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Um dos passos fundamentais dado pelos republicanos no sentido da laicização do Estado português foi o decreto, com valor de lei, que instituía o divórcio, promulgado a 3 de novembro de 1910 pelo Governo Provisório, menos de um mês após a Revolução Republicana.
Porém, dez anos antes, em 1900, já houvera uma tentativa de estabelecer o divórcio em Portugal, que, embora não tivesse sido a primeira,1 nem tivesse um caráter muito avançado, merece, por diversos motivos, ser lembrada. Desde logo, por ter conseguido gerar um debate parlamentar, ainda que breve.2 Depois, por ter sido uma iniciativa que conheceu duas renovações, em 1908 e 1909, acabando por acompanhar o movimento anticlerical e secularizador que, renascido em 1900-1901, foi ganhando uma força e dimensão consideráveis ao longo da década seguinte3 e muito contribuiu para minar as fundações da cada vez mais frágil Monarquia. Finalmente, porque o projeto de lei do divórcio veio, inesperadamente, da parte do próprio setor político monárquico, ainda que da sua esquerda.
O autor do projeto, o advogado beirão Duarte de Roboredo Sampaio e Melo, deputado do Partido Progressista pelo círculo da Guarda, eleito pela primeira vez no ano anterior, apresentou-o na Câmara dos Deputados no dia 1 de março de 1900, tendo a segunda leitura ocorrido quatro dias mais tarde.
Com apenas cinco artigos, estabelecia o divórcio «para todos os efeitos civis», sendo que «os judicialmente divorciados de matrimónio» contraído pela Igreja Católica, embora não pudessem voltar a casar pela Igreja, podiam-no fazer civilmente. Os motivos que podiam ser aceites para o pedido de divórcio eram os que já estavam previstos no Código Civil para a separação de pessoas e bens, ou seja, a condenação de um dos cônjuges a pena perpétua, «as sevícias e injúrias graves», e o adultério, sendo que, no caso de adultério do marido, este só era admitido como causa legítima se fosse acompanhado de «escândalo público», de «completo desamparo da mulher» ou de manutenção de concubina no lar conjugal.5
Mas se o Código Civil determinava que a separação só podia ser solicitada pelo «cônjuge inocente»,6 o projeto de Sampaio e Melo instituía a possibilidade de o divórcio também poder resultar de mútuo consenso entre os cônjuges, ou seja, sem litígio, mesmo que dentro de determinadas condições.
No preâmbulo, Sampaio e Melo justificou a apresentação do projeto com o desfasamento dos preceitos do Código Civil de 1867 relativamente à evolução da realidade social, sobretudo no que dizia respeito ao direito da família, e a necessidade do direito civil português acompanhar o desenvolvimento que essa matéria estava a conhecer nos países mais avançados, onde se tinha vindo a adotar «uma orientação mais social e natural, livre e humanitária». Um bom exemplo desta mudança no pensamento jurídico internacional era o facto de um grupo alargado de países já ter introduzido o divórcio nas suas leis, entre eles a Alemanha, os Estados Unidos, a Inglaterra, o Japão, os Países Baixos, a Rússia e mesmo países católicos como a Áustria-Hungria, a Bélgica ou a França. Estes três últimos casos serviram para Sampaio e Melo demonstrar que era possível conciliar o catolicismo como religião oficial do Estado e a vigência de uma lei de divórcio, até porque o seu projeto não pretendia interferir com as convicções religiosas dos católicos, somente desejava que quem não fosse católico pudesse dar o rumo que entendesse à sua vida conjugal:
«A religião católica nada tem a sofrer com o divórcio para os não-católicos. Demais, longe de mim levantar um conflito religioso. Os católicos que fiquem com a sua indissolubilidade de matrimónio sacramento. Não façamos violências à sua consciência. Mas não queiram eles também essa violência às consciências e modo de pensar e sentir dos outros cidadãos não-católicos cuja existência na sociedade portuguesa é um facto, reconhecido pela própria Carta Constitucional, que dia a dia mais se acentua e alastra.»
Outra razão invocada por Sampaio e Melo para fundamentar o seu projeto tinha a ver com as consequências da disparidade que muitas vezes se verificava entre o ideal do casamento baseado no amor eterno e os desafios do quotidiano familiar moderno:
«A cada passo, a realidade da vida vem duramente fazer sentir aos esposos que se iludiram; que entre eles não há as afinidades que imaginaram; que por isso o amor, a família é entre eles impossível e muitas vezes a intensidade e variabilidade da vida social moderna faz falir de um momento para o outro uma associação familiar ao princípio bem constituída, como faz falir outras associações de vida mais ampla».
Nestas situações, obrigar duas pessoas que já não tinham amor e respeito uma pela outra a manter-se casadas constituía uma violência, com um impacto terrível no seio familiar, ainda mais quando existiam filhos. Em certos casos, a impossibilidade de pôr término a um casamento falhado podia até levar ao crime, e, recorrendo a dados estatísticos e à autoridade científica do criminologista italiano Cesare Lombroso, Sampaio e Melo avançou que os países com divórcio tinham menos criminalidade do que os que não o tinham.
