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I
O século XIX foi uma época de grandes transformações no que diz respeito ao pensamento filosófico e científico acerca da natureza do ser humano e da sua eventual posição no mundo natural. Com efeito, as teorias evolucionistas de matriz darwinista, ao demonstrarem que o Homem, na sua essência, não passava de um animal como todos os outros, vieram pôr em causa o entendimento de origem religiosa, até aí predominante, do Homem como o ser superior, a quem tinha sido dado por Deus o lugar central na «Criação»,1 e que, por isso, seria detentor do direito de dispor da Natureza como bem entendesse.
Em simultâneo, o evolucionismo defendia que a evolução do Homem (e das outras espécies animais) ocorria através da sua interação com a própria Natureza, da sua adaptação às condições determinadas por esta, ou seja, «cada entidade viva seria também o resultado do meio ambiente que integrava».2
Estas conclusões levaram a que muitos procurassem reequacionar, igualmente, a relação que o Homem deveria ter com o resto do mundo natural,3 do qual, afinal de contas, era, não só uma parte integrante e inseparável, mas apenas mais uma parte, sem direito a quaisquer privilégios somente porque era, por exemplo, detentor de capacidade racional. Surgem, assim, as raízes teóricas do biocentrismo, a conceção de que «o ser humano não é o único objeto de consideração moral, uma vez que os seres vivos possuem valor por si mesmo, independentemente da sua utilidade sob o ponto de vista humano».4
Pensadores como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, pertencentes à corrente filosófica conhecida como «utilitarismo», sustentavam a «maximização do bem-estar de qualquer ser senciente5 e a minimização do seu sofrimento, o que se traduziria na consideração do padecimento do animal não humano, na elaboração legislativa e na execução de diversas atividades quotidianas. O aumento da felicidade das entidades sencientes justificava a intervenção humana».6 Inspiradas por esta ideia surgiram as primeiras organizações destinadas a promover o bem-estar dos animais, a combater as várias formas de sofrimento a que estes eram submetidos à época e a sensibilizar a sociedade para tal realidade.
O uso de animais em lutas e em vivissecções para fins científicos, por exemplo, era corrente, mas as violências mais frequentes eram as relacionadas com o uso generalizado da tração animal, quer no transporte de pessoas e bens, quer no trabalho agrícola e afim, e que resultavam do excesso de carga, do chicoteamento, da falta de alimentação e hidratação, entre outras.7
Perante este cenário, o número de associações de proteção dos animais multiplicou-se ao longo do século XIX e no início do século XX, em países como a Alemanha, os Estados Unidos da América ou a Grã-Bretanha, tendo esta última sido a pioneira, com a sua Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals a remontar ao ano de 1824.8
Em Portugal, a primeira associação deste género foi a Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa (SPA-Lisboa), fundada em 1875, tendo a sua filial portuense (SPA-Porto) sido criada três anos depois, em 1878. Na altura da formação da SPA-Lisboa, os únicos preceitos legais que garantiam algum tipo de proteção aos animais encontravam-se nos artigos 482.º e 483.º do Código Penal de 1852, os quais previam uma pena que podia ir de uma conjugação de prisão e multa até ao desterro9 para quem ferisse ou matasse qualquer animal doméstico que não lhe pertencesse, «voluntariamente» ou «sem necessidade».10
Porém, o que o legislador procurara salvaguardar com a fixação deste crime não fora o bem-estar dos animais, mas sim a defesa da propriedade alheia,11 não se prevendo no Código qualquer tipo de punição para o caso de um animal que fosse ferido ou morto pelo seu próprio dono. Perante este vazio legal, a SPA-Lisboa, em março de 1877, enviou uma representação à Câmara dos Deputados, que, invocando o exemplo das «nações cultas da Europa e da América», as quais há muito haviam legislado sobre a matéria,12 pedia uma lei que tivesse por «fim coibir e corrigir os atos de crueldade praticados contra os animais».13 Ainda nesse mês, um grupo de deputados, encabeçado por Carlos Testa, que era também membro da direção da SPA-Lisboa, e, nessa qualidade, havia sido um dos assinantes da representação, apresentou na Câmara dos Deputados um projeto de lei visando a proteção dos animais,14 o primeiro em Portugal, tanto quanto nos foi possível apurar.15 O seu artigo 1.º atacava logo a grande falha básica das determinações do Código Penal sobre o assunto: «As disposições legais que consideram crime o mau trato dos animais, em razão de respeito à propriedade, são aplicáveis a esses atos, em razão do carácter de crueldade de que sejam revestidos, e independentemente da razão da ofensa ou dano à propriedade».16 O projeto foi enviado às comissões de legislação civil e de administração pública, e, mais tarde, à comissão de legislação penal, que elaborou um novo projeto, tornado público em abril de 1878.17 Porém, este nunca chegou a ser aprovado, nem sequer discutido, no Parlamento.
