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O CINEMA EM DEBATE (1939)


Em 1939, o Parlamento debate as bases da assistência de menores a espetáculos públicos e os perigos do cinema.

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A 15 de dezembro de 1938, os Deputados José Cabral e Domitila de Carvalho apresentam um projeto de lei regulando a assistência ao cinema e espetáculos teatrais aos menores de sete e dezasseis anos, considerando que “a ação exercida pelo cinema no espírito das crianças é, de um modo geral, pernicioso quando não haja na organização dos respetivos programas os necessários cuidados e delicadeza.”


Deputada Domitila de Carvalho. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

No dia 7 de janeiro de 1939, é publicado o parecer da Câmara Corporativa sobre a iniciativa, em que é reconhecida a importância do cinema, pela sua popularidade entre os jovens e por ser um veículo de transmissão de valores culturais e morais.

“Na verdade, a projeção cinematográfica constitui o divertimento mais ardentemente desejado por todos, sobretudo pela mocidade.

Não pode também deixar de ser reconhecida a utilidade do Cinema, considerado complemento didático visual, difusor da cultura, despertador de ideias nobres, do gosto pela leitura, viagens, ideias elevadas e ações heroicas.”

No entanto, o “mau cinema” é considerado uma “escola de imoralidade”, trazendo grandes malefícios para os jovens, pelas suas repercussões nocivas:

“Prejudica a saúde, incita ao sensualismo, corrompe os costumes, conduz aos vícios, aos crimes, à tentativa do suicídio, deforma as consciências e a mentalidade, faz baixar o nível espiritual, propaga ideias pagãs e materialistas.”

O parecer prossegue citando o Bispo de Hollywood, com a referência de que a maior parte dos filmes “ensina uma filosofia da vida falsa, errónea e insidiosa, segundo a qual o casamento, a pureza da mulher e a santidade do lar são sentimentalidades que passaram de moda e não merecem consideração alguma da parte dos americanos inteligentes.”

Efetivamente, o cinema dedica-se maioritariamente a temas sociais, discutindo “moral, divórcio, amor livre, limitação de nascimentos, abortos, relações sexuais fora do casamento e lar duplo, relações entre o sexo e a religião, o casamento e seus efeitos relativamente à liberdade da mulher.”

A luta contra o “mau cinema” deverá ser feita “por processos indiretos, catequizando as multidões nos preceitos da moral cristã, inaugurando cinemas privativos de filmes morais, convencendo, portanto, as empresas produtoras de filmes de que é um bom negócio produzir filmes morais.” Mas, enquanto tal não for possível, o Estado, “em defesa da moral, dos bons costumes, da ordem pública e, em especial, da infância e da adolescência, deve fazer a censura rigorosa dos filmes, para autorizar os que podem ser projetados.”


Aspeto da Sala das Sessões da Câmara Corporativa, antiga Sala do Senado, 1937. AHP.

Ainda no dia 7 de janeiro, é apresentada uma exposição dos sectores patronais da atividade cinematográfica[1] que contesta a ideia expressa no projeto lei de que o cinema é pernicioso para as crianças e a exclusão dos menores dos espetáculos, realçando a “missão didática e educativa” dos filmes:

“A necessidade ou utilidade de proporcionar às crianças os espetáculos cinematográficos não é, pois, uma simples questão de divertimento, mas antes, o no caso de bons e úteis filmes, uma alta missão educativa e cultural. Desde que assim se encare o cinema e a sua ação, ressalta imediatamente a injustiça do projeto de lei na parte em que proíbe a assistência dos menores de sete anos a todos os espetáculos e só permite a assistência dos menores de dezasseis anos aos que sejam especialmente organizados para crianças.”

Prosseguem, alertando para os problemas económicos no setor da atividade cinematográfica que estas medidas acarretam, conduzindo à diminuição de espetadores, uma vez que são as crianças que normalmente arrastam as famílias para os espetáculos.

Na sessão da Assembleia Nacional de 12 de janeiro de 1939, tem início a discussão na generalidade do projeto de lei a intervenção da Deputada Domitila de Carvalho, subscritora do projeto de lei.


Aspeto da Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 1937. AHP.

