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"NÃO É RÉU O INFRATOR DE UMA LEI QUE NÃO ABRAÇA"


As Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, às quais competia a elaboração e aprovação da que viria a ser a Constituição Portuguesa de 1822, iniciaram funções logo depois da eleição, realizada em dezembro de 1820.

Durante o seu mandato, os Deputados tiveram de se ocupar de outras questões, como as relativas ao funcionamento das Cortes, o diagnóstico do estado público do país e a regulação ou extinção de instituições anacrónicas face à nova ordem política.

Começaram, contudo, por elaborar e aprovar as Bases da Constituição, a 9 de março de 1821, tendo, no dia 29 desse mesmo mês, realizado a cerimónia de juramento por parte de todas as autoridades e por todo o país. “A fórmula «Juro aos Santos Evangelhos aderir e obedecer às bases da Constituição Política deste Reino que as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa reconhecem, e mandam provisoriamente guardar como Constituição» seria recitada nos paços do concelho, juntando-se o clero paroquial às vereações.”[1]

Dois dias depois, a 31 de março, a sessão começou, como era habitual, com a leitura e aprovação da ata da reunião anterior, seguindo-se a leitura de expediente que, nesse dia, consistiu em ofícios de membros do Governo, pareceres das comissões e cartas de felicitação e prestação de homenagem às Cortes.

Depois da aprovação do decreto para abolição da Inquisição, passou-se à discussão do articulado do Decreto sobre Bens Nacionais e amortização da Dívida Pública. A propósito do artigo 4.º, que determinava que para amortização da dívida se aplicasse o rendimento dos Benefícios, Ofícios e Dignidades da Igreja Patriarcal, o Deputado Borges Carneiro faz uma longa intervenção na qual procura justificar esta medida. Começa por referir que não há uma Patriarcal em Espanha, França, Alemanha ou Rússia, países muito maiores, contudo, existe em Portugal e tem um rendimento anual de 230 contos de réis, que consiste nos terços dos dízimos dos Bispados, foros e rendas que recebe das Províncias. Defende que os dízimos não podem ser arrebatados para se fundar na capital um “estabelecimento vaidoso em que sobre as ruínas dos exauridos provincianos nutrissem os eclesiásticos o fausto e a pompa mundana a que haviam renunciado no batismo e ordenação”.

Para evidenciar a riqueza da Patriarcal cita os preços dos chapéus: “só o seu chapéu com os outros 3 chapéus Cardinalícios vindos de Roma desde o ano de 1755 custam anualmente a Portugal 3 contos de réis, ao todo até o presente ano 123 contos e 600 mil réis; eu não dava por estes 4 chapéus 123 réis!”

 

Não retirando validade, nem pertinência à exposição, percebemos, quando conclui, que o destinatário deste discurso, é não apenas a Patriarcal, mas também o Cardeal Patriarca, D. Carlos da Cunha e Meneses, que “recusou reconhecer as Bases da nossa Constituição, a obra dos Ilustres Representantes da Nação Portuguesa, sancionada pelo voto geral dela.”

O Cardeal Patriarca tinha jurado com restrições os artigos 10.º – por requerer censura prévia eclesiástica em matérias religiosas – e 17.º – por exigir a formulação da religião católica como única dos portugueses e “sem alteração ou mudança alguma em seus dogmas, direitos e prerrogativas”. [1] [2]


Estudo para a pintura de Veloso Salgado alusiva às Cortes Constituintes de 1821.

Apesar de estar em apreciação o Decreto sobre Bens Nacionais e amortização da Dívida Pública, após a intervenção do Deputado Borges Carneiro passou-se de imediato ao debate desta questão.

O Deputado Moura intervém referindo que “há um homem, há um Português, que declara que não jura observância ao que a Nação tem declarado como Lei fundamental. Isto é crime, ou não? Se é crime, é preciso que este crime se analise, é preciso que se castigue este crime.

O Deputado Fernandes Tomás informa que sabe que a Regência determinou que o Cardeal Patriarca fosse para o Bussaco acompanhado de uma escolta de cavalaria, mas considera que ele cometeu um delito e que deverá ser julgado como um delinquente.