II
Só depois da implantação da República um projeto de lei de proteção dos animais voltaria a ser colocado à apreciação dos parlamentares portugueses. O Regulamento Geral dos Serviços de Polícia Higiénica e Sanitária dos Animais, aprovado em 1889, já previa punições para quem maltratasse em público animais domésticos ou os obrigasse a trabalhar se estivessem feridos ou em estado de fadiga, fome, ou doença,18 mas era inadequado para lidar com um quotidiano em que a violência sobre os animais era prática comum.19
Em agosto de 1911, o Deputado Fernão Boto Machado, descrito como «um dos mais estrénuos defensores dos animais»,20 apresentou na Assembleia Nacional Constituinte republicana uma proposta, elaborada pela SPA-Porto, com as bases para um projeto de lei, à qual, no início do ano, o Ministro da Justiça do Governo Provisório e sócio daquela associação, Afonso Costa, já tinha prometido dar apoio.21
Na introdução, a SPA-Porto começava por declarar que «um dos meios mais seguros de conhecer o grau de cultura e de mentalidade coletiva de um povo, em todos os seus múltiplos aspetos, é compulsar os textos da legislação em que esse povo se move dentro da sua órbita social.» Na sua opinião, o Governo Provisório estava, desse modo, no bom caminho, pois desde que assumira o poder tinha vindo a promulgar legislação bastante progressista, que punha Portugal ao nível dos países mais desenvolvidos. Assim, em coerência com o procedimento recente do Executivo, devia avançar-se com uma lei de proteção dos animais tão inovadora como as que haviam sido feitas recentemente para outras áreas pelo jovem regime republicano, pois a regulamentação existente era muito insuficiente.22
A proposta considerava «atos puníveis os maus-tratos exercidos contra os animais, sempre que resultem da ação direta e violenta por parte dos delinquentes, quando tenham por fim produzir nos animais sofrimentos que a necessidade absoluta não justifique». Para lá de não dar um estatuto superior aos animais domésticos – todos os mamíferos e aves selvagens também eram abrangidos – o texto era bastante exaustivo na definição do que eram as práticas classificadas como «maus-tratos», nas quais se incluíam, por exemplo, os abusos habitualmente infligidos aos animais de trabalho – carga excessiva, chicoteamento, exposição a condições climáticas extremas, uso de animais doentes, feridos, ou famintos, etc. – o transporte ou conservação de animais em estruturas demasiado apertadas e sem acesso a água e alimentos, o abandono de animais domésticos debilitados, a destruição de ninhos, o esfolamento de animais ainda vivos, os «jogos ou diversões de que possam resultar mutilação, estropiamento ou morte de animal», entre muitas outras. Em síntese, tratava-se de «toda a ação violenta que tenha por fim causar aos animais sofrimentos, dores ou torturas desnecessárias e injustificáveis por mero divertimento e malvadez, ou para conseguir deles esforços visivelmente superiores às suas forças, ou ainda para lhes exigir trabalho de que por natureza sejam incapazes». Previam-se exceções, tais como no caso da caça, de situações de defesa pessoal, da morte de animais para fins alimentares ou do seu uso para experiências científicas, mas sempre com a salvaguarda de que não poderia haver sofrimento desnecessário. As penas previstas eram a multa e, em caso de reincidência ou «considerável grande malvadez», a prisão, que podia variar entre 5 a 25 dias.23
Para lá da dimensão repressiva, a proposta também refletia a preocupação que as SPA tinham com a importância da prevenção dos maus-tratos aos animais. O artigo 8.º estabelecia que, de modo «a incutir no espírito das crianças o sentimento de piedade para com os seres que zoologicamente nos são inferiores», os professores primários ensinariam às crianças «noções de proteção e amor pelos animais, prelecionando-as sobre os serviços que prestam ao Homem».24 Metade do valor das multas cobradas seria mesmo usado para premiar os alunos do ensino primário que mais se notabilizassem como protetores dos animais.25 A República desejava tornar cada português num cidadão esclarecido, altruísta e solidário,26 e educar para o respeito pelos animais faria, assim, parte indispensável da sua formação moral e cívica.
