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O PARLAMENTO E A PROTEÇÃO DOS ANIMAIS


Este tema tem sido objeto de diversas petições e iniciativas legislativas que alteraram significativamente o estatuto dos animais.

Pintura com inscrição Lex

A primeira tentativa de consagrar legalmente em Portugal a proteção dos animais data do século XIX. Em 1919, foram publicados os primeiros Decretos sobre esta matéria, emanados do Governo, e que vigoraram mais de 75 anos. Em 1995, a Assembleia da República aprovou a lei de proteção dos animais que, embora com alterações, ainda se mantém em vigor. Nos últimos anos, a proteção dos animais tem sido objeto de diversas petições e iniciativas legislativas que alteraram significativamente o estatuto dos animais.

 

  1. As primeiras leis de proteção dos animais

 

Em 1875, foi fundada a Sociedade Protetora dos Animais (SPA) e, dois anos depois, os Deputados Carlos Testa - que era também membro da direção da SPA-Lisboa - e Manuel Pinheiro Chagas, entre outros, apresentaram, na Câmara dos Deputados, um projeto de lei visando a proteção dos animais. O projeto foi aprovado, mas não chegou a ser discutido na Câmara dos Pares do Reino, inviabilizando, por isso, a conclusão do processo legislativo e a sua entrada em vigor. Durante a Monarquia, quer na Câmara dos Deputados, quer na Câmara dos Pares do Reino foram recebidas representações das diversas delegações da SPA, instando os Deputados a aprovar os projetos de lei de proteção dos animais e de abolição das touradas.

A criação das SPA foi determinante nas iniciativas então apresentadas, o que era, aliás, salientado no prólogo daquele primeiro projeto:

“As sociedades protetoras dos animais são acolhidas no princípio com um sorriso, porque a opinião pública supõe sempre que elas, desprezando o senso prático, e comprazendo-se em sonhos de verdadeiros brâmanes, querem conduzir a humanidade ao regime alimentício dos ascetas, ou querem desconhecer este principio indeclinável da luta pela existência, que leva o homem fatalmente a matar para viver. Conhece depois a opinião quanto errou nos seus juízos. O homem é obrigado a sacrificar à sua alimentação, a escravizar no seu serviço, a exterminar em proveito do seu bem-estar milhões de entes vivos. As sociedades protetoras dos animais não pensam nem por sombras em opor-se a uma necessidade imperiosa, querem apenas banir todas as crueldades inúteis, circunscrever nos justos limites esse extermínio indispensável à existência física e social do homem. E, procedendo assim, ainda tem mais em vista a civilização humana, do que o zelo pelas espécies inferiores.”

Em 1911, logo depois da instauração da República, a SPA Porto apresentou à Assembleia Nacional Constituinte um projeto de lei de proteção aos animais, subscrito pelo Deputado Fernão Boto Machado, que é também autor de um projeto de lei contra as touradas. A proteção dos animais e a abolição das touradas são ainda objeto de outras iniciativas, apresentadas, respetivamente, pelos Deputados Alexandre de Barros e Afonso Ferreira. Nenhum destes projetos foi aprovado.

Em 1919, foram publicados os decretos n.ºs 5650 e 5864, do Ministério da Justiça, considerando, o primeiro, ato punível toda a violência exercida sobre os animais e, o segundo, especializando os atos que devem ser considerados puníveis como violências exercidas sobre os animais.

Estes diplomas vigorarão durante 76 anos. De facto, só em 1995 a Assembleia da República aprova a Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, “Proteção dos animais”, que, embora com algumas alterações, ainda se mantém em vigor. Esta lei resulta do Projeto de Lei n.º 530/VI/4 (subscrito por todos os grupos parlamentares e pelo Deputado Independente Mário Tomé), que foi antecedido pelo Projeto de Lei n.º 107/VI, da autoria do Deputado do PSD António Maria Pereira. Na exposição de motivos era referido o imenso atraso de Portugal nesta matéria, de que eram exemplo os valores irrisórios das multas previstas (2$ e 15$).

A lei de proteção dos animais tem um primeiro capítulo com princípios gerais, dedicando os seguintes ao comércio e espetáculos com animais, eliminação e identificação de animais pelas câmaras municipais e associações zoófilas. Cinco anos depois, por via das modificações introduzidas à Lei n.º 12-B/2000, de 8 de julho, que proíbe como contraordenação os espetáculos tauromáquicos em que seja infligida a morte às reses nele lidadas, foi introduzida a primeira alteração à Lei n.º 92/95, pela Lei n.º 19/2002, de 31 de julho, mas só no que a esta questão respeita.

 

 

  1. De coisas a seres vivos dotados de sensibilidade

Em 2012, a Associação Animal entregou uma petição à Assembleia da República - Petição n.º 173/XII/2.ª , com um total de 41 511 subscritores, na qual é proposta a aprovação de uma nova lei de proteção dos animais. Anteriormente, já tinham sido admitidas e analisadas as Petições nºs 138/XI/2.ª e 80/XII/1.ª, respetivamente com 8305 e 12 393 subscritores, nas quais era solicitada a alteração do estatuto jurídico dos animais no Código Civil, que eram, então, reconduzidos ao estatuto de coisas.

