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As críticas ao Parlamento, passadas e presentes, podem ser sintetizadas analisando algumas caricaturas publicadas no final do século XIX e no início do século XX.
Em janeiro de 1903, por ocasião da inauguração da nova Sala das Sessões, projetada pelo arquiteto Miguel Ventura Terra, após o incêndio que destruiu a primeira Câmara dos Deputados, em 1895, a revista A Paródia publica um desenho de Rafael Bordalo Pinheiro representando “a mudança” [1].
O título é significativo “O novo Parlamento: sistema velho em casa nova”. A ilustração mostra a nova sala do Hemiciclo e os velhos procedimentos suportados pelo povo.
Trata-se, neste caso, de uma referência ao “rotativismo” entre dois partidos – Partido Regenerador e Partido Progressista – um sistema político que marcou o parlamentarismo da época. Mas corresponde à convicção comum de que as mudanças no poder e na composição do Parlamento não alteram em nada as condições de vida das pessoas. Independentemente dos partidos e dos políticos, o sistema mantém-se o mesmo.
Dias mais tarde, ainda a propósito da nova sala, a mesma revista denuncia o desinteresse pela atividade parlamentar:
“Abriram as câmaras.
O quê? Ninguém deu por isso? (…)
Ninguém teve curiosidade de ir ver o edifício novo! (…)
O sistema parlamentar tornou-se tão pouco interessante que nem mesmo para o ver funcionar não já em molas novas, mas em cadeiras novas, se desloca gente.” [2]
À convicção de que a mudança política não tem qualquer expressão real, junta-se a indiferença das pessoas pela instituição parlamentar, mesmo pelas suas renovadas instalações.
Acresce ainda, neste domínio, a projeção da ideia de que a atividade parlamentar é inútil, inconsequente, um conjunto de palavras ocas sem qualquer consequência prática.
Em 1900, A Paródia satirizava sobre os 48 discursos pronunciados no debate sobre o Orçamento do Estado. O artigo intitulado “Crónica tauromáquica”, numa comparação recorrente entre o Hemiciclo e as praças de touros, salienta a inutilidade da retórica parlamentar:
“Corridos – perdão – pronunciados os doze discursos, maioria e minoria, ou seja, as duas quadrilhas, retiram-se e os touros – perdão – os discursos são recolhidos ao Diário do Governo, sem consequência de maior, até voltarem com as mesmas manhas, isto é, com as mesmas palavras, à mesma arena… da discussão.”
Na capa da revista, com o título “Retórica parlamentar: o grande papagaio”, apresenta-se o célebre papagaio de Rafael Bordalo Pinheiro, que, apoiado no poleiro com a designação de São Bento, repete ininterruptamente: “Peço a palavra! Peço a palavra! Peço a palavra!” [3]
Além das touradas, é também frequente a comparação do Parlamento com o teatro. Em 1919, o Século Cómico apresenta uma imagem da venda de bilhetes para a peça “Faz que anda mas não anda” do Teatro de São Bento. Na bilheteira, o Zé Povão comenta: “Parece que a companhia não é lá muito boa!” [4]
Nas crónicas sobre a Assembleia Constituinte de 1911, Joaquim Madureira (Braz Burity) recorre também à metáfora do espetáculo teatral, nem sempre desvalorizando as atuações. A terceira sessão parlamentar é descrita como tendo um “belo cartaz” em três atos, com a “estreia dos melhores artistas da companhia”.
A eleição pelo Parlamento do Presidente da República é anunciada da seguinte forma:
“Quinta-feira – 24 de agosto
Às duas da tarde
No Palácio das Constituintes
Récita única
E extraordinária
Da peça de grande espetáculo
«A eleição do Presidente»” [5]
Uma outra visão frequente sobre o Parlamento – a Sala das Sessões vazia – pode ser retirada de uma ilustração publicada em 1886, na revista Pontos nos ii, intitulada “BaixaMar”, em que alguns ratos passeiam na sala de sessões deserta. Na legenda pode ler-se “Aspeto da câmara dos deputados à 4.ª sessão parlamentar – tudo às moscas.” Este desenho tem o seu contraponto na “PraiaMar”, com os parlamentares em fila na tesouraria e o comentário “Aspeto da tesouraria, ao 1.º dia de pagamento: a deitar por fora”. [6]
Associado ao não cumprimento das suas obrigações, temos o Deputado que é movido pelos seus próprios interesses, de que é exemplo a ilustração “Caridade bem entendida” d’ O Século Cómico. Dois parlamentares travam o seguinte diálogo:
“- Obrigado ao meu amigo por ter votado 250 escudos por mês cá para a pessoa.
