" />
Na sessão de 29 de novembro de 1972, Miller Guerra presta homenagem ao antigo parlamentar José Guilherme de Melo e Castro [1], destacando as suas qualidades como político, o seu papel crítico das políticas governativas na área da saúde e assistência social e o seu desalento com a fase final da governação de Salazar.
“Era seu costume dividir o regime salazarista em três períodos: o primeiro, que ele hiperbolicamente chamava heroico, ia até à guerra de Espanha; o segundo, de consolidação, até à guerra mundial; o terceiro, denominava-o de estagnação (…).
Eis por que saudou a mudança do Governo em 1968, que ele esperava fosse também do Regime ou, pelo menos, que preparasse as condições para isso. O seu desejo era que uma vida nova começasse, uma vida política europeia, como ele dizia.
(…) Ao marasmo político sucedeu - por bem pouco tempo, infelizmente - o fervilhar das iniciativas em torno da ideia nuclear de liberalização.”
O Deputado Casal-Ribeiro interrompe para lamentar que uma circunstância de luto seja ocasião para uma manifestação contra o regime e a ausência de liberdade.
O parlamentar responde às críticas de Miller Guerra, argumentando que a circulação do livro Dinossauro Excelentíssimo prova que há liberdade em Portugal. Da autoria de José Cardoso Pires, com ilustrações de João Abel Manta, o Dinossauro é um retrato satírico da figura de Salazar e do regime autoritário do Estado Novo. Diz Casal-Ribeiro:
“V. Exa. quer mais liberdade do que aquela que nós vivemos neste momento, quando se permite, por exemplo, a saída de um livro ignóbil chamado Dinossauro Excelentíssimo?”
Segue-se uma acesa troca de palavras entre os dois Deputados, em que é retomado o tema da liberdade de expressão e da censura:
Miller Guerra: - Ora, então vamos lá, Sr. Casal-Ribeiro. O senhor falou em liberdade, não foi?
Casal-Ribeiro: - Pois foi.
Miller Guerra: - E lamentou que um livro chamado Dinossauro tenha circulado, não é verdade?
Casal-Ribeiro: - É, é!
Miller Guerra: - Eu por mim, tomara que houvesse muitos Dinossauros e muitos livros que circulassem livremente, que o espírito português não estivesse amordaçado como tem sido há tanto tempo com uma censura que tem, inclusivamente, apreendido livros de Deputados!
Casal-Ribeiro: - Mesmo quando se insulta a memória de uma pessoa que serviu a Nação? V. Exa. acha bem?
Miller Guerra: - Sim, senhor. Em segundo lugar, V. Exa. diz que há muita liberdade.
Casal-Ribeiro: - Eu não disse que havia muita liberdade.
Miller Guerra: - Não? Bom! Então há pouca.
Casal-Ribeiro: - Disse que havia a suficiente para estas publicações.
Miller Guerra: - Então, se há pouca, estamos de acordo.
Casal-Ribeiro: - Não me parece que haja assim tão pouca, mas não haverá, possivelmente, tanta quanta V. Exa. queria.
Miller Guerra: - É verdade. E também não há tão pouca como V. Exa. desejava.
Casal-Ribeiro: - V. Exa. ainda se há de arrepender, tanto como eu, das liberdades que por aí andam.
José Cardoso Pires relata mais tarde este episódio [2], dizendo que esta sessão deixou a Censura de “mãos atadas”, pois “já não podia apreender o livro que o Deputado salazarista tinha citado estupidamente como demonstração da liberdade do regime, e, menos ainda, promover a prisão do autor”.
[1] José Guilherme de Melo e Castro (1914-05 / 1972-09-27) foi Deputado à Assembleia Nacional entre as V e a X Legislaturas, pela União Nacional. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu entre 1944 e 1947 as funções de Governador Civil de Setúbal e, mais tarde, entre 1954 e 1957, as de Subsecretário de Estado da Assistência Social. Foi ainda Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas. Considerado o mais “liberal” dirigente da União Nacional, deve-se-lhe o facto de nas listas de 1969 terem sido eleitos deputados os nomes dos mais significativos membros da “Ala Liberal”.
[2] Cardoso Pires por Cardoso Pires. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p. 37.