No centenário do nascimento de Sophia, recordamos a sua atividade parlamentar.
Sophia, e basta o nome próprio para se saber de quem falamos, nasceu há 100 anos, a 6 de novembro de 1919, no Porto. Foi pela cidade que a viu nascer que, mais de 50 anos decorridos, foi eleita Deputada pelo Partido Socialista (PS) à Assembleia Constituinte, na sequência das eleições realizadas a 25 de Abril de 1975, um ano depois da Revolução.
Sophia foi uma das 19 Deputadas inicialmente eleitas, tendo sido a única mulher a presidir a uma Comissão, a Comissão para a Redação do Preâmbulo da Constituição, cujo texto se mantém inalterado desde 1976[1].
Preâmbulo da Constituição de 1976.
Preâmbulo da Constituição de 1976.
É de Sophia a frase A Poesia está na rua[2], que, juntamente com as pinturas de Maria Helena Vieira da Silva, marcam de forma perene a iconografia associada ao 25 de abril de 1974.
E, tal como convocou a poesia para a rua, fê-lo também para o Hemiciclo da então Assembleia Constituinte, através das suas intervenções. Nelas sente-se o cuidado com as palavras, a exigência quanto à liberdade de criação artística e cultural e, também, algum desencanto.
A 2 de agosto de 1975, protesta contra a integração do Secretariado de Estado da Cultura no Ministério da Comunicação Social, o que designa de “assalto aos órgãos de informação”, começando por lembrar que “Portugal inteiro acolheu o 25 de Abril com uma alegria que não esqueceremos. A Revolução que então vimos pareceu-nos a revolução exemplar.”
Mais à frente dirá que a “revolução fez-se para mudarmos a vida política, económica e social deste país e não para mudarmos de povo.”
E ainda que “a demagogia é a pornografia da política. Temos visto um país inteiro transformado em supermercado de slogans.
A demagogia tem sido a inversão da Revolução, a traição cultural à Revolução, e esta traição tem sido feita, sobretudo, nos órgãos de comunicação social, ocupados pelas falsas vanguardas ideológicas.”
Conclui afirmando “Queremos estruturas culturais para a revolução cultural, e não queremos estruturas culturais para o dirigismo”.
A 3 de setembro de 1975, no debate sobre a liberdade de criação cultural, começa por referir que:
“Num país e num mundo onde há famílias sem casa e doentes sem tratamento e sem hospital a questão da liberdade de criação artística e intelectual pode parecer uma questão secundária. (…)
A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar - para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução, é exatamente porque é capaz de criar cultura.”
Prossegue depois criticando o que considera o dirigismo político da cultura:
“Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reacionária. (…)
O lugar da cultura é a comunidade. Ultrapassar o uso burguês da cultura e pôr a cultura em comum é uma tarefa essencial do socialismo. Mas esta tarefa é uma tarefa de invenção. E inventar é uma tarefa da liberdade.
Por isso, toda a população tem direito à inviolabilidade e à livre expressão das formas de cultura que lhe são próprias. Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura.”
A 4 de outubro de 1975 intervém na defesa dos direitos dos deficientes, pela sua integração plena na sociedade e por uma nova atitude perante a deficiência: “uma nova atitude do homem em frente do homem, numa nova cultura do comportamento humano.”
Na última intervenção que profere na Assembleia Constituinte, a 11 de dezembro de 1975, no debate sobre a organização do poder político, Sophia defende a separação do poder militar do poder político e a reformulação do Pacto MFA-Partidos, assinado em abril de 1975[3]:
“Queremos ser regidos por leis e não queremos ser regidos por regimentos.
Queremos um exército que garanta a construção da democracia e não um exército que se autodestrói ou destrói a democracia.
Porque numa sociedade moderna o poder militar e o poder político são de natureza diferente e a confusão entre um e outro é, por sua natureza, ambígua. Daí em grande parte a instabilidade exaustiva e destrutiva que se apoderou da Revolução.
Parece-me por isso evidente que devemos meditar sobre os acontecimentos destes últimos meses. Devemos aprender a lição do erro. Sair do fascismo não foi fácil. E sob a verbosa carapaça de teorias temos vivido às apalpadelas à procura do exacto contorno do real.”
Depois da Constituinte não voltou a ser eleita Deputada. Numa entrevista concedida a Maria Armanda Passos e publicada no Jornal de Letras, a 16 de fevereiro de 1982, dirá a este propósito:
“(…) quando estava na Assembleia Constituinte tive uma experiência importante. Saí um dia mais cedo e atravessei o Bairro Alto a pé. Na rua havia um pequeno grupo de crianças a brincar na soleira de uma porta. E chamaram-me e perguntaram-me se eu era a Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu disse que sim, mas como é que elas sabiam? Elas responderam que a professora estava a ler uma história minha na aula e tinham visto um retrato meu. Fiquei a conversar com as crianças – e pensei, de repente, que escrever era a minha verdadeira participação política.”
Sophia morreu no dia 2 de julho de 2004. Dez anos depois, a Assembleia da República concedeu honras de Panteão Nacional aos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen, “homenageando a escritora universal, a mulher digna, a cidadã corajosa, a portuguesa insigne, e evocando o seu exemplo de fidelidade aos valores da liberdade e da justiça que nos devem inspirar como comunidade e projetar como País.”
Ver brochura de homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen.
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[1] Em 2010 foram apresentadas propostas de eliminação do preâmbulo, pelos grupos parlamentares do PSD e do CDS-PP, tendo o Deputado Mota Amaral (PSD) afirmado o seguinte:
“O aspeto afirmativo do preâmbulo no que toca à garantia dos direitos fundamentais, no que toca à rejeição da ditadura, no que toca ao abrir para Portugal, finalmente, de uma democracia pluralista em toda a sua amplitude, sobretudo na base fundamental dela, que é o direito de sufrágio, que nunca existiu antes em Portugal (há, de facto, aqui uma fundação de um regime democrático numa plenitude como nunca tinha existido anteriormente no nosso País), é daqueles conteúdos que, na minha opinião pessoal, devemos manter e respeitar, respeitando assim também a Assembleia Constituinte e o seu trabalho, tão fundamental para a instauração da democracia no nosso País.”
[2] Slogan criado por Sophia para as comemorações do 1.º de maio de 1974
[3] O primeiro Pacto MFA-Partidos, assinado antes das eleições para a Constituinte, previa a criação de dois órgãos de soberania militares: o Conselho da Revolução e a Assembleia do MFA. Um segundo pacto seria assinado em fevereiro de 1976, suprimindo a Assembleia do MFA e restringindo as competências do Conselho da Revolução.