O seu discurso centra-se também no cinema, pela “impressão profunda, persistente, que o cinematógrafo, em virtude de várias circunstâncias, antes de atuar sobre a razão, exerce sobre os sentidos, a fantasia, a imaginação dos assistentes” e “pelo grande número de cinemas espalhados pelo mundo e a multidão sempre crescente de espetadores”.

Assim, se o alcance do cinema pode ser um instrumento de educação, “pode tornar-se, e torna-se, na realidade, uma causa de depressão física e moral, um meio de corrupção”.

A preocupação da Deputada centra-se nos efeitos malignos do cinema nas crianças, influenciando fortemente a delinquência infantil.

Para defender a sua iniciativa, Domitila de Carvalho recorre a um estudo científico realizado nos Estados Unidos:

“Dos oito aos doze anos são as crianças particularmente impressionadas por cenas de perigo, de tragédia, de crimes, cuja técnica vão tantas vezes aprendendo. Quer dizer: devem estas cenas ser eliminadas das fitas que se ofereçam a crianças dos sete aos doze ou catorze anos.

Dos doze aos dezasseis anos são os novos impressionados fortemente por cenas passionais, sentimentais. E como as experiências foram feitas em grande número de crianças, excluindo-se toda a ideia de fraude, é evidente que não podem deixar de ter um grande valor os resultados a que este estudo levou.

Em resumo: supondo realizadas as condições de uma boa ventilação, removidos os inconvenientes do cinema sobre a visão, ainda certas fitas são prejudiciais para a saúde física das crianças.”

Prossegue enunciando os objetivos do projeto de lei:

1.° Até uma certa idade, aliás variável entre limites estreitos, e que poderemos fixar em sete anos, deve proibir-se a entrada de crianças em teatros e animatógrafos, seja qual for a peça que se represente ou a fita que se exiba.
De mais, antes desta idade esses espetáculos ou pouco interessam as crianças ou as desgostam absolutamente, como tantas vezes tenho verificado. Deve concorrer para isso a falta de mobilidade a que têm de sujeitar-se, a escuridão da sala, o silêncio a que as obrigam, etc.;
2.° Os menores entre os sete e os dezasseis anos só devem assistir a espetáculos compatíveis com o seu desenvolvimento mental e a sua sensibilidade, eliminando-se as cenas que mais desfavoravelmente os impressionam. E assim, entre os sete e doze anos, as cenas de perigo, tragédias, crimes, incêndios, mortes, etc. são altamente inconvenientes. Como são inconvenientes as passionais, sentimentos fortes para os menores entre doze e dezasseis anos, e altamente recomendáveis as que podem conduzir a sentimentos generosos ou revelam coragem, heroicidade (…);
3.° Não deve permitir-se que frequentem a desoras aquelas casas de espetáculos.

O Deputado José de Sá Carneiro, apesar de considerar a iniciativa oportuna e necessária, entende que deve ser menos rigorosa, pois o Estado não deve intrometer-se demasiadamente na educação das crianças, retirando a liberdade dos pais.

Manifesta-se contra a parte em que veda em absoluto a entrada de menores de sete anos em quaisquer espetáculos e as limitações à assistência de menores de sete a dezasseis anos:

“A criança começa a frequentar o liceu, em regra, aos onze anos; aos catorze é púbere. É já um homenzinho. Está em contacto com a vida e com as torpezas que ela mostra. No caminho do liceu ou do colégio vê prostíbulos, onde, sem intervenção da polícia, entram crianças, onde vivem crianças, uma mistura de inocência e vício que confrange. Ouve as palavras das gentes desbocadas. E só para os divertimentos há de estar fora do mundo real, em contacto exclusivo com desenhos animados e fitas ostensivamente instrutivas e educativas? A instrução e educação podem ser-lhe dadas por via indireta e mais aprazivelmente.

E evitar-se-á até a brusca passagem desses espetáculos ad usum Delphini para as fitas pornográficas francesas ou quejandas.”

Para o Deputado, os maus filmes têm efeitos nefastos também nos adultos, que também devem ser protegidos. Assim, apela a um maior rigor à censura dos filmes, “até para que não se pense que queremos reservar para nós os filmes que um homenzinho de quinze anos não deve saborear”.

As intervenções seguintes insistem na questão da influência negativa dos filmes nas crianças e, consequentemente, na família e na sociedade.