Finalmente, note-se que as SPA de Lisboa, Porto e Funchal, bem como todas as que viessem a ser constituídas de futuro, adquiriam o estatuto de estabelecimentos de utilidade pública. A sua atividade de vigilância e denúncia era também reforçada, pois passavam, não só, a ter à sua disposição, para esse efeito, dois agentes da polícia, como qualquer autoridade policial, administrativa ou municipal teria que lhes prestar auxílio sempre que o solicitassem.27
A proposta foi admitida e enviada à comissão de legislação, mas o processo não avançou durante os meses posteriores. Entretanto, a SPA conseguia um apoio de peso. A 30 de novembro, o Presidente da República, Manuel de Arriaga, deslocou-se à sede da SPA-Lisboa naquela que foi a sua primeira visita oficial do mandato,28 um gesto que poderá ter exercido alguma pressão sobre o Parlamento para que retomasse a apreciação do documento, o que, de facto, se veio a verificar no início do ano seguinte. A 18 de janeiro de 1912, a comissão de legislação criminal apresentou um projeto de lei de proteção dos animais na Câmara dos Deputados (projeto n.º 27), embora com alterações importantes em relação à proposta original, desde logo, com a dimensão preventiva da proposta da SPA-Porto a ser eliminada por completo. Já na parte repressiva, designava «toda a violência exercida sobre os animais» como «ato punível», porém já não se especificava de que «violência» se tratava, ainda que fossem reservados dois artigos para explicitamente proibir o «tiro aos pombos» e os espetáculos de luta entre animais. Todavia, as penas fixadas passavam a ser mais pesadas, tanto no valor das multas, como no tempo de prisão, mesmo que o uso de animais «extenuados, famintos, chagados ou doentes» em trabalho constituísse uma infração com punição distinta. Quanto às SPA, não ganhavam o estatuto de estabelecimentos de utilidade pública, apesar de até reforçarem os restantes privilégios da sua proposta inicial: em Lisboa e no Porto, os agentes policiais ao seu dispor passavam a ser seis, mantendo-se os dois agentes para o resto do País; as autoridades administrativas e policiais teriam que prestar auxílio aos «serviços de propaganda por impressos» das SPA.29
III
O projeto foi aprovado na generalidade, sem discussão. Seguiu-se, de imediato, o debate na especialidade, mas este logo ficou entravado pelas críticas feitas ao modo generalista como estava redigido o artigo 1.º. Para vários deputados, não era claro a que violências em concreto é que o artigo aludia, o que poderia levar a dificuldades ou excessos na sua aplicação. Jorge Nunes foi o primeiro a pronunciar-se: «Pedi a palavra sobre o artigo 1.º deste projeto porque, parecendo à primeira vista muito simples, humanitário mesmo, não se sabe, contudo, quais sejam as violências a que ele se refere […] Trata-se simplesmente de dar uma facada num animal, ou obrigá-lo a puxar carga superior às suas forças? Não se pode deixar ao critério da polícia o determinar quais sejam essas violências pelos abusos a que isso pode dar lugar». Seguiram-se diversas intervenções que exploraram a mesma linha de raciocínio. José da Silva Ramos questionou a comissão sobre qual o lugar, de acordo com o projeto, dos «trabalhos e experiências feitas nos laboratórios com animais». Manuel de Brito Camacho lembrou que podia ser interpretada «como violência o castigo do animal que se recusar a trabalhar, o que não é regular. Neste caso é que se há de saber se o animal se recusa a trabalhar, ou puxa carga superior à sua força». José Afonso Pala perguntou se esporear um cavalo que se recusasse a andar também era violência, pois se assim fosse, quem andava a cavalo estava em constante risco de prisão. Já António Pádua Correia expôs as suas dúvidas nos seguintes termos: «Desejava que se dissesse no artigo 1.º quais as categorias de animais incluídos nesse artigo. Se no projeto se proíbe o tiro aos pombos, deve-se dizer, se se proíbe também o tiro aos outros animais. Não sei o que se entende por violências exercidas sobre os animais. É quando se mata um coelho, batendo-lhe nas orelhas? E quando se torce o pescoço a um pombo?». Até Jorge Nunes voltou à carga, interrogando-se sobre se a castração também era considerada violência, mesmo tendo em conta que muitos animais só eram domesticáveis com recurso àquela prática.30 Impõe-se assinalar que a proposta original da SPA-Porto dava resposta a todas, ou quase todas, estas dúvidas, ou seja, o trabalho da comissão acabou por ter um efeito contraproducente: dificultou, em vez de ter facilitado, a aprovação de uma lei de proteção dos animais.