A petição foi apreciada em conjunto com os Projetos de Lei n.ºs 474/XII/3.ª (PS) e 475/XII/3.ª (PSD), sendo consensual que havia uma lacuna quanto ao regime sancionatório, previsto desde 1995, mas que nunca foi concretizado. A Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, então aprovada, altera não apenas a legislação de proteção dos animais já existente, mas também o Código Penal, passando a criminalizar os maus tratos a animais de companhia. É assim aditado um novo capítulo ao Código Penal, “Dos crimes contra animais de companhia”, que prevê os crimes de maus tratos e abandono de animais de companhia, definindo estes como qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no lar, para seu entretenimento e companhia.

Em 2015, menos de um ano após a aprovação da lei, foi submetida e apreciada a Petição n.º 485/XII/4.ª, com 16 303 subscritores, na qual se solicitava a sua alteração, em particular devido à falta de sanções acessórias. A petição foi desencadeada pela morte do cão Simba, a tiro, em Monsanto, tendo, em sequência, sido apresentado o Projeto de Lei n.º 1024/XII/4.ª que deu origem à Lei n.º 110/2015, de 26 de agosto, que estabelece o quadro de penas acessórias aplicáveis aos crimes contra animais de companhia.

Em 2017, foi aprovada uma nova lei que, tendo presente o exposto nas petições apresentadas e debatidas, resultou da apreciação de diversos projetos de lei [1]. A Lei n.º 8/2017, de 3 de março, estabelece um estatuto jurídico dos animais, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e o Código Penal, começando por reconhecer os animais como seres vivos dotados de sensibilidade. Este reconhecimento tem consequências a vários níveis, designadamente a nível da proteção jurídica dos animais, dos deveres dos respetivos proprietários, bem como quanto à decisão relativamente a qual dos cônjuges o animal é confiado em caso de divórcio.

Três anos volvidos, nova lei é aprovada, a Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, [2] que altera o regime sancionatório aplicável aos crimes contra animais de companhia, porque se verificavam lacunas que urgia colmatar, designadamente a não previsão de forma autónoma do crime de morte de animal de companhia. Esta lei procedeu ainda ao alargamento do conceito de animal de companhia e à inclusão dos animais errantes e vadios no âmbito de proteção. Na sua elaboração foram ouvidas diversas entidades e recebidos vários contributos.

Este breve apanhado da legislação aplicável à proteção dos animais não abrange outros diplomas mais específicos, como os relativos à proteção dos animais utilizados em circos ou para fins científicos ou mesmo as touradas, mas permite concluir que deixou de ser uma matéria raramente agendada ou debatida em sede parlamentar, para se tornar uma questão recorrente nos últimos anos, numa ligação estreita com cidadãos [3], que, com frequência, estão na origem, direta ou indiretamente, das iniciativas debatidas e aprovadas.

E, seguramente, não haverá necessidade de voltar a citar Émile Zola, aquando de um debate sobre proteção dos animais, justificando que o destino dos animais é muito mais importante para mim do que o medo de parecer ridículo”. [4]

 

 

 

[1] Projetos de Lei n.ºs 164/XIII/1.ª (PS) - Altera o Código Civil, estabelecendo um estatuto jurídico dos animais, 171/XIII/1.ª (PAN) - Alteração ao Código Civil reconhecendo os animais como seres sensíveis, 224/XIII/1.ª (PSD) - Altera o Estatuto Jurídico dos Animais no Código Civil e 227/XIII/1.ª (BE) - Altera o Código Civil, atribuindo um Estatuto Jurídico aos Animais.

[2] Apesar de terem sido apresentadas quatro iniciativas, os Projetos de Lei n.ºs 112/XIV/1.ª (PSD), 183/XIV/1.ª (PAN) e 202/XIV/1.ª (PS) foram retirados a favor do texto de substituição, ao contrário do Projeto de Lei n.º 211/XIV/1.ª (BE) que foi rejeitado.

[3] Com exceção do Projeto de Lei n.º 976/XII/4.ª (Cidadãos), que visava proibir o abate indiscriminado de animais pelas câmaras municipais, instituir uma política de controlo das populações de animais errantes e estabelecer condições adicionais para criação e venda de animais de companhia. Este projeto, juntamente com o Projeto de Lei n.º 65/XIII/1.ª (PCP), esteve na origem da Lei n.º 27/2016, de 23 de agosto.

[4] Citado pelo Deputado Cristóvão Norte, a 7 de dezembro de 2013, quando se debatiam a Petição n.º 173/XII/2.ª e os Projetos de Lei n.ºs 474/XII/3.ª e 475/XII/3.ª.