Abel Varzim alerta para os perigos dos “filmes de amor”:

“Creio não exagerar afirmando que o que esses filmes ensinam é que tudo é permitido, com a condição de que haja amor ou, pelo menos, uma simples simpatia a perdoar e absolver todos os crimes. A moral do cinema é essa, a moral do amor livre: a vida encarada como uma aventura, como um sonho, como um paraíso de delícias, um encontro que se aproveita para gozar mais e melhor.

A vida, a verdadeira vida, para a qual nós devemos preparar a juventude, essa não nos aparece retratada no pano branco.”

O debate prossegue na sessão no dia seguinte, com a intervenção da Deputada Maria Van Zeller, que apresenta as principais dificuldades que as famílias encontram no que diz respeito ao lazer dos filhos:

1.° Não há espetáculos especiais para crianças;
2.° Há espetáculos cinematográficos às vezes até impróprios para adultos e aos quais, não obstante, se levam crianças de todas as idades;
3.° Há espetáculos de moral duvidosa ou manifestamente escandalosos para os quais as empresas convidam crianças, a fim de assistirem a matinées, onde se anuncia que lhes serão oferecidos brindes, como se pelo facto de se tratar de uma matinée, à luz do sol, que nem entra na sala, purificasse, ou antes, depurasse o programa;
4.° Há espetáculos bons e até aconselhados para adultos, mas que não se adaptam às várias mentalidades infantis e, portanto, ou são prejudiciais ou não servem o fim em vista - distrair a criança.

Para ultrapassar estas dificuldades, a Deputada propõe a “remodelação da censura, por forma a torná-la, ou antes, a dotá-la com os meios de bem desempenhar a sua missão, sendo um dos principais a instituição de uma polícia de costumes que a secunde, e a criação de espetáculos teatrais e cinematográficos adequados a menores, tendo em vista a sua distração, sem prejuízo da instrução e educação”.

Botto de Carvalho apresenta propostas de alteração, no sentido da flexibilização das proibições e dos condicionamentos impostos pela iniciativa. O Deputado Alçada Guimarães alerta para uma eventual inconstitucionalidade do projeto de lei, cabendo à Assembleia Nacional a aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos e ao Governo a sua regulamentação.

Para Guilhermino Nunes “o mal não está só no cinema”, mas também nos lares das crianças desprotegidas e nas casas “onde tudo abunda, onde a criança se perverte pela vida mundana que se faz, pelo abandono a que é votada, pelo pouco cuidado com que é tratada, pela falta de seleção nos assuntos versados diante dela e ainda por certos cortes de conversa, com aqueles sorrisozinhos que dizem tudo à criança, mas que não deviam dizer nada”. O Deputado prossegue:

“Se considerarmos tudo isto, concluiremos que o mal não está só no cinema, está no lar, também, nesse lar onde tudo abunda, onde a criança vê a mãe cortar as sobrancelhas e pôr uma mistela nos olhos, para que brilhem mais.

Eu queria saber como é que essas mulheres, que se pintam, se desnudam, se desonestam perante os seus filhos, querem ser olhadas.”

Após a discussão e votação na especialidade, o projeto de lei foi aprovado com alterações.

No dia 16 de fevereiro de 1939, é publicada a Lei n.º 1974, que promulga as bases da assistência de menores a espetáculos públicos.

A lei determina a proibição da assistência a menores de 6 anos, podendo excecionalmente ser autorizados espetáculos “puramente infantis”.

Os espetáculos de teatro e cinema são obrigatoriamente classificados “para menores” e “para adultos”. As crianças dos 6 aos 12 anos apenas podem assistir a espetáculos “para menores” durante o dia. Entre os 12 e os 15, já o podem fazer de dia e de noite, assim como assistir a espetáculos “para adultos”, deste que acompanhados pelos pais. As “variedades” e os bailes públicos são classificados “para adultos”.

São estabelecidas sanções para os pais ou empresas que transgredirem as normas tutelares. impostas pela Inspeção-Geral dos Espetáculos. É ainda determinada a reorganização dos serviços de censura e inspeção dos espetáculos públicos “por forma a assegurar a sua unidade e a dar-lhes os meios de eficiência prática” para cumprir a legislação vigente. 





[1] Grémio Distrital dos Exibidores de Cinema de Lisboa, Grémio Nacional dos Distribuidores de Filmes Cinematográficos e a Secção Cinematográfica da Associação Industrial Portuguesa.