas na Lei de 2 de março de 1899 e o Regulamento da Vacinação Antivariólica de 23 de agosto de 1911, bem como toda a legislação complementar”.

Com o passar do tempo, a questão das vacinas deixa de estar na primeira linha do debate político. Passa a ser uma decisão meramente técnica, deixada aos peritos da Direcção-Geral de Saúde. Em 1987, são introduzidas as vacinas contra a parotidite e a rubéola, administradas conjuntamente com a do sarampo (VASPR). A partir de 1999, chegam as vacinas da hepatite B e do Haemophilus influenzae tipo B, em 2006, a do meningococo C, em 2008, contra o vírus do papiloma humano (HPV) e, em 2015, a vacina conjugada de 13 valências contra infeções por Streptococcus pneumoniae (Pn13). Não sendo obrigatórias, as vacinas contra a gripe passam, sobretudo na última década, a fazer parte da rotina sazonal de milhões de portugueses.

Com o inesperado surgimento da pandemia Covid-19, o debate das vacinas volta à discussão política. Tendo Portugal alcançado uma taxa de vacinação das mais elevadas de todo o mundo, não deixa de ser curioso que, também por cá, haja quem recupere argumentos antivacinas que alimentam as mais acaloradas discussões há mais de dois séculos. Como sempre, o Parlamento volta a ser um dos palcos do debate.

Fontes e bibliografia

Base de dados Debates Parlamentares da Assembleia da República.

Base de dados do Arquivo Histórico Parlamentar.

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Cabral, Célia; Pita, João Rui – Cinquenta Anos do Programa Nacional de Vacinação em Portugal (1965-2015), CEIS 20, 2015.

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https://www.publico.pt/2020/10/04/opiniao/noticia/55-anos-programa-nacional-vacinacao-revisitando-nascimento-sucesso-evolucao-desafios-1933930

https://www.publico.pt/2015/04/12/sociedade/noticia/programa-de-vacinacao-comecou-ha-50-anos-quando-a-poliomielite-matava-em-portugal-1692136

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https://www.apih.pt/congresso_30_anos_coimbra_2018/dra_paula_valente.pdf

https://www.medicina.ulisboa.pt/newsfmul-artigo/106/descoberta-das-vacinas-e-vacinacao