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ANTES E DEPOIS | AZULEJOS DO REFEITÓRIO DOS MONGES

O Palácio de S. Bento, sede do Parlamento português, alberga um significativo núcleo azulejar do último terço do século XVIII com painéis historiados da Vida de S. Bento. Apesar de truncado e profundamente danificado por obras executadas na primeira metade do século XX, foi objeto de restauro em 1997/1999 e em 2010/2011, o que permitiu a sua parcial reconstituição e a preservação in situ, no antigo Refeitório dos Monges do Mosteiro de S. Bento da Saúde.
Refeitório dos Monges, onde na atualidade está instalado o Centro de Acolhimento ao Cidadão.
O Refeitório dos Monges em 1996.
O painel 11 reconstituído (pormenor).
Painéis colocados em suporte móvel à direita (9 e 10) e à esquerda (4 e 5), estes ainda sobre caixa-de-ar.
O antigo Mosteiro de S. Bento da Saúde incluía diversos núcleos de revestimento parietal com azulejos, no entanto, apenas se manteve na localização original o conjunto que no Refeitório dos Monges ilustrava episódios da Vida de S. Bento, ainda que mutilado e incompleto.

Delineado pelo arquiteto Baltasar Álvares, o Mosteiro começou a ser construído em 1598 e foi habitado em 1615, mas o refeitório só viria a ser erguido na primeira metade do século XVIII e concluído já após o terramoto de 1755. Utilizado entretanto como celeiro e armazém, serviu durante cerca de um ano, logo após o cataclismo que destruiu grande parte da cidade, para albergar os doentes do Hospital de Todos os Santos, desaparecido com o terramoto. Apenas seria terminado na década de 1770, com o revestimento dos panos de parede entre cada janela por painéis de azulejos pintados a azul sobre branco, cada um ilustrando um episódio da vida do Santo Patriarca. Molduras rococó policromas a amarelo, roxo manganês e verde enquadram os episódios, separados ainda por pilastras rematadas por vasos floridos. A decoração restante era composta pelo mobiliário adequado à função do espaço, bancos corridos embutidos na parede à volta da sala e mesas de pedra.

O encerramento do Mosteiro decretado por D. Pedro IV em setembro de 1833 e a adaptação do edifício a Palácio das Cortes, para albergar as câmaras parlamentares, originaram diferentes ocupações do espaço. Aquela que maiores alterações produziu, cerca de 1930, foi a instalação do depósito do Arquivo da Torre do Tombo (que ocupava então grande parte da ala direita do edifício) com a demolição da abóbada do teto, substituída por placa de betão, e a criação de um piso intermédio aproveitando o duplo pé direito. Simultaneamente a fachada lateral norte do edifício foi reformulada, à semelhança das restantes, revestida de cantaria e reorganizados os vãos das janelas, com novas aberturas, segundo o projeto neoclássico estabelecido por Ventura Terra na reconstrução da ala direita do Palácio das Cortes, após o incêndio que destruiu a sala da Câmara dos Deputados em 1895.

Estas obras adulteraram profundamente o espaço, foram mutilados os pináculos de cantaria do remate superior de cada painel de azulejos, destruído um número indeterminado de painéis e mutilados três, além da demolição da abóbada. Por outro lado, foram instaladas estantes que encobriram os azulejos ao longo de dezenas de anos. A construção de novo edifício para o Arquivo Nacional libertou o antigo Refeitório dos Monges, em 1990, para outras ocupações, agora na posse da Assembleia da República.

O Presidente da Assembleia da República António Almeida Santos determinou, em 1996, que fosse aí instalada uma exposição permanente, pelo Museu, sobre a história do edifício e do parlamentarismo em Portugal, o que originou a recuperação do espaço. O revestimento azulejar, agora incompleto e mutilado, necessitava de uma profunda intervenção para limpeza e tratamento de patologias, a que se associavam as questões relativas às soluções a adotar nas áreas dos roços correspondentes aos bancos retirados das paredes e, sobretudo, o que fazer com os três painéis truncados, na parede lateral direita.