O relator da comissão de legislação criminal, Adriano Mendes de Vasconcelos, procurou remediar a imprecisão do artigo 1.º lançando uma proposta que esclarecia que a violência nele referida era aquela «não justificada por absoluta necessidade». Em simultâneo, tentou rebater as acusações como pôde, escudando-se, sobretudo, no artigo 10.º, que previa que às autoridades caberia, depois, a elaboração dos regulamentos que detalhariam os atos violentos mencionados no projeto. No entanto, o seu esforço não obteve sucesso. Jorge Nunes propôs a eliminação do artigo 1.º, no que foi apoiado por Silva Ramos, Afonso Pala e Alexandre de Barros. Este último, embora frisando a importância de combater a violência contra os animais, aproveitou para questionar a sua prioridade: «Mas há ainda um facto grave que quero notar à Câmara, e é que nós estamos aqui a advogar a defesa dos animais, mas ainda ninguém nesta Câmara veio pugnar pelos menores, que trabalham nas fábricas, e pelas crianças que por essas ruas transportam cargas superiores às suas forças. Este é um facto que também nós devemos atender.»31
Foram, depois, apresentadas duas moções: uma, por Alexandre de Barros, que reenviava o projeto para a comissão para lhe ser introduzida a parte regulamentar, a fim de permitir, então, um verdadeiro debate; outra, por Pádua Correia, que simplesmente retirava o projeto de discussão. Para Mendes de Vasconcelos, o efeito prático de qualquer uma delas seria o mesmo: o adiamento da discussão para um futuro indeterminado. Seria, nas suas palavras, «enterrar o projeto». Segundo ele, o que havia a fazer era continuar a discutir a proposta no sentido do seu aperfeiçoamento, mas na Câmara dos Deputados, não na comissão: «o que este projeto tem de mau emenda-se aqui; a comissão fez o que podia fazer sobre o projeto, é inútil mandá-lo outra vez à comissão, a não ser que a Câmara defina com precisão a orientação que quer dar ao novo projeto. […] desde que à comissão não sejam dados mais elementos do que aqueles que já tinha, é-lhe impossível trazer um projeto diferente deste que aqui se encontra…». Vasconcelos foi secundado por António Granjo, seu colega na comissão, no entanto, não conseguiu convencer os restantes deputados da sua razão. Pádua Correia desistiu da sua moção a favor da de Alexandre de Barros, que foi aprovada. Nesse dia, no jornal A Capital, podia ler-se: «Na Câmara fala-se nos direitos das mulheres e de proteção aos animais. Por gentileza, porém, para com as primeiras, os segundos são enviados para a comissão de legislação criminal»…32
Na sessão do dia 19, a comissão de legislação criminal, pela voz de Caetano Gonçalves, apresentou a sua demissão, para logo recuar, depois de ter conseguido garantias dos deputados que, nas intervenções da véspera, não tinha havido qualquer intenção de a desrespeitar ou pôr em causa a sua competência. Dias depois, Alexandre de Barros enviou à comissão um projeto de lei da sua autoria, como contributo para o melhoramento do projeto da comissão. A partir daqui, os piores receios de Mendes de Vasconcelos começaram a tomar forma. O tempo foi passando e a comissão nada produzia em relação à legislação de proteção dos animais. Na sessão parlamentar de 22 de fevereiro, noticiava-se que a SPA enviara uma representação à Câmara dos Deputados a pedir que o projeto de lei voltasse a ser discutido em plenário. Talvez como instrumento de pressão sobre a Câmara, a SPA-Porto chegou a publicar um pequeno livro intitulado Apreciações e Comentários ao Projeto de Lei de Proteção aos Animais em Discussão no Congresso Nacional, com depoimentos de vários juízes dando a sua opinião favorável à aprovação do projeto de lei e sugerindo as alterações que consideravam pertinentes. Mas de nada valeu. Decorreram três anos e meio, antes que tenha havido qualquer desenvolvimento no processo, até que, em agosto de 1915, o deputado Pedro Sá Pereira pediu a renovação da iniciativa do projeto de lei n.º 27. Enviada para a comissão de legislação criminal, acabou esquecida, juntamente com o resto da documentação precedente.33
IV
