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“NÃO PRECISAMOS DE MANDAR NINGUÉM PARA SABER O QUE DE NINGUÉM É IGNORADO” (1885)


Os cordões sanitários, as vacinas, a falta de vacinas, a sua obrigatoriedade ou mesmo os efeitos nefastos das mesmas têm sido temas recorrentes no atual debate parlamentar. Mas se há quem pense que o debate sobre estas questões é exclusivo do período que vivemos, devido à pandemia causada pelo coronavírus, desengane-se. Dúvidas idênticas surgiram ao longo da nossa história parlamentar, associadas ou não a situações epidémicas.

No final do século XIX, a sequência de epidemias e o número de mortes associadas, causadas sobretudo pela cólera, varíola, febre amarela e peste bubónica, obrigaram à adoção de medidas de saúde pública, algumas das quais objeto de grande contestação, como foi o caso do cerco sanitário ao longo da fronteira com Espanha (1885) e mais tarde o cerco sanitário ao Porto (1899) ou o isolamento em lazareto, e trouxeram a classe médica, a investigação em saúde e as medidas de higiene e prevenção para a esfera pública.

Como é óbvio, nas câmaras parlamentares ressoavam e ampliavam-se os ecos deste debate que ocorria na sociedade, incidindo sobre a eficácia das medidas adotadas e os avanços científicos, incluindo as vacinas e as consequências económicas e sociais dos cordões sanitários.

A 16 de janeiro de 1885, aquando do cerco sanitário ao longo da fronteira devido à epidemia de cólera que grassava em Espanha, na Câmara dos Deputados da Nação Portuguesa, é dado conhecimento da situação vivida pelos pescadores de Caminha, concluindo o Deputado Teixeira de Sampaio a sua intervenção da seguinte forma:

“Se o governo continuar a deixar permanecer ali o cordão sanitário, segue-se que os pescadores portugueses estão inibidos de auferir os meios para a sua sustentação, e então será difícil a manutenção da ordem porque a fome não tem lei.”

A eficácia deste meio também era questionada:

“(…) não por meio de cordões sanitários, porque se tem visto que a cólera, zomba de tais meios” afirmava o Deputado Chamiço, a 8 de maio de 1855.

Mais tarde, a 8 de março de 1900, o cerco sanitário ao Porto, devido à epidemia de peste, suscita um acalorado debate, contrapondo-se à decisão do Governo os pareceres emitidos pela junta consultiva de saúde do reino:

"Torna-se indispensável isolar o Porto do resto do país, não pelo isolamento absoluto e bárbaro, que seria a negação dos princípios da ciência em matéria de saúde pública, mas pela restrição e regulamentação das comunicações, de modo a assegurar por sólidas garantias que as pessoas ou coisas, saídas da cidade infecta, não vão levar a outros lugares indemnes os germes morbígenos. O isolamento absoluto é a morte social, o sequestro de todo o comércio humano, a tirania do egoísmo. A junta não propõe tal exagero."


23 de agosto de 1899: Decreto do Ministério do Reino interrompendo a liberdade incondicional das relações do Porto com o resto do reino por meio de um cordão sanitário, enquanto naquela cidade durar a epidemia da peste bubónica.

Apesar deste parecer e de outro, no mesmo sentido, emitido por uma comissão de professores constituída por decreto real para, no Porto, estudar a epidemia, o Governo proíbe a saída de passageiros, bagagens e mercadorias do Porto. O cerco haveria de durar quatro meses.

A vacinação, então descoberta recente de Pasteur, entra igualmente no debate parlamentar. A 16 de junho de 1885, na Câmara dos Pares do Reino, o Par do Reino Tomás de Carvalho responde à questão suscitada pelo Visconde de Moreira de Rei sobre a não indicação pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa de qualquer dos seus membros para integrar a comissão que foi a Espanha estudar o sistema de profilaxia da cólera (cholera morbus) aplicada pelo Dr. Ferran, ao contrário das escolas de Coimbra e do Porto.

Defende então Tomás de Carvalho, que era também diretor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que esta conhecia pelos jornais científicos e políticos os trabalhos do Dr. Ferran pelo que não precisavam de “mandar ninguém para saber o que de ninguém era ignorado”.

De seguida coloca em causa os trabalhos do Dr. Ferran, referindo que em medicina, a ideia de praticar a inoculação das moléstias contagiosas é velha e muito antiga:

“Mas foi principalmente nestes nossos tempos que Pasteur, como todos sabem, lhe imprimiu um caracter científico. Foi ele quem fez conhecer com evidência onde residia a contagiosidade das moléstias que têm este caráter. O Dr. Ferran é um discípulo dele; e prossegue nas suas investigações, acerca do microscópico vegetal, que multiplicado aos milhares, dizem produzir a cólera. É este quase invisível vegetal, este bacilo, a causa, a origem primária da doença.

Se houvesse um meio de inocular este vírus de maneira a produzir naquela moléstia contagiosa o mesmo que já nós conhecemos relativamente à varíola, evidentemente tinha caminhado e progredido por um lado a medicina, e por outro tinha-se realizado um grande benefício à humanidade.”

Prossegue desmentindo notícias que corriam segundo as quais as corporações científicas de Espanha teriam dado assentimento incondicional às inoculações ou ainda que o governo francês teria enviado emissários seus para estudar os trabalhos do Dr. Ferran. Mais, cita uma fonte que teria desmentido notícias publicadas nos jornais daquele mesmo dia, segundo as quais Pasteur e dois dos seus discípulos se dirigiam a Espanha. Segundo esclarece, Pasteur ter-se-ia limitado a escrever uma carta ao Dr.  Ferran “elogiando o trabalho realizado e propiciando a profilaxia que ele confiava obter da vacina, mas reservando a sua opinião para quando os factos tivessem efetivamente demonstrado que a vacina tem os efeitos benéficos” que ele lhe atribuía.

Na mesma intervenção, relata que dias antes teria sido intercetado pelo governo um líquido trazido por um médico espanhol, que dizia que era composto e manipulado com os mesmos ingredientes e de igual maneira ao do Dr. Ferran e que se propunha aplicar em Lisboa a vacinação colérica. Este, contudo, teria dito que o médico não era seu discípulo e nem sequer o conhecia.

Tomás de Carvalho alerta ainda para os riscos de a vacina desencadear uma doença similar à que se propunha evitar, no caso, desencadearia uma colerina, o que tornava arriscada a vacinação em regiões não afetadas pela doença. Refere ainda que, embora se tivessem vacinado cem, mil, duas mil pessoas, não provava que os indivíduos inoculados estivessem completamente indemnes ou imunes e ao abrigo do contágio, pois pelas declarações do Dr. Ferran sabia-se que ele julgava necessária segunda vacinação e talvez terceira, pelo que não imaginava quantas inoculações seriam precisas para que aquele meio preservativo pudesse ser eficaz.

O que surpreende nestas intervenções é a permanência ou atualidade de algumas das medidas adotadas no final do século XIX, em situação de epidemia, bem como as questões suscitadas perante as medidas aplicadas pelo poder político e as dúvidas relativas aos supostos avanços científicos, o que se revelou, no caso, justificado.