Na tentativa de reconstituição de todo o conjunto iconográfico original, foi feita uma pesquisa alargada para encontrar os painéis retirados cerca de 1930, mas concluímos que foram destruídos sem qualquer registo que nos permita conhecer o número exato ou as cenas da Vida de S. Bento representadas. Relativamente aos três painéis mutilados nessa data, colocavam-se três hipóteses: retirá-los e encaixotar os azulejos, mantê-los incompletos ou procurar reconstituir as cenas que representavam. Optámos pela terceira hipótese, considerando que a retirada dos azulejos seria uma perda agravada dos danos já causados anteriormente. Investigada a existência de séries iconográficas com tema idêntico foi localizada em Tibães uma cuja fonte foi a mesma utilizada pelo pintor dos azulejos do Mosteiro de S. Bento da Saúde.

O Mosteiro de S. Martinho de Tibães, casa-mãe da Congregação Beneditina Portuguesa, encomendou a uma oficina lisboeta, em 1769, a série de azulejos sobre a Vida de S. Bento para revestimento das paredes do claustro do cemitério, onde foram colocados em 1770. Série muito mais vasta e numerosa, ainda que numa diferente escala de representação, inspirada, tal como a de Lisboa, nas gravuras de Bernardino Passeri para a obra Speculum et exemplum christicolarum. Vita Beatissimi Patris Benedicti editada em Florença pelo Abade de Montecassino, Ângelo Sangrino, em 1586 e reeditada em Roma em 1587. Os três episódios mutilados do refeitório de Lisboa encontram-se representados na íntegra na série de Tibães, o que permitiu, após adaptação de escala, a sua reconstituição e a notória valorização de todo o conjunto patrimonial.

A representação iconográfica inicia-se à esquerda, junto à porta de acesso ao Refeitório a partir do claustro parcialmente construído no segundo quartel do século XVIII (do qual já nada resta), numa sequência de onze episódios que evocam a vida do Patriarca da Ordem Beneditina. Na parede lateral esquerda seis painéis, um de maiores dimensões na parede frontal, quatro na parede lateral direita, dos quais três estavam truncados:

1. Nascimento de S. Bento em Núrcia
2. S. Bento parte para Roma para estudar
3. Milagre do crivo
4. S. Bento eremita nas grutas de Subiaco
5. S. Bento, eremita, alimentado por Fr. Romão
6. S. Bento martiriza-se pelas tentações da carne
7. Milagre do corvo, de maiores dimensões, ao centro na parede frontal, correspondente à mesa do Abade
8. S. Mauro e S. Plácido ingressam no mosteiro
9. Milagre da foice
10. S. Mauro salva S. Plácido de morrer afogado
11. Destruição do templo de Apolo em Montecassino

Entre os painéis 1 a 8, sob cada janela, o rodapé azulejar forma painéis retangulares com cenas de género retiradas de gravuras setecentistas, retratando cenas de caça, de pesca ou pastoris, portos marítimos e monges mendicantes. Nada resta dos painéis correspondentes nas duas outras paredes do retângulo formado pelo Refeitório. Assim, foram destruídos pelo menos três painéis historiados da Vida de S. Bento, dois na parede lateral direita e um na parede confinante com a área da cozinha conventual, e cinco com cenas de género, também na parede lateral direita.

As questões inerentes à reconstituição dos três painéis mutilados, de maior complexidade e morosidade, levaram à organização da intervenção de restauro, iniciada em 1997 e concluída em 1999, em duas fases distintas. A primeira abrangeu os painéis 1 a 7, em que foram levantados os azulejos danificados, feita a limpeza e dessalinização, recolocação e reintegração cromática após os preenchimentos necessários. Para preencher os roços correspondentes à implantação dos bancos do refeitório, foram manufaturados novos azulejos esponjados a roxo manganês, idênticos a outros já existentes, e o rodapé foi refeito com a recolocação simétrica dos azulejos amarelos e azuis esponjados, que ao longo dos séculos tinham sido alterados.

A segunda fase desta intervenção foi dedicada à recuperação do silhar de azulejos da parede lateral direita, com os painéis 9 a 11 retirados na totalidade. Além do tratamento idêntico aos anteriores, as áreas em falta foram preenchidas por azulejos manufaturados por ceramistas que procederam ao levantamento do desenho correspondente em Tibães e adaptação à escala da representação no mosteiro de Lisboa. Chacotas, vidrados e esmaltes foram ensaiados sucessivamente até se conseguir a adequada proximidade ao original, ainda que, por questões deontológicas, seja percetível a área reconstruída. Estes painéis foram, obrigatoriamente, colocados em suporte móvel de placas de Aerolam, pelo facto de parte da sua localização original estar atualmente ocupada com vãos de janelas, placas colocadas, por sua vez, nos panos de parede criados após as obras dos anos 30 do século XX.