Só em 1919 Portugal conheceria a sua primeira lei de proteção dos animais. Durante a agitação política e social que atingiu o País nos meses após a queda do sidonismo e a restauração da «República Velha», a SPA-Lisboa constituiu uma comissão com o propósito de obter recursos para poder desenvolver o seu trabalho, particularmente a de prestar assistência e socorros a animais doentes ou feridos. O então Presidente da República, o almirante João do Canto e Castro, recebeu-a em audiência particular a 2 de abril, no âmbito da qual se colocou ao dispor da SPA para ajudar naquilo que esta necessitasse para desenvolver o seu trabalho, prometendo, inclusive, exercer a sua influência junto do Governo. É possível que a ação de Canto e Castro tenha, de facto, contribuído para que a segunda démarche da SPA, desta vez, junto do próprio Governo, tenha tido efeitos práticos muito importantes e rápidos. A comissão reclamou «a publicação de um decreto de franca proteção aos animais, em harmonia com a legislação em vigor nos outros países da Europa e América desde há muitos anos», e, a 10 de maio, no célebre Diário do Governo de trinta suplementos, o maior de sempre, alcançou, finalmente, o seu objetivo, há tanto tempo perseguido, com a promulgação do decreto n.º 5650, aprofundado, depois, a 12 de junho do mesmo ano, pelo decreto n.º 5684. Assinaram os dois decretos Domingos Pereira, o Presidente do Ministério e Ministro do Interior, e António Granjo, Ministro da Justiça. O primeiro foi também subscrito por Amílcar Ramada Curto, o Ministro das Finanças. Note-se que tanto Granjo, como Ramada Curto, haviam feito parte da comissão de legislação criminal responsável pelo projeto de lei n.º 27, o que pode ter sido um fator determinante neste desfecho.34
No que dizia respeito ao papel e privilégios das SPA no contexto da vigilância, combate e denúncia de maus-tratos a animais, o diploma de maio ignorou tudo o que havia sido incluído no projeto de lei discutido em 1912. Neste aspeto, ficou aquém do desejável. Porém, ainda que se tenham retirado os artigos que proibiam o tiro aos pombos e os espetáculos de luta entre animais, bem como outros menos importantes, o decreto manteve grande parte das disposições do projeto que o antecedeu na parte relativa à repressão de atos de violência contra os animais. Assinale-se que o limite máximo da punição pecuniária prevista para quem abusasse de animais em contexto de trabalho aumentou consideravelmente, de 4$000 para 15$000 réis, e que, embora o artigo 1.º, o da discórdia, continuasse com a mesma redação - «toda a violência exercida sobre os animais é considerada ato punível» - o decreto de junho veio definir de que violência se tratava: obrigar animais a trabalhar feridos, doentes, cansados, com excesso de carga, com arreios, ou outros «instrumentos», que lhes causassem desconforto; espancar ou apedrejar animais, bem como atiçá-los contra outras pessoas; «esfolar animais ou depenar aves, antes de estarem mortos, bem como cegar aves para cantarem»; abandonar animais recém-nascidos, velhos, ou doentes; «amarrar aos cães, gatos ou quaisquer outros animais, objetos que os mortifiquem e façam correr, atar cordéis a pássaros ou a quaisquer outras aves para as arrastar, e bem assim lançar fogo a animais, untando-os com petróleo, ou verter sobre eles substâncias corrosivas, água quente, etc.».35
A versão do projeto da SPA-Porto que Boto Machado tinha apresentado na Assembleia Nacional Constituinte era bastante mais abrangente na listagem de atos que constituíam violência contra animais, mas os dois decretos de 1919 acabaram por, no fim de contas, constituir a legislação possível à época. À falta de estudos historiográficos sobre este assunto em Portugal, resta-nos arriscar a explicação de que seria difícil conseguir ir mais além em termos legais, por se ter a noção de que qualquer lei com preceitos demasiado abrangentes seria impossível de implementar no quotidiano de uma população maioritariamente rural, pobre, analfabeta, demasiado dependente da exploração animal (para trabalho, alimentação, comércio, etc.) e com uma cultura enraizada de violência para com os animais que atravessava todas as classes sociais. Ainda assim, apesar de tardia – surgiu quase um século depois das pioneiras leis britânicas – e das suas lacunas, a conjugação dos decretos de maio e junho de 1919 não pode deixar de ser lembrada como um marco fundamental na história político-legal da proteção dos animais em Portugal.