Este assunto passa à ordem do dia e decidiu-se chamar o Ministro dos Negócios do Reino para se apresentar perante o Congresso com os papéis, ordens e informações relativas ao Cardeal Patriarca.


Manuel Fernandes Tomás. Estudo para a pintura de Veloso Salgado alusiva às Cortes Constituintes de 1821.

O Deputado Castelo Branco considera que “réu é um infrator da Lei, não o posso considerar como infrator de uma Lei que não abraça, é uma Lei nova; mas por esse facto deixou de ser Cidadão. Por isso o procedimento que acho que deve ter-se com o Cardeal Patriarca é mandá-lo para fora da Sociedade com a segurança precisa.”

O debate prossegue e alonga-se, tendo o Deputado Xavier Monteiro colocado as seguintes questões: se o Congresso decide que deve ser julgado, que Tribunal o poderá julgar e qual a Lei em virtude da qual há de ser julgado.

Alguns Deputados que consideram que o Congresso deve determinar que ele é culpado, outros que ele deve ser julgado e outros que se deve deixar o assunto à Regência ou, ainda, que antes se deveria ouvir o Cardeal Patriarca. Por fim, considera-se que a questão é de grande ponderação, ficando o debate adiado para a sessão seguinte.

Na sessão seguinte, a 2 de abril, depois da leitura da ata, prossegue a discussão, tendo intervindo o Deputado Moura que refere o seguinte: “Aqui não há Lei Civil, ou Criminal, que fosse quebrantada; aqui não há Crime, o caso é todo político; trata-se de saber unicamente qual há de ser o destino que deve ter o Português que se não quer ligar às Leis fundamentais da Sociedade.

De seguida, o Deputado Pereira do Carmo defende que o Cardeal Patriarca não é criminoso porque entende que usou do direito que lhe assistia e, para o comprovar, pergunta aos outros membros das Cortes:

“Se acaso a futura Constituição consagrasse o despotismo em princípio; desse cabo dos direitos individuais do homem, e do Cidadão; deixasse em pé as velhas instituições, que levaram a Nação às bordas do precipício; julgar-se-iam ligados pelo seu antecipado juramento a aceitar, cumprir, e observar uma tal Constituição?”

Prossegue dizendo que lhe resta mostrar que o Cardeal Patriarca apesar de não ser criminoso, não é Português:

“A demonstração é muito óbvia. Não é Português, porque não aceitou, nem jurou o Contrato Social porque a Nação Portuguesa deseja constituir-se de ora em diante em corpo político. E daqui se segue 1. ° Que o Cardeal Patriarca deve [deixar] o Território Constitucional do Reino Unido, no mais curto espaço de tempo que for possível. 2.° Que deve largar todas as honras, e fortuna que havia recebido da Nação, a quem ele mesmo enjeitou, e a quem trata com tanto desapego.”

O Presidente pôs então a votação, tendo sido aprovadas por ampla maioria, que toda a Autoridade, ou indivíduo que se recusa ao juramento das Bases da Constituição, sem restrição alguma, deixa de ser Cidadão Português, e deve, portanto, sair do Reino.

Pouco tempo depois, o Cardeal foi obrigado a exilar-se em França. Nesse mesmo ano, a 15 de novembro, foi apresentado um projeto de extinção da Patriarcal e a 4 de janeiro de 1822, as Cortes mandaram suspender todo o tipo de pagamento à Patriarcal.

O Cardeal Patriarca não foi o único membro do clero a recusar jurar as Bases da Constituição, embora fosse aquele que teve maior visibilidade. Não deixa de ser curioso o debate em torno desta recusa, ainda que parcial, num quadro jurídico e político novo, e o seu desfecho.





[1] In A hierarquia episcopal e o vintismo, Ana Mouta Faria - Análise Social, vol. XXVII (116-117), 1992 (2. °- 3.°), 285-328

[2] O teor dos artigos era o seguinte:
10.° Quanto porém àquele abuso, que se pode fazer desta liberdade em matérias religiosas, fica salva aos Bispos a censura dos escritos publicados sobre dogma e moral, e o Governo auxiliará os mesmos Bispos para serem castigados os culpados.
17.° A sua Religião é a Católica Apostólica Romana.