- Igualmente…” [7]
Na literatura, Camilo Castelo Branco apresenta Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, fidalgo provinciano e conservador, que se muda para Lisboa ao ser eleito Deputado. Na cidade, deixa-se corromper, abandonando os seus princípios e convicções. No final do livro, o Deputado eleito por Miranda é confrontado por um colega sobre o seu rumo político, respondendo desta forma:
“Meu amigo, abra os olhos, que não há martirológio para as toupeiras. As ideias não se formam na cabeça do homem, voejam na atmosfera, respiram-se no ar, bebem-se na água, coam-se no sangue, entram nas moléculas, e refundem, reformam e renovam a compleição do homem.” [8]
A figura do Conde de Abranhos, composta por Eça de Queiroz, é também uma sátira do político ignorante e carreirista, movido apenas pelo desejo de ascensão social e política e desinteressado sobre o povo que representa:
“Temos pois Alípio Abranhos deputado por Freixo de Espada à Cinta. A sua surpresa, ao ver-se subitamente e inesperadamente instalado numa cadeira em S. Bento, foi na realidade deliciosa.
(…) Ele, de facto, conhecia tão pouco Freixo de Espada à Cinta, que lhe sucedeu dizer no agradecimento que dirigiu aos seus eleitores: «Um dia, meus amigos, irei visitar a vossa bela província do Minho, que eu apenas conheço incompletamente, e espero então, ó freixenses, apertar a vossa mão honrada de verdadeiros liberais e de verdadeiros portugueses!» Ora, é bem sabido que Freixo de Espada a Cinta não é no Minho: é em Trás-os-Montes.” [9]
A caricatura “Uma carreira pra… lamentar”, publicada n’ O Espectro, em 1925, apresenta-nos um Deputado, junto ao seu luxuoso automóvel, bem trajado e a fumar charuto. À interjeição de um amigo “Oh, beleza de homem. Quem te viu e quem te vê!, o parlamentar responde “Então que queres? Sem saber ler e escrever, votei sempre com os meus princípios para conseguir os meios de alcançar os meus fins.” [10]
O espaço do Parlamento é também ainda caracterizado pela imprensa satírica como um recinto de luta e um palco de violência verbal e, em alguns casos, física.
A Algazarra, em 1902, compara o Parlamento a uma praça de peixe, mostrando os parlamentares a agredirem-se mutuamente, perante o desespero do Presidente da Câmara dos Deputados, procurando estabelecer a ordem:
“No Palácio de São Bento
Tem andado, ultimamente
Tudo em tal bulha, tal feixe
Que dizer não sabe a gente
Se aquilo inda é o parlamento
Ou uma praça de peixe.” [11]
Estes são alguns dos temas que tornam o Parlamento um alvo fácil da crítica e que podem ser resumidos numa caricatura publicada em O Zé sobre os resultados práticos de uma sessão legislativa: “Parlatório, anichar afilhados e arquivar sindicâncias”, com a figura do povo a interrogar-se sobre quando terá melhores condições de vida. [12]
[1] A Paródia, 7 de janeiro de 1903, Suplemento, p. 428.
[2] João Rimanso, A Paródia, 14 de janeiro de 1903, p. 2.
[3] A Paródia, 16 de maio de 1900, p. 137-138.
[1] O Século Cómico, 16 de junho de 1919, p. 4.
[1] MADUREIRA, Joaquim (Braz Burity). A forja da lei: a Assembleia Constituinte em notas a lápis. Lisboa, Coimbra: F. França Amado Editor, 1915, p. 649.
[6] Pontos nos ii, 14 de janeiro de 1886.
[7] O Século Cómico, 10 de novembro de 1911, p. 4.
[8] CASTELO BRANCO, Camilo. A queda de um anjo. Lisboa, Alêtheia/Expresso, 2016 [escrito em 1866], p. 159.
[9] QUEIROZ, Eça de, O Conde de Abranhos, Porto, Livros do Brasil/Porto Editora, 2017, p. 109 [escrito em 1879].
[10] O Espectro, 20 de julho de 1925, p. 8.
[11] A Algazarra, 1 de fevereiro de 1902, p. 4.
[1] O Zé, 14 de setembro de 1915, p. 4-5.
Excerto de “Comunicar o Parlamento: uma missão impossível?”, in Como funciona o Parlamento. Lisboa, Assembleia da República, 2019.