Ricardo Revez
1-Cf. David Masci, «Darwin and His Theory of Evolution», in Pew Research Center, February 4, 2009, https://www.pewforum.org/2009/02/04/darwin-and-his-theory-of-evolution/.
2-Cf. Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, «A Educação e o Movimento de Defesa dos Animais Não Humanos em Portugal na Transição do Século XIX para o Século XX», in Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 6, n.º 10, janeiro-junho de 2013, p. 12.
3-Cf. Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, op. cit., p. 10.
4-Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, op. cit., pp. 12-13.
5-Um ser senciente é um ser capaz de experienciar sensações, positivas ou negativas, como bem-estar, prazer, dor, sofrimento, medo, etc.
6-Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, op. cit., p. 11.
7-Cf. Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, op. cit., pp. 12-13.
8-Cf. Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, op. cit., p. 13; cf. «Animal Welfare», in Politics.co.uk, https://www.politics.co.uk/reference/animal-welfare.
9-Segundo o artigo 39.º do Código Penal de 1852, «a pena de desterro obriga o réu a permanecer em um lugar determinado pela sentença no continente ou ilha, em que o crime for cometido, ou a sair da comarca por espaço de tempo, que não exceda a três anos» (Código Penal Aprovado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, p. 24).
10-Código Penal Aprovado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, p. 141.
11-Cf. Diana Manuel Silva Vilas Santos Simões, A Criminalização dos Maus-Tratos a Animais de Companhia – A Aprovação da Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto, dissertação de mestrado em Direito e Ciência Jurídica – Especialidade em Direito Penal e Ciências Criminais, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2017, p. 94.
12-As primeiras leis britânicas sobre a matéria remontavam a 1822 (cavalos e gado) e a 1835 (extensão a outros animais domésticos e selvagens) (cf. Daniel James Carr, «The Historical Development of Animal Welfare Law in Nineteenth Century Scotland», October 31, 2017, pp. 9-11. Disponível em SSRN: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3062845 ).
13-Arquivo Histórico Parlamentar – Fundo da Câmara dos Deputados (1822-1910) – Projeto de lei n.º 67-A, secção I/II, cx. 584, doc. 36.
14-Cf. Diário da Câmara dos Senhores Deputados, n.º 53, sessão de 21 de março de 1877, pp. 726-727.
15-Isto se excluirmos as tentativas anteriores de abolição das touradas. Com efeito, optámos por não fazer referência neste artigo às iniciativas legislativas relacionadas com a tourada porque esta, embora tenha uma óbvia ligação com a problemática da proteção dos animais, constitui um fenómeno distinto, com um cariz muito particular, e que, por isso, teria sempre que ser tratado à parte.
Para conhecimento dos vários momentos em que se legislou, ou tentou legislar, em Portugal, sobre a proteção dos animais, recorremos aos seguintes documentos:
-«Nota Técnica apensa a Ofício n.º 361/XIII/1.ª – CACDLG/2016, tendo como Parecer do Projeto de Lei n.º 209/XIII/1.ª (PS), de 11 de maio de 2016», pp. 6-7.
-«Nota Técnica Projeto de Lei n.º 879/XIII (3.ª) (PAN) Determina a abolição de corridas de touros em Portugal Data de admissão: 17 de maio de 2018 Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto (12.ª)».
16-Diário da Câmara dos Senhores Deputados, n.º 53, sessão de 21 de março de 1877, p. 1062.
17-Cf. Diário da Câmara dos Senhores Deputados, n.º 62, sessão de 10 de abril de 1878, pp. 1061-1062.
18-Cf. Coleção Oficial de Legislação Portuguesa – Ano de 1889, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889, p. 70.
19-Cf. Alexandra Amaro, Margarida Louro Felgueiras, Marina Prieto Lencastre, op. cit., p. 19, p. 22.
20-Proteção aos Animais – Projeto de Lei Apresentado à Assembleia Nacional Constituinte, Porto, Sociedade Protetora dos Animais, 1911.