O projeto foi admitido e enviado à comissão de legislação civil. Como seria de esperar, a imprensa católica reagiu com indignação, com o jornal A Nação a atacar a iniciativa de Sampaio e Melo e a considerá-la uma afronta e uma agressão à religião oficial do Estado e às convicções religiosas da maioria dos portugueses.7 Os jornais republicanos aplaudiram o deputado progressista,8 mas A Pátria não tinha ilusões quanto ao destino que esperava o projeto: nas suas palavras, seria «sepultado no arquivo da Câmara [dos Deputados]».9 Já o monárquico Diário Ilustrado relatava, com humor, o impacto social do projeto de lei do divórcio: «[…] caiu de chofre, sobre a capital e sobre o País o projeto de lei do divórcio do sr. Roboredo de Sampaio e Melo. Sendo para todos nós um desconhecido, ou pouco menos, este ilustre membro da maioria, alcançou, de um dia para o outro, maior notoriedade que os mais famosos filhos da nossa boa terra de Portugal, desde o Egas Moniz do princípio da monarquia até ao Egas Moniz do Partido Progressista. […] Enquanto o projeto do divórcio agita para aí as massas… encefálicas de muitas damas que deram o nó e de muitos cavalheiros que estão para o dar, todos os jornais discutem a sua obra, o seu retrato e a sua caricatura andam de mão e mão […] Não há uma casa onde não se fale do divórcio; uma mesa de café junto da qual não surja, como tema de palestra, o trabalho do sr. Roboredo; um corredor de teatro onde, nos intervalos, não se diga da justiça própria e da alheia sobre o projeto de lei».10
Três meses mais tarde, a 5 de junho, António dos Santos Viegas, padre e deputado do Partido Regenerador que se vinha destacando no Parlamento desde há duas décadas com as suas numerosas intervenções sobre matérias eclesiásticas,11 adicionou mais uma ao seu historial, ao discursar sobre o projeto de lei do divórcio, cuja eventual aprovação classificou como uma «calamidade». Depois, passou à afirmação da superioridade do modelo familiar católico e da indissolubilidade do casamento:
«Sr. Presidente, creio que não pode dar-se à família um ideal, uma constituição mais perfeita e que mais beneficamente influa sobre a sociedade, do que aquela que lhe foi dada pelo fundador do cristianismo. Estudado à luz do evangelho […], estudado à luz desse código, sempre antigo e sempre novo, porque se molda admiravelmente a todas as circunstâncias […], o matrimónio tem por sua natureza o vínculo da indissolubilidade. […] Ninguém pode separar aquilo, que Deus uniu. Sei, sr. Presidente, que a doutrina do divórcio não é nova; sei também, sr. Presidente, que contra ela protesta o direito natural e o evangelho, (Apoiados) e protesta ainda a Igreja e protestará sempre, porque ela é a guarda fiel e a legítima defensora dos interesses sociais. (Apoiados)».
No dia 6, Sampaio e Melo respondeu a Santos Viegas. Identificou os quatro pontos principais das críticas de que havia sido alvo por parte de Santos Viegas (e provavelmente também da imprensa católica) e refutou-os um a um:
«Passo a demonstrar em breves palavras, […] que o divórcio não é irreligioso, que não é mesmo contrário ao Evangelho, que não é imoral e contrário ao direito natural e que tem por si a estatística. Porque é que o divórcio é irreligioso? O sr. Santos Viegas não o disse. Nem o podia dizer, porque o não é. […] A Rússia e a Grécia que são cristãs têm o divórcio. Todas as nações da Europa que são protestantes e que, não obstante isto, são também cristãs, por mais que isso pese ao ilustre deputado têm o divórcio. […] Mas diz s. ex.ª: o catolicismo não o admite porque o não admite o Evangelho. Não é assim. O Evangelho admite o divórcio. Basta ler a página mais brilhante do cristianismo, o Sermão da Montanha, para se ver que o Evangelho permite o divórcio. As nações católicas da Bélgica e da Áustria e Hungria, para não citar outras, têm o divórcio. […] O divórcio não é repudiado, antes é imposto, pelo direito natural e pela moral. Supondo, como alguns publicistas querem, que o casamento não é um simples contrato mas uma associação fundada ou determinada pelo sentimento moral do amor, deve esta associação, esta união íntima ser orientada pelo princípio superior da liberdade e da inteira igualdade. Desde que o amor não existe, desde que entre os cônjuges se quebraram os laços que os uniam, desde que um e outro deixaram de cumprir os deveres que a lei e a moral lhes impõe, desde que qualquer deles deixe de observar a fidelidade jurada ou não presta a proteção prometida, antes a substitui pelo abandono e desprezo, quando o não é pela mais estúpida brutalidade, o que resta? […] Em nome de que moral se obrigam os esposos, simplesmente separados, a calcar os impulsos invencíveis da Natureza ou a lançarem-se numa vida torpe de adultério e de prostituição, dando origem a filhos adulterinos ou a infanticídios? Quantos crimes de veneno e de punhal não evita o divórcio? Também a estatística prova que nos países sujeitos ao regime do divórcio a criminalidade é menor do que naqueles em que o não há.»