A recuperação concluída em 1999 seria, no entanto, prejudicada por problemas de humidade por capilaridade na parede lateral esquerda, agravada sucessivamente por outras obras. Uma intervenção pontual em 2005 substituiu o revestimento de tinta acrílica dos panos superiores das paredes por cal, após picagem, para permitir a permeabilidade e limitar a concentração de sais. Intervenção insuficiente, já que o excesso de humidade continuou a originar a existência de sais nas superfícies vidradas dos azulejos, nas juntas e nas zonas com craquelé, progredindo para os remates superiores em alguns painéis, causando a pulverização da cerâmica vidrada e o destacamento do suporte com grave risco de queda dos azulejos.

A gravidade do estado de conservação dos painéis 3 a 5, e dos painéis de cenas de género adjacentes, originou uma segunda intervenção de conservação e restauro, mais profunda, entre 2010 e 2011. O objetivo foi protegê-los do elevado índice de humidade por capilaridade existente na parede de suporte, impossível de eliminar na origem. Para o que propusemos o levantamento dos painéis mais afetados e a sua recolocação, após a indispensável dessalinização, em suporte móvel a aplicar sobre caixas-de-ar a criar em cada pano de parede, impedindo desta forma a migração de sais da parede para os azulejos. A intervenção foi feita por restauradores especializados em recuperação do património azulejar, em estreita colaboração com o Museu Nacional do Azulejo.

Todos os azulejos destes painéis foram retirados e transferidos para a oficina de restauro, para dessalinização por imersão em água destilada. Tratamento previsto para três meses e que, no caso do painel S. Bento alimentado por Fr. Romão e dos dois painéis adjacentes com cenas de género, se prolongou por nove meses devido aos valores elevadíssimos de concentração de sais. Concluída a dessalinização, procedeu-se aos preenchimentos de lacunas e reintegrações cromáticas. A elevada salinidade detetada durante o tratamento e o alto índice de humidade das paredes levaram a concluir que a simples construção de uma caixa-de-ar seria insuficiente para os proteger no futuro da degradação provocada pela humidade excessiva.

A opção foi uma solução inovadora, complexa e de extremo rigor na execução, que limita a progressão da humidade e a migração de sais da parede para o revestimento cerâmico. O rebaixamento das paredes foi mais profundo, criando uma caixa retangular correspondente à área do respetivo painel. Nestas caixas foi fixado um sistema de grelhas de ripas de madeira de caibro, impregnadas com cuprinol, e sobre elas colocadas calhas de alumínio. Os azulejos, concluída a dessalinização e o respetivo restauro, foram, por sua vez, colocados em suporte móvel de placas de Aerolam em cujo tardoz se fixaram também calhas de alumínio. Estas calhas permitem, pelo método de encaixe macho-fêmea, a junção dos painéis com as calhas das ripas de caibro. As placas de suporte foram cortadas em módulos independentes, possibilitando a rápida remoção de zonas pontuais dos painéis em caso de necessidade de nova intervenção. Para concluir, os panos de parede acima dos azulejos foram picados, rebocados e pintados.

Todos os painéis intervencionados neste segundo restauro, apesar de colocados em suporte móvel sobre caixa-de-ar, ficaram à cota dos restantes, mantendo a uniformidade do conjunto patrimonial e permitindo desfrutar de novo da riqueza decorativa do revestimento do Refeitório dos Monges. Esta intervenção, pela inovação de soluções, complexidade e rigor técnico de execução, foi distinguida em 2012 pela Associação Portuguesa de Museologia com menção honrosa para Melhor Intervenção de Conservação e Restauro.

Apesar do trabalho desenvolvido, é necessário continuar a minimizar a acumulação de humidade nas paredes e o consequente arrastamento de sais, que poderão danificar de novo o revestimento cerâmico. Só a análise periódica do estado de conservação e a imediata intervenção, sempre que se justifique, permitirá a preservação deste importante núcleo de património azulejar, o único que resta in situ no antigo Mosteiro de S. Bento da Saúde.

O dia 6 de Maio foi consagrado, por Resolução da Assembleia da República aprovada por unanimidade em 24 de março de 2017, como Dia Nacional do Azulejo. O reconhecimento da importância deste património, com larga produção nacional desde o século XVI, é sobretudo um contributo para a necessidade de o proteger e preservar.

Teresa Parra da Silva
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