21-Cf. Apreciações e Comentários ao Projeto de Lei de Proteção aos Animais em Discussão no Congresso Nacional, Porto, Sociedade Protetora dos Animais, 1912.
22-Para este parágrafo, cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 37.ª sessão, 3 de agosto de 1911, pp. 4-5.
23-Para este parágrafo, cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 37.ª sessão, 3 de agosto de 1911, pp. 5-6.
24-Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 37.ª sessão, 3 de agosto de 1911, p. 6.
25-Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 37.ª sessão, 3 de agosto de 1911, p. 6.
26-Cf. Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 2.ª edição, Lisboa, Editorial Notícias, 2000, p. 286.
27-Para este parágrafo, cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 37.ª sessão, 3 de agosto de 1911, p. 6.
28-Cf. «Visita do Chefe do Estado à Sociedade Protetora dos Animais», in O Zoófilo – Órgão da Sociedade Protetora dos Animais, 35.º ano, 15 de Dezembro de 1911, pp. 1-2.
29-Exceto onde já assinalado com nota própria, para este parágrafo, cf. Diário da Câmara dos Deputados, 36.ª sessão, 18 de janeiro de 1912, pp. 16-17.
30-Para este parágrafo, até este ponto, cf. Diário da Câmara dos Deputados, 36.ª sessão, 18 de janeiro de 1912, pp. 17-18.
31-Para este parágrafo, cf. Diário da Câmara dos Deputados, 36.ª sessão, 18 de janeiro de 1912, pp. 17-18.
32-Para este parágrafo, cf. Diário da Câmara dos Deputados, 36.ª sessão, 18 de janeiro de 1912, pp. 19-21; Herculano Nunes, «Na Câmara fala-se nos direitos das mulheres e de proteção dos animais», in A Capital, n.º 529, 18 de janeiro de 1912, p. 2.
Com efeito, previamente à discussão sobre o projeto de lei de proteção dos animais, o deputado Alexandre Braga interveio sobre a apresentação de um projeto de lei de ampliação dos direitos das mulheres.
33-Para este parágrafo, cf. Diário da Câmara dos Deputados, 37.ª sessão, 19 de janeiro de 1912, pp. 11-12; cf. Diário da Câmara dos Deputados, 42.ª sessão, 26 de janeiro de 1912, pp. 15-16; cf. Diário da Câmara dos Deputados, 56.ª sessão, 22 de janeiro de 1912, p. 3; cf. Diário da Câmara dos Deputados, 37.ª sessão, 19 de janeiro de 1912, pp. 11-12; cf. Diário da Câmara dos Deputados, 42.ª sessão, 26 de janeiro de 1912, pp. 15-16; cf. Diário da Câmara dos Deputados, 56.ª sessão, 22 de fevereiro de 1912, p. 3; cf. Diário da Câmara dos Deputados, 31.ª sessão, 2 de agosto de 1915, p. 25; cf. Apreciações e Comentários ao Projeto de Lei de Proteção aos Animais em Discussão no Congresso Nacional, Porto, Sociedade Protetora dos Animais, 1912, pp. 8-13.
34-Para este parágrafo, cf. A Direção, «Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa – Gerência de 1918-1919», in O Zoófilo – Órgão das Sociedades Protetoras dos Animais, n.º 5 a n.º 8, 10 de agosto de 1919, p. 3; cf. Decreto n.º 5650, in Diário do Governo, 1.ª série, n.º 98, 10 de maio de 1919, pp. 1066-1067; cf. Decreto n.º 5684, in Diário do Governo, 1.ª série, n.º 111, 12 de junho de 1919, p. 1518.
35-Para este parágrafo, cf. Decreto n.º 5650, in Diário do Governo, 1.ª série, n.º 98, 10 de maio de 1919, pp. 1066-1067; cf. Decreto n.º 5684, in Diário do Governo, 1.ª série, n.º 111, 12 de junho de 1919, p. 1518.
Na sua terceira passagem pela liderança do Governo, Domingos Pereira, em setembro de 1925, haveria, ainda, de ser responsável por um decreto que reiterava e especificava ainda mais a proibição de abusos sobre animais de trabalho, mesmo que, por outro lado, parecesse, em algumas das suas determinações, mais preocupado com a visibilidade desses abusos e com o prejuízo económico que poderiam causar, do que com o sofrimento envolvido.