Santos Viegas ainda ripostou, mas, em vez de manter o enfoque na questão do divórcio, usou a sua astúcia política para o deslocar para a dimensão mais anticlerical da intervenção de Sampaio e Melo, a qual, a determinada altura, tinha incluído uma denúncia da corrupção na Cúria Romana, acusando-a de autorizar o divórcio em troca de dinheiro, bem como das supostas irregularidades e abusos cometidos pelos padres no âmbito das suas funções enquanto responsáveis pelos registos paroquiais. Os oradores trocaram argumentos com alguma intensidade, porém, o momento mais exaltado já tinha ocorrido quando Sampaio e Melo discursara, com os deputados regeneradores a protestarem ruidosamente e os progressistas a responderem na mesma medida. Pelo meio, o deputado progressista João Monteiro Vieira de Castro, também padre, sentiu-se injuriado enquanto membro da Igreja e protestou contra o seu colega de partido.
Os anos passaram-se sem que fosse emitido o parecer da comissão de legislação civil. Assim, em maio de 1908, num contexto em que o anticlericalismo havia ressurgido como uma das grandes bandeiras republicanas no combate contra a Monarquia, o deputado progressista voltou à carga, apresentando uma proposta de renovação da iniciativa referente à lei do divórcio. Em julho de 1909, dias antes da grande manifestação anticlerical organizada pela Junta Liberal que terá reunido, em Lisboa, cerca de 100 000 pessosas,12 Sampaio e Melo propôs outra renovação, pois a comissão insistia em não elaborar um parecer. As representações enviadas à Câmara dos Deputados durante o mês seguinte, pedindo a promulgação, ou pelo menos a discussão e votação do projeto,13 não tiveram qualquer efeito prático e este ficou, uma vez mais, convenientemente esquecido nos arquivos da comissão. A lei do divórcio só chegaria, finalmente, em novembro do ano seguinte, já pela mão do Governo Provisório da República.14
Ricardo Revez
1-A primeira iniciativa legislativa deste género terá sido a de Luís António Gonçalves de Freitas, deputado do Partido Progressista, em 1883, que não teve seguimento (cf. Maria de Fátima da Cunha de Moura Ferreira, O Casamento Civil e o Divórcio (1865-1910). Debates e Representações, s. l., Universidade do Minho, 1993, p. 97).
2-Não houve debate em 1883, nem em 1910: no primeiro caso, porque a elite política da época não estaria sequer aberta a discutir o assunto; no segundo, porque se tratou de um decreto do Governo, promulgado com o Parlamento fechado.
3-Cf. Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), s. l. [Lisboa], Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s. d. [imp. 1998], pp. 341- 356; cf. António Ventura, Anarquistas, Republicanos e Socialistas em Portugal. As Convergências Possíveis (1892-1900), Lisboa, Edições Cosmos, 2000, pp. 59-75.
4-Filipa Ribeiro da Silva, «Duarte Gustavo de Roboredo Sampaio e Melo», in Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), coordenação de Maria Filomena Mónica, vol. II, Lisboa, Assembleia da República / Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 836-837.
5-Código Civil Português: aprovado por Carta de Lei de 1 de Julho de 1867, 2.ª edição oficial, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868, p. 211.
6-Código Civil Português: aprovado por Carta de Lei de 1 de Julho de 1867, p. 211
7-Maria de Fátima da Cunha de Moura Ferreira, op. cit., p. 156.
8-Cf. «A Lei do Divórcio», in A Vanguarda, n.º 1191 (3137), 2 de março de 1900, p. 1; cf. «O Divórcio», in A Pátria, n.º 365, 3 de março de 1900, p. 1.
9-«O Divórcio», in A Pátria, n.º 365, 3 de março de 1900, p. 1.
10-«O Divórcio. Um Inquérito do Diário Ilustrado», in Diário Ilustrado, n.º 9699, 12 de março de 1900, p. 2. Encontrámos a referência a este artigo em Maria de Fátima da Cunha de Moura Ferreira, op. cit., p. 157.
11-Cf. Paula Cristina Costa, «António Ribeiro dos Santos Viegas», in Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), coordenação de Maria Filomena Mónica, vol. III, Lisboa, Assembleia da República / Imprensa de Ciências Sociais, 2006, pp. 1053-1055.
12-Vítor Neto, op. cit., p. 356.
13-Houve ainda uma outra representação, em junho de 1910 (cf. Diário da Câmara dos Senhores Deputados da Nação, sessão n.º 28, 8 de junho de 1910).
14-A lei do divórcio promulgada a 3 novembro de 1910 foi baseada, em boa medida, num projeto de Luís Mesquita de Carvalho (Vítor Neto, op. cit., p. 245), e não no de Sampaio e Melo.